A censura brasileira no 'The New York Times'
Com muita precisão, reportagem do jornal americano detalhou a escalada autoritária permitida pelos inquéritos sigilosos do Supremo Tribunal Federal

Na última segunda-feira foi publicada entrevista que dei e tive o prazer de ver constar em excelente reportagem de Jack Nicas e André Spigariol para o The New York Times sobre o comportamento das altas Cortes judiciais brasileiras, questionando se o Supremo Tribunal Federal (STF) não teria ido longe demais em sua mão pesada para defender a democracia.
Com muita precisão, os jornalistas detalharam a escalada autoritária permitida pelos inquéritos sigilosos do Supremo Tribunal Federal, inaugurados com o famigerado inquérito das fake news, e desabrochados em tantos outros, sempre sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, contando com a simpatia dos demais ministros que, raramente, questionaram a legitimidade de procedimentos em que o magistrado cobra o escanteio, cabeceia, comemora e apita o jogo, tudo ao mesmo tempo.
A censura à reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, da revista Crusoé, publicada em abril de 2019, faz parte dessa história, inegavelmente. O excelente texto dos jornalistas Rodrigo Rangel e Mateus Coutinho, à época, foi acusado erroneamente pela Suprema Corte de conter fake news, recebendo ordem para que saísse do ar, sob pena de multa. Enquanto isso, o jornalista Mario Sabino era intimado a comparecer à Polícia Federal, como representante da publicação, e eu, advogado contratado pelo veículo, atônito com o absurdo da situação, fazia meu trabalho da forma que era possível.
Uma semana depois, após muitas batalhas jurídicas e solidariedade de grande parte da imprensa, a censura foi revogada. Até aquele momento, o inquérito das fake news tinha alvejado apenas pequenos blogueiros e personagens insignificantes do cenário político. Com a censura a um veículo de imprensa como a Crusoé, levantou-se o mesmo questionamento que hoje o New York Times faz: teriam os ministros passado do ponto?
Claro que tinham, mas ignoramos o fato, pois logo em seguida se tornaram constantes os ataques de bolsonaristas ao STF, reclamando que sua liberdade de expressão estava sob risco, motivando forte reação da Corte. Dirão os bolsonaristas que aconteceu o contrário, ou seja, que os ataques partiram do STF e eles apenas reagiram.
Pouco importa, o fato é que politizaram a democracia e a liberdade de expressão a tal ponto que defender as liberdades individuais passou a ser sinônimo de apoiar incondicionalmente o atual presidente, enquanto defender a democracia passou a ser sinônimo de apoiar incondicionalmente as decisões muitas vezes desproporcionais do STF em seus inquéritos ilegítimos.
Como muito bem observou o jornalista Cláudio Dantas, nesta semana, os ataques de Bolsonaro às instituições permitiram a construção de uma narrativa em defesa da democracia por quem não obrigatoriamente a defende. Dantas não se referia necessariamente ao Judiciário, mas a frase serve como uma luva para explicar a desconfortável situação em que nos colocamos.
Permitindo que a politização do debate nos colocasse dentro da armadilha de não podermos criticar o STF, sob pena de sermos rotulados de bolsonaristas, nos tornamos críticos medrosos de uma Corte que passou a entender nosso medo como apoio e seguiu avançando em sua escalada autoritária, a ponto de se tornar necessário que jornalistas de fora do Brasil analisassem os fatos e nos mostrassem a realidade óbvia: nem tudo que o STF faz é democrático.
O fim do período eleitoral está próximo. Esperamos que, com isso, o país acalme os constantes enfrentamentos havidos entre os Poderes da República, entre o STF e o Executivo. Esperamos ainda que a excelente reportagem do New York Times tenha vindo em boa hora, dando a todos nós uma nova chance, nos colocando novamente diante da questão: não estará a Suprema Corte indo longe demais?
Claro que está. Tomara que dessa vez não ignoremos o que se põe diante de nossos olhos.
André Marsiglia é advogado.
andremarsiglia.com.br
@marsiglia_andre
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Comentários (10)
Francisco de Assis Oliveira
2022-10-02 16:46:27Me lembro de quando nos referíamos ao STF com admiração e muito respeito. Eram os guardiões da Constituição. Hoje olhamos p o stf com indignação, vergonha e repulsa. São os guardiões dos próprios interesses. Esses Inquéritos são vergonhosos.
Alberto de Araújo
2022-10-02 09:36:16O STF se transformou numa confraria entre amigos.Devido os ataques do Bolsonaro, os inquilinos de lá se fecharam, como se diz nas equipes de futebol, e optaram pela defesa dos confrades, entre eles. A liberdade do Lula foi uma demonstração da aliança do STF com o congresso. Abriram a porteira para a debandada dos corruptos. livrando a cara de parlamentares suspeitos pela ação da lava jato.O ministro Gilmar Mendes foi quem liderou a desconstrução dessa operação apoiado por "ilustres" advogados.
Edvaldo Roberto Menegassi
2022-10-02 08:46:05Texto fantástico.
Ivan
2022-10-02 06:44:20Só pra lembrar que os membros do Supremo são escolhidos e aprovados pelos presidentes e senadores que nós, o povo, escolhemos. Então, a responsabilidade final é nossa.
Eleonora
2022-10-02 05:41:12destaque: o presente STF foi montado pelo PT que hj pretende voltar ao poder e se perpetuar nele. não sejamos ingênuos em pensar que teremos retorno da democracia se isso acontecer.
Dulce
2022-10-02 00:59:58Os três Poderes, pesos e contrapesos que sustentam o Estado Democrático de Direito, estão a serviço de objetivo comum. Não é o povo. Nem a Democracia. O futuro parece desolador.
Sillvia2
2022-10-02 00:13:45Em suma, alguns dos supremos formam um cartório de auto-intitulados juristas de finório alto saber, escolhidos a dedo por poderosos de plantão e sempre solícitos e submissos aos caprichos e necessidades de seus padrinhos… um verdadeiro abuso de poder que o senado até agora faz de conta que não vê!
Franz de Amoreira
2022-10-01 20:50:35A concepção do sistema dos Três Poderes de Montesquieu visa os freios contrapesos para equilibrar a representação do povo sem concentração de poder. No caso da "corte" brasileira, o impeachment de ministros depende de permissão do Senado. Como o Congresso é disfuncional e falha em representar o interesse público, vê-se a perpetuidade dos absurdos do inquérito "do fim do mundo", das anulações de processos em decisões ilegítimas e com intencionalidade política. As instituições estão precárias.
NESTOR
2022-10-01 19:11:32Quando assistimos as decisões suspeitas de nossos ministros dos Supremos, perguntamos qual é o limite da Democracia? Chegamos a pensar numa maneira de derrubar esses bandidos de toga. Num país decente não existiria um Gilmar Mendes. Ministros que julgam ações de escritórios de esposas, filhos e amigos íntimos. Até quando?
Davidson
2022-10-01 19:07:11