Caetano Veloso: um elogio ao cantor triste que completa 80 anos

Caetano Veloso, 80 anos de ambiguidades

Nas ocasiões em que volto à música de Caetano Veloso me interessa a pergunta singela mas dolorosa que o cantor faz em Cajuína: “existirmos, a que será que se destina?"
07.08.22 11:21

O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça.” 

Essa passagem de Alegria, Alegria me veio à mente outro dia, quando parei em frente a uma banca da minha vizinhança em São Paulo. Era um dia nublado, e portanto não havia sol (nem The Sun, pois não se tratava de uma banca londrina). Mesmo em dias claros, porém, o sol já não brilha para as revistas: na banca que eu contemplava cheio de tristeza e cansaço, o espaço ocupado por badulaques variados e salgadinhos vagabundos já era maior que aquele reservado à palavra impressa. Sintoma da crise da imprensa, que no entanto se reinventa: as revistas hoje são digitais, como esta Crusoé. Busco evitar idealizações do passado, mas naquele dia me deixei levar pelo saudosismo, daí ter evocado o verso de Alegria, Alegria. É como diz o título de outra canção do mesmo compositor: Nostalgia (That’s what rock’n’roll is all about).

Em 1967, quando Alegria, Alegria foi lançado em um compacto, a banca de revista ainda pareceria um signo de modernidade. Outras referências da letra, como a então esfuziante Brigitte Bardot, envelheceram muito literalmente e talvez já não sejam familiares ao leitor mais jovem (aliás, talvez eu precise explicar o que era o tal compacto de que falei acima: tratava-se de um disco de vinil pequeno, em geral com uma canção de cada lado; era como se lançavam os singles nos anos 60 e 70).

No entanto, ouvindo Alegria, Alegria enquanto escrevo, sinto nos acordes de guitarra que abrem a música uma vibração que segue viva e nova. “Eu vou, por que não?”, diz o sujeito da canção. Ele só não diz para onde vai, e nessa indeterminação há uma ânsia de liberdade que ainda deveria falar a nossa alma. Ou não?

 Criador de Alegria, Alegria, Caetano Veloso está de aniversário. Completa 80 anos hoje, 7 de agosto. Fará uma live para marcar a data. Outras tantas celebrações virão – ou já apareceram nos segundos cadernos e em eventos de institutos culturais. Torna-se um tanto difícil visualizar o cantor, hoje, como o personagem contracultural que caminha contra o vento, sem lenço nem documento. Pois Caetano converteu-se em uma instituição, um monumento vivo da música popular brasileira.

Ele também adquiriu ares de oráculo da vida pública nacional, a despeito de seus vaticínios um tanto erráticos. O apartamento em que o compositor baiano vive com a mulher Paula Lavigne, no Rio de Janeiro, tornou-se um centro de acontecimentos artístico-políticos. Lá se gestou o Procure Saber, grupo que em 2015 lutou pela manutenção da censura (derrubada pelo STF) de biografias não-autorizadas e dois anos depois se posicionou contra o fechamento, sob pressão de reaças e carolas, da mostra Queermuseu, em Porto Alegre. Em 2017, foi também nesse apartamento que um grupo de artistas se reuniu para declarar oposição ao governo de Michel Temer. Mais recentemente, em maio, Lula e Janja foram lá conversar com Caê e Paula – segundo se noticiou, discutiram cultura e meio ambiente. Anitta fez mais barulho quando declarou apoio a Lula, mas não foi visitada pelo candidato: essa é uma deferência que só se faz a um ícone da cultura nacional. Ao que parece, Caetano, como Lula, é uma ideia. 

Nos anos 1960, Caetano ainda não era esse medalhão superlativo. Como expoente do tropicalismo, ele enfrentou a hostilidade da esquerda ortodoxa e a truculência da direita então no poder. Como é próprio da dinâmica social das vanguardas, aquilo que de início era transgressor aos poucos torna-se convenção. A celebração dos 80 anos será, prevejo, plácida e universal – salvo nos círculos vociferantes do bolsonarismo, de onde no entanto não sairá qualquer crítica articulada à obra e à política de Caetano Veloso.

A consagração geral tende a embalsamar o artista no caldo conservador dos lugares comuns. O fã incondicional dirá que a inquietude de Caetano resiste a essa tendência, mas tal afirmação é ela mesma um lugar comum. Em seu disco mais recente, que leva o título coloquial e imodesto de Meu Coco, o cantor baiano demonstra inegável vigor criativo, mas percorre caminhos já familiares. No comentário social e na inventividade verbal, Anjos Tronchos, faixa que puxou o novo álbum, fica a dever a, digamos, O Estrangeiro: é Caetano diluindo Caetano.

