Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A reunificação da Alemanha e a construção de Brasília

22.04.23 14:06

O muro de Berlim veio abaixo em novembro de 1989. Menos de um ano depois, antes mesmo que a República Democrática Alemã – a parte da Alemanha ocupada pelo Exército soviético ao cabo da Segunda Guerra Mundial – cessasse de existir, uma reunificação econômica improvisada começou a ser implementada pela emigração maciça de jovens em idade de trabalhar para a parte ocidental; ela foi seguida, em 1991, de um projeto formal de reunificação completa das duas Alemanhas, conforme acordo entre as potências ocupantes.

Essa primeira reunificação revelou-se extremamente custosa e mesmo caótica, dada a falência quase completa da indústria na parte oriental. A princípio, o chanceler Helmut Kohl esperava poder cobrir os custos do processo por meio de empréstimos internos, sem novos impostos. Tal medida revelou-se irrealista e o Bundesbank teve de elevar os juros para atrair capitais, o que redundou na grande crise monetária europeia de 1992, com várias moedas (entre elas a libra britânica, a lira italiana e a peseta espanhola) tendo de sair do sistema monetário europeu (tendo ao seu centro o Deutsche mark, bem antes que fosse criado o esquema do euro), com desvalorizações maciças e aumento da inflação. Finalmente, o governo da República Federal teve de introduzir um adicional de imposto de renda de solidariedade, para financiar os custos do processo, o que se estendeu por mais de duas décadas. No total, a unificação alemã pode ter tido um custo, durante vários anos, de mais ou menos 1,5% anual do PIB alemão, o maior da comunidade europeia e o quarto do mundo.

1,5% do PIB durante quatro anos (ou mais): esse pode ter sido o valor anual da construção de Brasília, de 1957 a 1960, com as diferenças relevantes, em relação ao processo de reunificação alemã, de que se partia de um PIB bem menor e de que os custos da construção foram feitos sem orçamento, à margem do orçamento e contra o orçamento, durante todos esses anos. Os materiais trazidos de caminhão, por vezes até de avião, os operários e a construção em si eram pagos em notas promissórias do Banco do Brasil, cujo presidente ia reclamar ao presidente, e este ao ministro da Fazenda, os recursos necessários para cobrir tais notas. O imposto adicional pago pela população brasileira não foi exatamente de solidariedade, mas sob a forma de inflação: ela saiu de um patamar anual de 10 a 15%, no início dos anos 1950, para mais de 30 ou 40 % ao final; na década, ela alcançou um índice acumulado de 460%, continuando a elevar-se nos anos seguintes, a despeito dos esforços de estabilização do governo Jânio Quadros. Quando os militares, atendendo aos reclamos da classe média e de políticos ambiciosos, decidiram dar um golpe de Estado contra João Goulart, a inflação já rodava na casa de 90% ao ano, sem que existisse, cabe relembrar, qualquer mecanismo de correção monetária. A poupança da classe média na Caixa Econômica Federal simplesmente se volatilizou, e esse pode ter sido o fator decisivo na montagem do golpe, mais do que qualquer ameaça de comunismo, de resto um fantasma.

Já nos primeiros dois anos da construção de Brasília, os custos se revelaram muito superiores à capacidade do governo JK de honrar seus compromissos com o grandioso Plano de Metas, ademais de várias outras obrigações externas. Conversações com o FMI, de molde a apoiar uma possível postergação de pagamentos aos credores externos, não avançaram, devido às resistências do próprio presidente em atender às demandas de seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, no sentido de implementar os necessários ajustes orçamentários requeridos para permitir a continuidade da construção. JK decidiu romper as negociações com o FMI, o que motivou a demissão de Lucas Lopes e também a do diplomata Roberto Campos, então presidente do BNDE, e um dos principais responsáveis pela formulação do Plano de Metas durante a campanha presidencial de 1955.

Data dessa conjuntura o famoso mote “FMI = Fome e Miséria Internacional”, saudado por toda a esquerda, inclusive pelo grande intelectual que era Otto Maria Carpeaux. A construção prosseguiu, sem orçamento, à margem do orçamento, contra o orçamento, e, na mesma toada, acelerou-se o processo inflacionário. Na sequência dos desastres econômicos acarretados pela construção da “capital da esperança” – como a chamou o intelectual francês André Maurois –, Brasília já foi inaugurada numa situação de pré-crise nacional, sendo que o populista Jânio Quadros, um arrivista sem quaisquer conexões partidárias consistentes, foi eleito com a maior votação proporcional até então registrada na história das eleições presidenciais. Seu símbolo maior, na campanha, era uma vassourinha, expressamente comprometida com sua promessa de varrer a corrupção do Brasil.

