Adriano Machado/CrusoéO vice-presidente Hamilton Mourão: "Isso não é arte!"

O general agora é crítico de arte

Ao condenar uma cena isolada do filme A Fúria como estímulo à violência, o general confunde a representação de um assassinato com a incitação a esse crime
24.07.22 12:31

O governo Bolsonaro tem, afinal, um esteta!

Contemple, leitor, o quadro de um homem que, embora devotado à promoção do bem público, não descuida do cultivo do espírito em suas escassas horas de repouso. Estava esse luminar da cultura nacional recolhido à biblioteca do Palácio Jaburu, cotejando um fragmento da Poética de Aristóteles recém descoberto entre os papiros de Oxirrinco com a edição consagrada do texto grego pelo filólogo alemão Rudolph Kassel, quando chega uma mensagem urgente ao tablet no qual ele estava lendo a versão digitalizada do manuscrito. Um companheiro de armas e letras alertava-o para mais um atentado que a esquerda bárbara cometia contra a arte nacional. Tratava-se de um vídeo breve no qual um doppelgänger do presidente tombava durante uma motociata, vítima de assassinato. Ao ver o valoroso peito de Jair Messias Bolsonaro ferido de morte por alguma imaginação vil, nosso bom homem público buscou consolo nos versos imortais de Keats. “Beauty is truth, truth beauty”, recitou em voz baixa e consternada, certo de que naquela cena bruta não havia nem beleza nem verdade. Superou a repulsa inicial para examinar com olho analítico a composição da imagem. Como suspeitara, não se via ali a proporção áurea. Nosso esteta foi então ao Twitter para compartilhar sua avaliação definitiva do vídeo:

– Isso não é arte!

A cena acima toma várias liberdades poéticas. Não estou certo, por exemplo, de que exista uma biblioteca no Jaburu (ou de que, em existindo, essa biblioteca seja frequentada). Mas a citação do vice-presidente Hamilton Mourão está tal e qual aparece no seu Twitter, incluindo o ponto de exclamação:

– Isso não é arte!

O general referia-se a um trecho de A Fúria, filme que o diretor Ruy Guerra pretende lançar no ano que vem. Uma nota da produção informa que a cena está fora de contexto, e que sua divulgação não foi autorizada. Só poderemos avaliar as qualidades e defeitos de A Fúria quando ele estiver em exibição, decerto com as duas horas de duração, pouco mais ou menos, que são padrão das salas de cinema. No entanto, bastaram poucos minutos não-editados do filme para que Mourão decretasse:

– Isso não é arte!

Concedo que Mourão não saberia, no momento em que escreveu suas considerações, que aquele clipe era parte de um filme ainda não concluído. O tuíte, no entanto, parece presumir que o vídeo breve é tudo o que há para ver: “Está circulando nas redes um ‘filme’ que demonstra o suposto assassinato do nosso presidente”, escreveu o vice-presidente. Como ninguém supõe que Bolsonaro tenha sido baleado em uma motociata, suponho eu que “suposto” aqui quer dizer “fictício”. Mourão, aliás, não parece entender a natureza ficcional da cena, o que é uma limitação grave para quem tem a pretensão de discernir o que é ou não arte. Menos graves mas também imperdoáveis são as aspas com que ele cercou a palavra “filme”, em um esforço malogrado para ser irônico.  O que me permite parafrasear a frase do general:

– Isso não é arte retórica.

É a indignação, e não a ironia, que dá o tom da crítica de Mourão. “Repudio veemente qualquer ato que possa estimular a violência a quem quer que seja”, diz o general tuiteiro já na primeira frase. Nas eleições de 2018, o militar que agora se diz avesso à violência não teve pejo em se juntar ao sujeito que, como deputado, havia pedido o fuzilamento de um presidente da República e afirmado que uma colega de parlamento era feia demais para ser estuprada – para lembrar só duas das delicadezas que fizeram sua fama. Em todas essas declarações, Jair Bolsonaro decerto estava empregando a tal “linguagem figurada” sobre a qual vem falando recentemente. Mas, de acordo com seu vice-presidente, um filme que nem filme é ainda representa um perigo muito literal.

– Isso não é arte!