Também é assim na postura pública de Caetano, que desde o furibundo discurso no Festival Internacional da Canção de 1968 (“É isso a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada”) sempre foi performática. Do “Fora Temer” ao “Lula Livre”, as posições progressistas na sala de estar de Paula Lavigne são tão previsíveis e chatas quanto as opiniões das “pessoas da sala de jantar” cujo convencionalismo era ridicularizado no disco-manifesto da Tropicália. O encantamento de Caetano com o neostalinismo do youtuber Jones Manoel não chega a constituir exceção a esse quadro: parte considerável da esquerda brasileira parece acreditar que seus anacronismos monstruosos constituem uma forma radical de “resistir” ao conservadorismo primitivo de Bolsonaro. 

 Há até bem pouco tempo, a elasticidade política do compositor baiano era motivo de piada. Capaz de elogiar de Antônio Carlos Magalhães a Mangabeira Unger e de ir do petismo ao tucanismo às vezes em uma só entrevista, Caetano parecia repetir continuamente um verso de Ele me Deu um Beijo na Boca: “sim, mas sim, mas não, nem isso”. Suas ambiguidades e ambivalências na política talvez espelhassem a estética tropicalista, que conjugava o brega e o chique, o atrasado e o moderno, Vicente Celestino e João Gilberto. Em algumas canções, essa inconstância eclética ganha a forma de uma traço do caráter brasileiro – um traço ao qual o compositor atribui uma beleza própria, original. Por exemplo, em Americanos: “…aqui embaixo [vale dizer, no Brasil] a indefinição é o regime,/ e dançamos com um graça cujo segredo/ nem eu mesmo sei”. 

Em Fora da Ordem, a ambivalência de progresso e atraso ganha contornos quase trágicos: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”, canta um desiludido Caetano. Na anterior Vamo Comer, o compositor se irrita com as contradições e – numa passagem política e poeticamente banal –  diz esperar por alguém capaz de “equacionar as pressões do PT, da UDR” para “fazer dessa vergonha uma nação”. Em 1987, quando essa música tocava nas rádios FM, a União Democrática Rural despontava como antípoda do PT. Será que nessa levada de “equacionar” contrários Caetano agora proporia um meio termo entre bolsonarismo e lulismo? Duvido. Mas o que isso importa, afinal? Ninguém ouve canções em busca de novos projetos políticos ou políticas públicas.  

O que eu busco nas ocasiões em que volto à música de Caetano Veloso não é uma tradução lírica de sua postura política, que com frequência me aborrece. Tampouco é a efusão tropicalista de que me lembrei diante dos pacotes de Ruffles e Doritos expostos no que costumava ser uma banca de jornal (“quem lê tanta notícia?”). Melancolia, melancolia: me interessa antes a pergunta singela mas dolorosa que o cantor faz em Cajuína (e repete na menos conhecida Giulietta Masina): “existirmos, a que será que se destina?”. E me encanta o desalento desta utopia desprovida de messianismo: “Vejo uma trilha clara para meu Brasil, apesar da dor/ Vertigem visionária que não carece de seguidor” (em Nu com Minha Música). Apesar de descrente, me junto à prece de Araçá Azul: “Com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”. 

Um feliz aniversário para esse cantor triste. 

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  1. Meu caro Jeronimo, o título em destaque de seu artigo "o sol nas bancas de revista" ... na verdade não se refere ao sol, o astro-rei, e sim ao jornal O Sol, um tablóide que existia na época. Procure saber...

  2. Prezado Jerônimo Teixeira. Não se deve confundir o artista- pessoa física- com sua obra. Também é injusto- ou imprudente- querer interpretar hoje versos de contextos passados bem como atribuir a todas as falas um lugar politico que pode não ter necessariamente havido. Como ser humano ele pode sim ter vacilado e sido incongruente , mas há dezenas de outras canções que registram seu vigor criativo, poético. Não sejamos tão duros. Há muitos por aí merecedores dessa dureza, não achas?

  3. Faltou dizer que artistas que fizeram sucesso surfando a onda anti ditadura (da direita) dos anos 60 sempre aproveitam uma brecha para tentar repetir o sucesso da mesma forma antiga: se contrapondo a figuras pitorescas como os Bozos da vida! Percebem que a "mina de ouro" está ali, sempre pronta a fazer coisas ridículas que fatalmente lhes permitirão voltar "à cena do crime" como protagonistas de duas correntes anacrônicas persistentes no Brasil: A esquerda caviar e a direita populista!

  4. texto longo, chato, repetitivo e profuso em erros de digitação e - por incrível que pareça - até mesmo de transcrição.

  5. Como, atualmente, considerar Caetano avançado no tempo quando tem como ídolo político um retrógrado como Lula? Caetano é um estacionado no passado. Como você afirma: "o cantor baiano demonstra inegável vigor criativo, mas percorre caminhos já familiares"

    1. O doce bárbaro virou um ser mutante e mamante .. triste.

    1. Yeda .. Caetano foi exilado em Londres e lá escreveu uma das mais lindas músicas que é London, London que dizia "While my eyes .. go looking for flying saucers in the sky" que traduzindo "Enquanto meus olhos, saem procurando discos voadores pelos céus" sem nenhuma dúvida uma dura, saudosa e linda metáfora ... pena que esqueceu sua sensibilidade e se tornou mais um manipulador do povo.

