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Choro de perdedor

Ao reeditar a ofensiva contra as urnas eletrônicas, Bolsonaro constrange o Exército, mostra que quer tumultuar as eleições e antecipa a desculpa para a provável derrota ou mesmo para abandonar a corrida eleitoral
18.02.22

A trégua durou pouco. Nos últimos dias, Jair Bolsonaro voltou a questionar a higidez do sistema eleitoral brasileiro, a colocar em xeque a segurança das urnas eletrônicas e a dar sinais de que segue empenhado em tentar tumultuar as eleições presidenciais deste ano. A velha e conhecida ofensiva foi novamente deflagrada pelo presidente em live realizada na quinta-feira, 10, quando afirmou que “todo mundo sabe do que tem que desconfiar” e que “as urnas têm dezenas de vulnerabilidades”. Ao semear a desconfiança sobre o sistema eleitoral, Bolsonaro atende a pelo menos dois de seus propósitos políticos: para além de arrumar um pretexto para abandonar a disputa, caso sua popularidade continue derretendo até agosto, quando as candidaturas precisarão ser homologadas, ele alimenta uma teoria da conspiração que o ajuda a manter mobilizado o bolsonarismo no pós-eleição, se insistir em concorrer e for derrotado – hoje o cenário mais provável, a julgar pelas recentes pesquisas.

A tática é manjada. A novidade é que, desta vez, o presidente tentou arrastar os militares para o epicentro de sua conspirata eleitoral. Na própria transmissão do dia 10, valeu-se do trabalho realizado pelo integrante do Exército que integra a Comissão de Transparência das Eleições, criada pelo Tribunal Superior Eleitoral, numa tentativa canhestra de corroborar suas teses que, aos olhos dos técnicos da corte, jamais pararam de pé. “As Forças Armadas foram convidadas a participar do processo eleitoral. Nosso pessoal da guerra cibernética começou a levantar possíveis vulnerabilidades. Para quê? Para ajudar o TSE. Foram levantadas várias, dezenas de vulnerabilidades, foi oficiado o TSE, para que pudesse responder às Forças Armadas. Afinal de contas, pode ser que o TSE esteja com a razão. Pode ser, por que não? Passou o prazo de 30 dias e ficou um silêncio”, afirmou o presidente.

Foi justamente para evitar novos e previsíveis questionamentos do governo ao sistema eleitoral que o TSE criou em setembro do ano passado a Comissão de Transparência das Eleições, composta por doze integrantes, entre representantes da sociedade civil e instituições públicas. No colegiado, o Exército é representado pelo general de divisão Heber Portella, que comanda o setor de Defesa Cibernética. Portella chegou ao posto sob a chancela do ministro da Defesa, general Braga Netto, que é tido pelo presidente em altíssima conta, a ponto de ter se tornado o favorito para ocupar a vaga de vice em sua chapa à reeleição.

DivulgaçãoDivulgaçãoO general Heber Portella representa o Exército em comissão do TSE
Desde então, Portella participou de quatro reuniões do grupo, todas comandadas pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso. Em 10 de dezembro, o general e oficiais de sua equipe de cibersegurança do Exército estiveram no tribunal para conhecer o sistema. Foram recebidos por técnicos da corte e passaram uma manhã no tribunal, tirando dúvidas em clima amistoso. Uma semana depois, em 17 de dezembro, Portella enviou 80 perguntas técnicas a respeito do funcionamento das urnas, segurança e procedimentos de tecnologia, sem comentários ou juízo de valor sobre o sistema em si. O Judiciário entrou em recesso logo depois e, antes mesmo do retorno, interlocutores de Braga Netto já reclamavam da demora para o envio das respostas.

Na segunda-feira, 14, Barroso enviou as explicações ao Exército em um documento de mais de 700 páginas. A íntegra foi divulgada na quarta-feira, 16, após o vazamento das perguntas. As questões formuladas por Portella indagam sobre as políticas de uso de antivírus, backup, auditoria e gestão de vulnerabilidades que seriam adotadas pelo TSE. Segundo interlocutores do Exército, a ideia era gerar um debate racional e técnico a respeito do sistema eleitoral. No TSE, os questionamentos foram interpretados como procedimento padrão. O clima de cooperação institucional, no entanto, foi soterrado pelas declarações do presidente, sobretudo depois que ele se referiu aos oficiais da Defesa Cibernética como “nosso pessoal da guerra cibernética” que levantou “possíveis vulnerabilidades”.

Ao revolver o caldo golpista, em seu vale-tudo para desacreditar a votação de outubro, Bolsonaro constrangeu não só Portella, descrito por colegas como um militar neutro e técnico, pouco afeito a manifestações políticas, como também o Exército. Integrantes do Alto Comando nem sequer participaram da elaboração das perguntas, mas se viram enredados pela narrativa do presidente.  “O Exército foi envolvido nessa conversa e há um constrangimento porque não tem o que fazer. É um jogo de perde-perde. O jogo político é fora do quartel. Gera dúvida que não é salutar para democracia”, comentou um militar com interlocução entre os generais da cúpula.

