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‘Acordo e começa o pesadelo’, diz médico de Guaiaquil, no Equador

19.04.20 12:11

O infectologista César Nárvaez (foto), vive com a mulher e duas filhas pequenas em Guaiaquil, a cidade costeira do Equador que mais registrou mortos por coronavírus no país. Com 44 anos, ele trabalha como especialista em infectologista em dois hospitais da cidade, o Omni Hospital e o Luiz Vernaza. Nárvaez conversou com Crusoé por telefone.

Qual é a situação nos hospitais de Guaiaquil?
No pico da pandemia, em meados de março, recebíamos entre 30 e 40 pacientes todos os dias no pronto-socorro. Muitos tinham febre e insuficiência respiratória. Mal conseguiam falar. Mas não havia respiradores disponíveis. Com isso, muitos voltaram para suas casas e compraram ou alugaram tanques de oxigênio.

O que aconteceu com essas pessoas?
A maioria morreu em casa. Não basta colocar a máscara e conectá-la ao tanque de oxigênio. É preciso adotar, inclusive, os tratamentos alternativos para a Covid-19. Mas, como ocorreu uma corrida às farmácias, esses medicamentos acabaram. Só os hospitais e clínicas privadas hoje têm esses remédios.

Quando alguém morre no hospital, como se dá a comunicação com os familiares?
Isso foi uma coisa nova para mim, porque eu nunca tinha dado essa notícia pelo telefone. Quando meus superiores me pediram isso, fui reclamar. Mas não tinha opção. Seria muito arriscado chamar as famílias para transmitir as notícias pessoalmente. Então, todos os dias, nós dividimos entre os médicos as ligações que precisamos fazer, seja para falar de como os pacientes estão melhorando, seja para comunicar as mortes. Faço cerca de trinta ligações todos os dias. É uma das coisas que têm sido mais dramáticas para mim. Cada vez que acordo e me levanto, começa o pesadelo. Sinto muito estresse e ansiedade.

Como os médicos, em geral, têm atuado na pandemia?
Conheço muitos especialistas que se refugiaram. Decidiram fechar os seus consultórios e disseram que só voltariam a trabalhar quando tudo isso terminasse. Eles não querem ajudar essa enorme quantidade de gente infestada. Por outro lado, dentro do hospital, tivemos a ajuda de hepatologistas, traumatologistas, cardiologistas. Os que mais têm colaborado são os residentes, os estudantes. Eles têm muita vontade de contribuir.

Os profissionais de saúde tinham equipamentos para lidar com a Covid-19?
A maioria deles, como enfermeiros e maqueiros, acabou sendo infectada. Lamentavelmente, eles não tomaram as medidas de controle necessárias. Nós demos todas as informações necessárias. Demos aulas, fizemos treinamento. Também entregamos os equipamentos de proteção individual necessários. O hospital deu tudo. O problema foi o nível cultural das pessoas. Elas não usaram corretamente os equipamentos e acabaram sendo contaminadas. Apesar de estarem com máscaras apropriadas, coçavam o olho ou o nariz. Tivemos algumas mortes por causa disso.

O sr. tem conseguido se proteger adequadamente?
Alguns dos meus amigos médicos já morreram. Um deles, um clínico de 65 anos, recebeu todos os tratamentos disponíveis. Fizemos todo o esforço possível na UTI. Demos todos os remédios alternativos. Mas ele não sobreviveu. Apesar disso, nós salvamos algumas vidas aqui, e isso é bom. Eu estou há mais de um mês e duas semanas atendendo a pacientes com coronavírus todos os dias e não desenvolvi nenhum sintoma. Quando chego em casa, minhas filhas, de 4 e 5 anos, sabem que não podem me abraçar. Eu tiro a roupa e coloco tudo em um balde com água quente. Tomo banho fora de casa. Me dá muita tristeza não poder abraçar minhas filhas. Como pode ser que eu esteja com o vírus, faço tudo para não contaminar mais ninguém.

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