Ao falar em estímulo à violência, Mourão confunde a representação de um assassinato com a incitação a esse crime. Ele está muito perto de afirmar que Crime e Castigo incentiva jovens a assassinarem velhinhas. O tom furibundo do tuíte deve-se, claro, ao fato de que a vítima do “suposto assassinato” é uma figura que, do terno ruim ao corte de cabelo brega, imita o estilo de Bolsonaro. Mas alguém terá se sentido motivado a cometer um atentado contra o presidente só por que viu um vídeo curto no Twitter? Duvido. Em 2010, a 29a Bienal de Arte de São Paulo expôs desenhos do pernambucano Gil Vicente (homônimo do grande poeta e dramaturgo português) nos quais o próprio artista aparece assassinando figuras da política nacional e internacional. Em uma dos quadros, ele atira na cabeça de Fernando Henrique Cardoso; em outro, degola Lula. Essas obras são arte? Eu diria que são má arte, não porque representem atos violentos contra pessoas reais, mas porque o traço realista grosseiro carrega um pesado elemento kitsch. Diante delas, o visitante terá sentido vontade de xingar os curadores da bienal, não de matar FHC ou Lula. Houvesse visitado essa bienal e contemplado os desenhos de Gil Vicente, será que Mourão ainda diria que…

– Isso não é arte!

…ou será que não se daria ao trabalho, já que as vítimas retratadas não são de seu grupo político? No final de seu tuíte furioso, Mourão apela a altos princípios cívicos para justificar sua condenação peremptória ao filme, mas os termos não são dos mais felizes: “Isso [o vídeo com a encenação de assassinato] é um ato imoral à Nação e ao Governo Federal”. Nem vou questionar a moralidade do governo de que Mourão faz parte, pois esse poço é profundo. Importa antes observar que a moral nem sempre constitui uma régua apropriada para julgar o valor artístico. Algumas das melhores obras da arte e da literatura ofenderam os padrões morais de seu tempo. As Flores do Mal, Madame Bovary e O Amante de Lady Chatterley estão entre os exemplos mais lembrados. Todos os três foram censurados, e aí se vislumbra o perigo contido nos preconceitos estéticos do vice-presidente.  Nunca é bom sinal quando um mandatário ou vice-mandatário se arvora em árbitro do que é ou não é arte. Não se deve esquecer que, tal como Bolsonaro, o general Mourão admira a ditadura que decretou que Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, não são arte.

***

Não foi só o ponto de exclamação no tuíte de Mourão que me incomodou. Encontrei três pontos de exclamação preocupantes na decisão  em que Alexandre de Moraes, como presidente interino do TSE, proibiu bolsonaristas de associarem Lula ao PCC e ao assassinato de Celso Daniel. Mas isso será assunto para a próxima coluna.

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  1. Sofisticado o texto. A arte brasileira é, de fato, privilégio da esquerda. Sobre ter qualidade é questão de debate. E alguns dirão que qualidade é um conceito ultrapassado. Mas é fato que dos artistas de esquerda não virá uma crítica contundente aos crimes .... da esquerda. E, acreditem, elegantes comentaristas e sábios leitores, são bem numerosos. Que tal um filme com o assassinato de um destes muitos ditadores que a sinistra idolatra né. Só um cuidado, não brinquem com certos profetas ok?

  2. Vamos esperar a manifestação do autor deste espaço no que encontrou nos três pontos de exclamação. Infelizmente a arte é privilégio de poucos. Não se pode nem contesta-la. Ah, essa liberdade de expressão é uma incógnita.

  3. Só gostaria de saber se fosse o outro lado ,como seria a reação dos esquerdistas. Como o meu antagonista e a minha Crusoe, que eu quase não reconheço mais ,reagiria ?

  4. O Sr. Jerônimo Teixeira, autor desse texto, notoriamente nutri algum sentimento negativo em relação ao Vice-presidente, o qual tem todo o direito de expressar as suas opiniões no seu twiter. Esse texto não tem sentido nenhum e expressa o achismo do autor. Texto mal intencionado, com segundas intenções. Crusoé acorda!!

  5. Mas que houve malícia no “escape “ da cena do corpo estendido no chão, não há dúvidas! Daí, tudo é motivo para tiroteio insensato!

  6. Concordo com todos os comentários que criticaram o artigo, realmente destoa do espírito desta revista que se propõe independente, imparcial e contra qualquer tipo de censura. Qual seria o repúdio à cena se o assassinato "fictício" fosse o de Lula? Certamente seus fanáticos seguidores fariam críticas ainda mais ferozes.