  6. Infelizmente, ao invés de uma homenagem ao grande e adorado poeta pela sua nova idade - e, ainda, irrequieto produtor de bela arte -, por causa da poluição eleitoral que vivemos, faz-se um julgamento (injusto!) por conta de posturas políticas que adota. Não misturemos as coisas! Ele merce respeito como qualquer um de nós, sobretudo por seus "quereres" políticos! Não ao 'marcastismo à brasileira'! Todos sabem o final desse filme. Não comungo de muitas opiniões dele, mas o respeito!...E o admiro!

  7. Caetano é o maior poeta vivo da MPB! Se fosse norte-americano seria Cole Porter ou qualquer outro compositor do mesmo nível. Como é brasileiro e baiano, tem a sua arte questionada a todo momento em função de suas posições políticas ambíguas. Mas a ambiguidade é uma das características mais marcantes dos grandes gênios. Esqueçam o ser político! Agradeçam ao artista genial que ele sempre foi, trazendo alegria e beleza para as nossas vidas!

  8. Com todo respeito, até agora não entendi se vc está prestando uma homenagem ao inigualável Caetano ou fazendo uma crítica sobre posicionamento político dele. Caetano by the way NAO é triste.

    1. Menos os néo ditadores travestidos que finge não ver .. a que será que se destina? a sermos guilhotinados pela ditadura assassina que tanto idolatra e apóia ... vá ver tem milhões de motivos.

  9. Nunca despendi um cent com esse traste maconheiro, por ele e falado por ele, o Brasil deveria liberar todo o tipo de droga, mas, ... por enquanto, a única droga liberada até agora é ele próprio.

    1. O Nyco é muito infeliz, coitado. Um traguinho talvez lhe fizesse bem. MS

    2. Caetano é reconhecidamente careta! Não fuma, não bebe, não cheira. “Vc não entende nada”

  10. Complementando meu comentário anterior, Caetano não tem e nunca teve coerência política. É e sempre foi um agitador cultural sem muita consistência com o claro objetivo de chamar a atenção mas com inegável talento. Lembro-me da entrevista que ele fez com M Jagger na qual foi sacaniado do início ao fim pelo sarcasmo do Stones e nem percebeu. Band lá nos anos 80 se não me falha a memória.

  11. "Não conheço" esse Caetano direito😬, gosto de ler as letras, mas ñ tenho paciência p/ ouvir as músicas (ñ só dele, mas se eu contar posso ser apedrejada...). Ouvir e curtir, realmente, o som só "vc ñ me ensinou a te esquecer ", dessa ñ enjoo! Parabéns pra ele, q continue na sua constante inconstância feliz e triste (embora, acho q alguém do cacife dele deve ser bem mais feliz do q triste... tomara q seja!). PS: Jerônimo eu gostaria (muito) de ñ precisar ler seus artigos c tanta atenção 🥴. D+!

  12. Caetano Veloso faz parte desses “intelectuais” brasileiros que estão acostumados de virar as costas para os problemas reais do Brasil. Que p.e. sempre criticavam (na época!) o racismo lá fora em outros países em vez de olhar para o próprio rabo. Se enfeitando com ideologias ultrapassadas - só para trazer satisfação ao próprio ego e por motivos de vaidade. Ainda mais agora na idade avançada! Só para manter a imagem do eterno “rebelde” que na realidade já se tornou numa peça empoeirada de museu!

    1. Antonio: perfeita seu comentário! Como fazem falta outros Caetanos, Chico, Tons, Miltons, Vinícius...monstros sagrados da MPB! Da época em que a musica brasileira era joia rara. Pra quem já teve Tom Jobim representando magnificamente a musica brasileira pelo mundo, ver as anitas neste papel hoje em dia dá desgosto!

  13. Músico de muito talento, tem lindas canções. No campo político um desastre não por ser esquerdista mas por quem apoia, um ex-presidiário, condenado por corrupção em três instâncias. Não adianta o músico parecer honesto, tem que ser honesto e passar valores morais com exemplo aos seus admiradores, senão é hipocrisia.

  14. O problema é que o brasil dá holofote demais pra quem está na mídia para todos os assuntos. E artista não é guiado pela razão, e sim pelas "paixões" e fantasias. Sobra arrogância, e falta sabedoria.

  15. Talentosissimo e revolucionário quando juntou guitarras e MPB ou quando cantou boleros latinoamericanos cafonas desafiando pensamentos cristalizados na música e no comportamento, me pareceu acima de tudo um narcisista que sempre precisou provocar para chamar a si os holofotes.

    1. Um cínico, executivo da indústria fonográfica que adora dinheiro, adora a "Rede Globo" onde está o tempo todo, adora bancar o "herói" preso pela "ditadura", mas que se diz "de esquerda" e enaltece regimes onde não pode haver poetas...

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