O comportamento do presidente, que há muito já ultrapassou todos os limites da responsabilidade, causou uma saia-justa para Fernando Azevedo e Silva. Ministro da Defesa até março de 2021, o general assumiria a direção-geral do TSE na gestão do ministro Edson Fachin, que toma posse no próximo dia 22. Na quarta-feira, 16, no entanto, a corte anunciou que Azevedo e Silva havia desistido da empreitada por “motivos de saúde”. De fato, o general sofre de problemas cardíacos. Sua família tem histórico de doenças no coração: a mãe morreu jovem, depois de um infarto fulminante. A cobrança em casa para abrir mão do posto foi intensificada depois que começou a ficar claro que Azevedo e Silva transitaria num terreno minado. Ele, então, resolveu capitular. Outro temor do general era entrar numa bola dividida com Braga Netto, seu sucessor na Defesa. Netto tem irritado militares que veem em sua postura de dar corda aos devaneios de Bolsonaro uma tentativa de se cacifar politicamente para integrar a chapa do presidente à reeleição. “Braga Netto está jogando o jogo do Bolsonaro e fazendo esforço para ser vice. Isso está evidente”, comenta um militar, sob reserva.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO general Braga Netto estimula os devaneios do presidente Jair Bolsonaro
Com atuação reconhecida em logística, segurança e distribuição das urnas em regiões de difícil acesso do país, o Exército sempre foi demandado pelo TSE para auxiliar nas eleições. Em 2018, 20 mil integrantes do Exército trabalharam no pleito. O contingente deve se repetir este ano. É mais um motivo para que setores da caserna vejam com preocupação o acirramento do discurso do presidente. Um dos temores é que, durante o transporte das urnas, os próprios militares sejam alvos de uma falange bolsonarista insuflada pelos constantes ataques do presidente da República ao processo eleitoral. “Estou presumindo que as Forças Armadas estão aqui para ajudar a democracia brasileira e não para municiar um presidente que quer atacá-la. Montamos uma comissão com expectativa de dar transparência e de ouvir sugestões. Se alguém der uma sugestão importante em matéria de segurança, e que seja factível, vamos implementar imediatamente”, disse Barroso em duro discurso na quinta-feira, 17, ao participar de sua última sessão à frente da corte.

Em seu derradeiro pronunciamento como presidente do TSE, o ministro ainda destacou sete investidas de Bolsonaro contra a democracia e as instituições. Entre elas, o comparecimento à manifestação na porta do Exército, na qual militantes bolsonaristas pediam a volta da ditadura militar e o fechamento do Congresso e do STF, o desfile de tanques de guerra na praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios, as ordens para que caças sobrevoassem a praça dos Três Poderes com a finalidade de quebrar as vidraças do Supremo, em ameaça a seus integrantes, e a notória ida às manifestações do Sete de Setembro, com ofensas a ministros da corte e ameaças de não mais cumprir decisões judiciais. Sobre as recorrentes ofensivas de Bolsonaro às urnas, Barroso foi igualmente contundente. Disse tratar-se “de repetição mambembe do que fez Donald Trump nos Estados Unidos, procurando deslegitimar a vitória inequívoca de seu oponente e induzindo multidões a acreditar na mentira”.

Bolsonaro lança dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro desde que chegou ao poder. Antes mesmo de tomar posse em 2019, difundiu sem apresentar provas a falsa tese de que foi eleito no primeiro turno da disputa contra Fernando Haddad, do PT. Essa postura fez com que o presidente virasse alvo de pelo menos duas investigações: uma delas é o inquérito administrativo em curso na corregedoria do TSE, por divulgação de notícias falsas sobre o sistema eleitoral, em live realizada em 29 de julho de 2021. Em 4 de agosto, Bolsonaro divulgou um inquérito sigiloso da Polícia Federal que investigava uma suposta invasão ao TSE. O vazamento motivou uma apuração da PF que apontou, pela primeira vez, que o presidente cometeu crime de violação de sigilo funcional. O caso aguarda manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras.

Antonio Cruz/ Agência BrasilAntonio Cruz/ Agência BrasilO general Fernando Azevedo desistiu da direção-geral do TSE
Para além da ameaça de tumultuar as eleições, o comportamento do presidente embute um risco para ele próprio: o de disseminar um sentimento derrotista a sete meses do início oficial da campanha. É como atribuir ao árbitro de um jogo de futebol a culpa pela derrota antes mesmo de a partida começar. Ademais, nem a política nem as urnas costumam perdoar quem leva a pecha de mau perdedor. Quanto a isso, como bem disse o ministro Barroso, não há remédio na farmacologia jurídica que dê jeito.

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