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Nova ‘boiada ambiental’: canetada do Ibama põe em risco o paraíso de Abrolhos

28.03.22 06:10

O Parque Nacional de Abrolhos (foto), no litoral sul da Bahia, é uma área de conservação que abriga o maior banco de corais e o mais importante berçário de baleias jubartes do Atlântico Sul. Por causa da inestimável relevância ambiental do arquipélago de mesmo nome, o Ibama criou, em 2006, uma zona de amortecimento em volta do parque. A legislação proibiu, por exemplo, a exploração de petróleo e gás em uma área de 75 mil quilômetros quadrados, já que qualquer vazamento de óleo pode ser devastador para o ecossistema. Nesse faixa em volta de Abrolhos, o licenciamento de atividades econômicas com alto potencial de impacto passou a ter um controle mais severo. As restrições desagradaram a empresários e prefeitos da região, que viram na proteção extra garantida ao parque um limitador do desenvolvimento econômico. Como consequência, a criação do anel de proteção de Abrolhos virou o centro de uma disputa que se arrastou por 16 anos. Na última segunda-feira, 21, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, assinou uma portaria que simplesmente anulou a criação da zona de amortecimento.

Rica em petróleo, gás e em algas calcárias, que são um fertilizante de alto valor, a área de Abrolhos é alvo da cobiça de empresários há décadas. A decisão do governo Jair Bolsonaro de revogar a portaria sem instituir nenhum outro mecanismo formal de proteção no entorno do parque é alvo de duras críticas de especialistas, como geólogos marinhos e oceanógrafos. Questionado por Crusoé sobre a decisão do Ibama, o Ministério Público Federal informou que vai analisar o caso. O procurador da República José Gladston, que atua na Bahia, pedirá informações ao governo sobre a medida.

“A revogação da zona de amortecimento de Abrolhos é mais uma boiada do governo e está dentro da linha de ação de desmontar toda a política ambiental já consolidada”, afirma o geólogo Ruy Kikuchi, professor de Oceanografia da Universidade Federal da Bahia, a UFBA. Especialista em corais e ambientes marinhos tropicais, ele critica a falta de ação do governo federal na proteção da região. Kikuchi lembra que a discussão sobre a zona de amortecimento se arrasta desde o início dos anos 2000, quando começaram os estudos para a preservação do entorno de Abrolhos.

Em 2006, o Ibama criou a área por meio de uma portaria, mas municípios próximos do parque questionaram a medida na Justiça, com o argumento de que a regra era muito restritiva e poderia limitar o desenvolvimento econômico das cidades. A pressão mais forte à época veio de criadores de camarão, que queriam instalar na área o maior projeto de carcinicultura do país. Em primeira instância, a Justiça Federal anulou a criação da zona de amortecimento, com o argumento de que a medida só poderia ser implantada a partir de um decreto presidencial, e não por uma portaria assinada pelo presidente do Ibama. À época, o instituto recorreu, mas não conseguiu reverter a decisão – o Ministério do Meio Ambiente estava sob o comando de Marina Silva.

DivulgaçãoMergulhadores em Abrolhos: o arquipélago tem um ecossistema sensível e riquezas que atraem inúmeros interesses
Neste mês, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, manteve o entendimento da primeira instância de que cabe ao presidente da República, e não ao comando do Ibama, formalizar a proteção do parque. Agora, com a revogação do decreto que criava a faixa de proteção, a querela judicial até perde a razão de ser — até porque, a partir da canetada do Ibama, a zona de amortecimento simplesmente deixa de existir do ponto de vista legal. Poderia ser apenas uma filigrana jurídica, não fosse a resistência do governo de Jair Bolsonaro em instituir políticas ambientais efetivas. “Se isso fosse prioridade para o governo, o presidente poderia assinar um decreto para resolver a questão. Mas abriram uma porteira para várias outras ameaças a esse ecossistema, que é único no Atlântico Sul”, diz Ruy Kikuchi. Segundo o pesquisador, os estudos que embasaram a criação da zona de amortecimento comprovaram que eventuais vazamentos de petróleo no entorno do parque poderiam ter grande impacto nos recifes de corais.