Roberto Campos, nessa época, já dizia que Brasília era a “capital da inflação e da corrupção”. De fato, como visto, na década de 1960, a taxa de inflação passou de 30% em 1960 para mais de 90% em 1964. O primeiro governo do regime militar, dominado, na área econômica por Otávio Gouvêa de Bulhões na Fazenda e Roberto Campos no Planejamento, colocou em vigor políticas graduais de controles de preços, de cortes no orçamento e de redução dos salários, permitindo uma diminuição progressiva dos índices inflacionários para 35-40% em 1965-66, cerca de 25% em 1967-68 e de “apenas” 19% anuais no fim da década. O Brasil estava pronto para ingressar naquilo que foi chamado de “milagre brasileiro”, taxas exponenciais de crescimento, com asiáticos passando a visitar o país para aprender a fórmula mágica do crescimento rápido. Menos de meio século depois, a situação se inverteria completamente e o Brasil jamais  conseguiu exibir os mesmos padrões fiscais e monetários dos países da franja da Ásia-Pacífico, ainda que estes também tenham praticado as políticas nacionalistas e desenvolvimentistas, mas com uma diferença fundamental: a abertura ao comércio internacional e a inserção na economia mundial.

Desde os anos 1960, Brasília não representou apenas incentivos inflacionistas latentes – dada a voracidade do ogro famélico representado por um Estado onipresente, com seus milhares de mandarins cúpidos –, mas também uma mudança na geografia dos lobbies corruptores, ainda mais ativos em Brasília dado o perfil relativamente rarefeito da sociedade civil e as novas possibilidades oferecidas por uma concentração tecnocrática. O Brasil é uma anomalia no conjunto de países em desenvolvimento no que concerne a carga fiscal, que deveria ser 10 pontos menor, para um patamar equivalente de renda per capita. O peso dos tributos representa mais de um terço do PIB, quase o equivalente à média da OCDE, para uma renda per capita cinco ou seis vezes menor. Brasília ostenta uma renda per capita que é mais do que o dobro da média brasileira, inclusive maior do que a de São Paulo, para uma atividade “econômica” basicamente concentrada na burocracia pública e no inacreditável poder de “sucção” parlamentar, extraordinariamente ampliado na fase recente.

Voltando à comparação inicial com a Alemanha, vejamos qual a dotação típica de um membro do Bundestag alemão, que precisa cobrir suas despesas, tanto quando as de seus assessores parlamentares: cerca de 4.560 euros por mês, ou seja, algo como R$ 25.500. Deixo à curiosidade dos leitores a tarefa de descobrir os vencimentos dos nossos parlamentares, acrescidas de todos os penduricalhos associados (transportes, comunicações, habitação, escritórios e assessores nos estados de origem e uma série de outras mordomias). Brasília precisaria, como a Alemanha oriental, ser “reunificada” ao resto do Brasil, mas à condição de sê-lo dentro de padrões normais de um Estado democrático republicano, não para continuar a gozar de seus hábitos aristocráticos.

Brasília acaba de completar 63 anos de vida, ou seja, é duas vezes balzaquiana (a famosa novela sobre a mulher de 30 anos). Se Honoré de Balzac fosse vivo, no Brasil atual, e conhecesse a “população” variada que circula no Congresso entre as terças e quintas, ele certamente teria material suficiente para escrever duas novas séries da Comédia Humana.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

www.pralmeida.org

diplomatizzando.blogspot.com

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  1. Excelente análise do professor PRA, mas peço sua permissão para respeitosamente divergir. Nossas mazelas vão muito além do peso da burocracia federal, mas estão na arquitetura de Estado que construímos. Ou melhor, que se construiu ao longo do tempo de forma disfuncional e incidental, atendendo a interesses diversos e desalinhados aos da população. De nos reles mortais. Só sairemos dessa arapuca quando houver homens dispostos a apontar o problema e com testículos para liderar a sua transformação

  2. A Ilha da Fantasia tem a mágica da tirania travessia de República Democrática. Somos todos escravos do monstro Leviatã em que se transformou o Estado brasileiro.

  3. Parabéns uma vez mais, caro PRA, por esse excelente artigo a propósito do 63o. aniversário de Brasília.

  4. Parabéns, mais uma vez, caro PRA, por esse excelente artigo a propósito do 63o. aniversário de Brasília.

  5. Espremida entre duas ideologias medievais só há uma saída a reestruturação da República pela democracia ou pela força e hoje totalmente à mercê de bandos e quadrilhas que infelicitam um país rico rumando ao clepto-comunazismo que só deve ser parado pelo sangue de mártires e não precisa ser assim ... mas será.

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