Karolina Grabowska

E os treze livros não elegeram Lula

03.10.22 15:48

Aqui em casa, os volumes de Em Busca do Tempo Perdido têm lombadas vermelhas. Não era assim nas edições originais. A encadernação rubra foi realizada pelo sebo Beco dos Livros, de Porto Alegre, onde comprei a obra, faz muito tempo, no saudoso século XX. O livreiro coletou exemplares extraviados de várias edições e unificou a coleção com uma encadernação vermelha. Só não conseguiu nivelar o tamanho dos livros: No Caminho de Swan, primeiro título do romance serial de Marcel Proust, veio de uma coleção de clássicos publicado pela Abril, e por isso é mais alto do que os demais seis livros, todos da antiga editora Globo de Porto Alegre.

Houvesse eu participado da campanha beletrista que os petistas lançaram nas redes sociais (mas não fiz, não faria isso), a coleção teria sido uma pequena trapaça. Pois só com Proust eu ganharia sete livros, embora tecnicamente Em Busca do Tempo Perdido, caudaloso exemplo do que os franceses chamam de romance-rio (roman fleuve), seja uma obra só. A ideia, como se sabe, era publicar uma foto de treze livros vermelhos, sinalizando o voto em Lula já no primeiro turno. O espírito da coisa era anunciar a virada, a vitória redentora da frente antibolsonarista – que, afinal, não se realizou.

Se eu tivesse dado sequência à brincadeira das treze lombadas vermelhas – que nem sequer comecei –, empilharia, sobre o…Tempo Perdido, Kaputt, que já recomendei aqui antes. Seu autor, o italiano Curzio Malaparte, era um grande admirador de Proust e, como o autor francês, gostava de escrever sobre a vida mundana (com a diferença sinistra de que uma das soirées descritas por Malaparte teve como anfitrião Hans Frank, governador nazista da Polônia ocupada).

Kaputt inclui páginas entusiasmadas sobre a resistência soviética ao invasor alemão. Por esse caminho associativo, abrir-se-ia a prateleira de literatura russa, pródiga em lombadas vermelhas (a pernóstica mesóclise serve para enfatizar o tempo condicional do verbo). Entre várias possibilidades, ficaria com duas: Poesia Russa Moderna, clássica antologia com tradução dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e de Boris Schnaiderman, e Duas Narrativas Fantásticas, de Dostoiévski. Ainda em terreno russo mas com autor inglês, acrescentaria Uma História Cultural da Rússia, de Orlando Figes. Da seção de biografias retiraria Sartre, de Annie Cohen-Solal, só para lembrar que o filósofo francês voltou de uma visita à União Soviética afirmando que lá se respirava liberdade…

Proust mais Malaparte igual a oito… Dois russos, dez. História Cultural… e Sartre, doze. Faltaria ainda uma lombada vermelha. Seria o caso de abandonar as associações subterrâneas entre as obras para enfeitar a pilha com um vistoso livro de arte? Sim, seria. Mas qual livro? Achei: Escritos e Reflexões sobre Arte, de Matisse, publicado pela extinta editora-fetiche CosacNaify.

E assim eu teria os treze livros. Aliás, tenho, pois os livros são meus, e só digo “teria” porque eu não participei do… Bem, o leitor já entendeu.

O que o leitor talvez não entenda é porque me dei ao trabalho de selecionar treze livros vermelhos para compor a foto que tirei. Admito: me senti tentado a participar dessa corrente em rede social. Não pela causa, a que me opunha (dou minhas razões adiante), mas pela pequena e boba alegria de mostrar alguns livros queridos. Seja sincero, leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão: qual de nós não gosta de anunciar o privilégio e o prazer que é manter uma biblioteca em casa? Fosse por outra causa, eu estaria revirando as prateleiras em busca das lombadas mais fotogênicas.

A perereca, por exemplo, daria uma bela causa para o exibicionismo livresco. Sempre que se levantavam objeções ambientais contra as hidrelétricas que seu governo desejava construir, Lula, esse restaurador de democracias e florestas, reclamava que o progresso do Brasil era detido só para preservar alguma espécie ameaçada de perereca. Pois meus livros estão a postos para atender ao chamado dos batráquios! Para um causa ecológica, a cor da lombada, claro, será outra. Bandeira, Drummond, João Cabral e demais poetas cuja obra está coligida na encadernação verde da Nova Aguilar já coaxam em coro: “se ameaça minha existência, serei resistência!”.

Em uma edição recente de Crusoé, Ruy Goiaba sugeriu que exibir os treze livros em rede social é uma forma de sinalizar virtude. Mas a foto das lombadas encarnadas talvez seja uma sinalização de vício – do vício de comprar livros. A imagem atesta apenas que a pessoa que a publicou é proprietária daqueles exemplares, não que os tenha lido (confesso: eu mesmo não li todos os treze livros reunidos acima em uma pilha imaginária). E em um país onde, segundo a mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cada cidadão alfabetizado lê em média cinco livros por ano (contando aqueles que foram lidos apenas em parte), exibir treze livros representa um pecado capital do catecismo esquerdista: a ostentação.

A julgar pela minha timeline, porém, nem todos os que aderiram à campanha são de esquerda. Eu me surpreendi em ver gente até ontem antipetista publicando sua pilha de livros (ou de DVDs, no caso de um bom amigo cinéfilo). Não me juntei a eles, mas considero a atitude compreensível: o sentimento é de que o desastre também conhecido como Jair Bolsonaro precisava ser tirado do poder de forma rápida e inequívoca, ainda que o preço para tanto fosse eleger Lula.