  7. Totalmente sem sentido esse artigo. Parece-me que o único objetivo é ridicularizar o General e as Forças Armadas. Lamentável.

    1. Concordo! Pq é general não pode ter opinião sobre uma cena de filme? Desde quando são pessoas desprovidas desse direito por serem militares? Pessoas preparadas para a segurança, inclusive para a guerra, agora não podem dar opinião? Não voto em nenhum dessa polarização, mas o peso das críticas está pendendo só para um dos lados.

  8. Mourão não é flor que se cheire mas tem todo o direito de expressar sua opinião. Muito incoerente este artigo numa revista que defende a liberdade de expressão.

  9. Quanto blá-blá-blá sem nexo. Texto inútil. Não é necessário ser contra ou a favor desse governo para achar que o vazamento de fotos do filme são provocativas. Se o filme será lançado em 2.023.....

  10. Excelente texto, Jerônimo - em um nível que o subnível deste governo não vislumbra nem com telescópio. Mourão, particularmente, vive bem rente ao subsolo, a julgar por sua defesa incondicional do ex-tenente que nunca o poupou de humilhações e desprezo, e de suas loas a um notório torturador - não-fictício.

    1. Mariella, as "minhas" forças armadas do bozonaro, são meia dúzia de generais lesapatria e 6.000 milicos degenerados q ele cooptou por dinheiro: soldo mais salários, em ministérios e estatais.Tipo esse mourao de banhado q vc citou...

    2. Mariella, oportuna a lembrança de q este general 4 estrelas bate continência p um tenente de merda q foi expulso das Forças Armadas.

  11. A censura da ditadura impôs que “Laranja Mecânica” fosse exibida com bolinhas pretas nas cenas de nudez, apenas uma restriçao pudica. Já com "Estado de Sítio” de Costa-Gravas, não admitiu críticas à ditadura brasileira, liberando-o só em 1981, com cortes. A primeira coisa que cai na ditadura é a liberdade de imprensa. Memorável as edições do “Estado de São Paulo” que tinha trechos da obra “Os Lusíadas” de Camões espalhadas em várias páginas, indicando a atuação da censura da ditadura.

  12. Uma longa defesa de um vídeo que: "foi tirado do contexto", "não era para ser divulgado nas redes.""Foi gravado sem autorização." Um vídeo que mostra com muita causalidade a encenação do assassinato do presidente da republica atual. Sim, talvez voce tenha razão para defender a a arte do Ruim Guerra. A arte de matar. Nenhuma observação sobre as tenebrosas observações de Lula. Como aquela que ele observa que a sua secretária ia ter sua vontade sexual atendida por 5 agentes da PF, no Inst.Lula?

  13. Ao longo do meu aprendizado e ao final de minha vida de muitos, felizmente, ainda não entendi a verdadeira missão do militar neste pais pacifista. Tão pacifista que todas as reformas institucionais do Estado- da Independência aa Repubica- e todos os altos e baixos do regime Democratico

    1. ,se deram por golpe-de-mao, com os militares “bonitos na foto”. Mesmo nos 21 anos de ditadura militar não deixaram a sua rotina de fofocar e conspirar, por total ausência de missão palpável. Por essa ausência do que fazer, passaram a dar opiniao e interferir polivalentemente, mais valente do que poli. Assim se deu com o atual vice, politico que encantou os fariseus de direita, ocupou aquela posição devido a um vazio. Ecologista de carteirinha, pois militar…Agora da’ pitacos na área cultural…

  14. Jerônimo, ñ tenho ideia de como é a sua agenda, mas vc bem q podia ter uma coluna nas edições semanais! (Além dessa do domingo, claro 😬). Estou amando os seus artigos!

  15. O General Mourão viu uma cena que o chocou. E escreveu um pequeno comentário. Inadequado ou não, precipitado talvez para alguns,  para outros não. E você se dispõe a escrever um texto deste tamanho com um caminhão de informações e alegações?  Por que você não  usa a  sua inteligência e destreza  em escrever em algo que realmente tenha relevante importância?

  16. Só posso dizer uma coisa.Eles são militares. O mais importante para mudarmos a cena atual e não votar nem no Lula e nem no Bolsonaro. Nós temos opção sim. Adorei o texto. Um abraço.

  17. Esperar o que de um milico que está como general do exército brasileiro? Ignorantão como todos para o qual ARTE é negócio de esquerda!

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