A ostentação letrada carregava ilusões que até podiam ser generosas, mas que, computada a vitória eleitoral de cabeças brutas como Damares Alves e Nikolas Ferreira, agora se revelam patéticas. Na base, estava a crença ingênua de que os livros encontram-se em direta oposição às escopetas cultuadas e lambidas pela turma do presidente – como se não houvesse livros que chamam seus leitores às armas. Talvez tenhamos aqui uma expressão tardia do que Antonio Candido – por acaso, um crítico alinhado ao PT – chamou de “ideologia ilustrada”: a convicção das elites de que “a instrução traz automaticamente todos os benefícios que permitem a humanização do homem e o progresso da humanidade”.

Castro Alves deu expressão eloquente a essa ideologia em O Livro e a América, poema no qual exalta o herói letrado que “semeia livros à mão cheia” e assim “manda o povo pensar”. Os intelectuais que no passado seguiam a cartilha ilustrada construíram, segundo Candido, uma “visão deformada da sua posição em face da incultura dominante”: julgavam flutuar acima da ignorância, sem jamais serem contaminados por ela. Grosso modo, é como o intelectual progressista hoje se sente em relação à plebe bolsonarista.

Até se revelar o vexame dos institutos de pesquisa, os petistas alegravam-se com cada pilha de livros publicada nos Facebook, assim como comemoravam as adesões recentes de dissidentes da seita lulista – entre eles, Joaquim Barbosa e, para desalento das pererecas, a agora deputada eleita Marina Silva. Havia entre os simpatizantes do PT um clima de “já ganhou“, brutalmente esfacelado pelas urnas eletrônicas.

Como quase todo mundo fora do cercadinho do Palácio da Alvorada, eu mesmo acreditava que a vitória petista no primeiro turno era uma possibilidade forte. Mas também considerava – e ainda considero – que chamar o voto útil já no primeiro turno seria perverter o sentido de uma eleição em dois turnos (Ruy Goiaba, no texto citado acima, desmontou com rigor e fúria a chantagem do “quem não vota em Lula vota em fascista”). Mas entre as coisas que vêm sendo pervertidas na sociedade brasileira nestes últimos quatro anos, a eleição em dois turnos não será a mais preciosa.

Só não vamos, por favor, perverter os livros.

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500
  1. Caro Jerônimo, eu não sabia dessa estória dos 13 livros vermelhos; pois eu tenho uma coleção da Abril Cultural de 1977 (Teatro Vivo), com 35 volumes, todos em capa dura vermelha, simplesmente magnífica, com obras de N. Rodrigues, Lorca, Becket, O’Neal, T. Williams, Miller, Pinter, etc., que li e reli todos; já que vc falou em Proust, sugiro-lhe a coleção “O Ciclo Gestatório de um Homem”, com tintas proustianas, em 5 volumes, em e-book na Amazon e em papel no Clube de Autores; acho que vc amaria

  2. A única posição político- ideológica que deve nortear a aura do recinto presidencial de um país é o seu impreterível alcance ao desenvolvimento e jamais em detrimento de uma qualidade de vida da população.

  3. O marxismo é o ópio dos intelectuais. Aliás existe um esclarecedor livro com esse título - recomendo! Esse título pode se contrapor a frase “a religião é o ópio do povo”. Eu pessoalmente vejo a esquerda como uma religião não teísta - idéia presente no livro “sapiens - uma breve história da humanidade”, que também recomendo muito. Lembro-me de muitos amigos ateus que seguem a cartilha da esquerda cegamente, como numa seita.

  4. Uma enciclopedia sem vantagem,nada deixa de positivo elogios tem que vir de um fundo real,e uma acao elogiosa ao seu admirador valeu pela vontade de ser coerente mais nao deixa sentimento de boa literatura.

  5. Que texto mais bobo. Um sujeito metido a intelectual querendo se exibir, num texto que parece ir de nada a lugar algum. Nota: não sou lulista e nem bolsonarista, e para mim este segundo turno é o fundo do poço do Brasil. Portanto, minha opinião sobre este artigo não tem nada a ver com qualquer tipo de posição político-ideológica. Além do mais, sou de direita convicto - mas direita SÉRIA, não essa coisa chamada Bolsonaro.

  6. Fiquei com muita vontade de elogiar o texto, mas inibida pela falta de jeito. Vou querer ler mais para no futuro fazer um elogio condizente com a qualidade da escrita. Por enquanto deixo meus parabéns pela forma e conteúdo!

  7. LULA-LÁ 13 PARA AO MENOS FAZER OPOSICAO AO BOLSONARO QUE JA TEVE UMA VITORIA NACIONAL. É A MANEIRA DE NAO SUCUMBIRMOS AO NEO INTERALISMO.

  8. Muito bom o artigo. Bom também que logo recebeu um comentário (de alguém que deve ter postado livros bonitos e fotogênicos, porém não lidos ou compreendidos) dizendo que você e a revista são bolsonaristas enrustidos. Esse é o Lulinha paz e amor, que deve ter entre 48 e 52% dos votos válidos. Quatro semanas de bobagens pela frente…

  9. Texto complicado e arrogante. Indica o antilulismo de O Antagonista que, pelo jeito, bolsonarizou de vez. Neutralidade não existe, ainda mais no jornalismo. Nada é pior que Bolsonaro, O ANTIREPUBLICANO.

    1. Nada é pior que Bolsonaro? É sim, Lula!!! Um ladrão corrupto.

    1. E o exibicionismo patente do autor do texto? Tão pedante quanto o dos "intelequituais" da esquerda. Para mim, um vale o outro.

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