“Quando se cria uma área protegida, é importante que haja um entorno com grau de proteção menor, mas que sirva como uma segunda linha de defesa. Como Abrolhos é uma área de recife de corais muito sensível, foi criada essa zona de amortecimento”, explica o oceanógrafo Agnaldo Silva Martins, do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo. “Nessa região de Abrolhos, a zona de amortecimento é especialmente grande porque recifes de corais são o ecossistema com a maior biodiversidade no ambiente marinho. Uma vez destruídos, os corais não se reconstituem facilmente, e isso pode levar milhares de anos ou não acontecer. Revogar formalmente a zona de amortecimento é grave, porque ficará muito fácil instalar qualquer empreendimento, como os de petróleo”, critica Martins.

Mesmo com a decisão judicial que suspendeu liminarmente a proteção, não houve a implantação de empreendimentos no local, principalmente por causa da insegurança jurídica que o processo judicial conferia. Agora, a flexibilização oficial do licenciamento na zona de amortecimento pode abrir brechas para outras atividades, além da exploração de petróleo. A região em volta do Parque Nacional de Abrolhos é rica em algas calcárias — um produto de alto valor para a indústria em razão da alta concentração de carbonato de cálcio, um fertilizante poderoso para a agricultura.

A revogação é assinada pelo presidente do Ibama, Eduardo Bim
É grande a pressão econômica pela liberação da mineração de carbonato e a extinção da zona de amortecimento abrirá as portas para a exploração do produto. “O ecossistema das algas calcárias também é muito sensível e com grande biodiversidade. Existe muita pressão econômica para que haja essa exploração”, diz o oceanógrafo Agnaldo Martins. Além de promover a correção de pH, as algas calcárias são riquíssimas em micronutrientes, capazes de aumentar a resistência das plantas – por isso, suscitam tanto interesse na agricultura.

Leilões de áreas de exploração de petróleo na região próxima a Abrolhos suscitam polêmica desde o início dos anos 2000. Frequentemente, organizações ambientais têm que fazer pressão sobre a Agência Nacional do Petróleo, a ANP, para evitar a licitação de blocos. Em 2020, a agência tentou licitar áreas na região, mas, diante dos questionamentos da sociedade e da consequente insegurança jurídica, não houve interessados. O mesmo havia ocorrido em 2019, quando a área de exploração próxima a Abrolhos não atraiu empresários.

Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia, Zelinda Leão é uma das pioneiras nas pesquisas em Abrolhos. Nos anos 1970, ela fez doutorado em geologia marinha nos Estados Unidos e se dedicou a estudos sobre o arquipélago. “Depois de muito trabalho de pesquisa, cientistas e pesquisadores concluíram sobre a necessidade de se criar a zona de amortecimento do Parque Nacional de Abrolhos, para proteger a biodiversidade deste ecossistema marinho de relevante importância para a Amazônia Azul Brasileira. E, agora, uma simples assinatura pode destruir todo esse trabalho”, lamenta a pesquisadora. “Durante explorações de petróleo no mar, é impossível evitar acidentes. Um derrame de óleo, por menor que seja, será um desastre para os recifes de corais de Abrolhos”, prossegue.

Procurado por Crusoé na última terça, 21, o Ibama respondeu que caberia ao Instituto Chico Mendes, o ICMBio, se manifestar sobre a situação. Três dias depois, a assessoria do ICMBio repassou a responsabilidade de volta para o Ibama. Nenhum dos dois órgãos respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem. A Casa Civil da Presidência da República informou que não tem, sob sua alçada, qualquer estudo ou proposta sobre o tema.

Pesquisadores e representantes de organizações não-governamentais com atuação na região prometem se mobilizar contra a canetada do Ibama. “O parque precisa de uma zona de amortecimento que o proteja de atividades danosas à sua função principal, que é proteger a biodiversidade. A sociedade tem que se mobilizar para que a proteção seja restituída — se não for por portaria do Ibama, que seja por decreto presidencial”, defende o biólogo Guilherme Dutra, diretor da ONG Conservação Internacional.

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  1. Lembra trecho da música Que país é este, do Legião Urbana: "Ficaremos ricos quando vendermos as almas de todos nossos índios num leilão". Coisas de governos ordinários!

  2. Outro absurdo! Há que se ressaltar que há no Brasil centenas de jazidas de Carbonato de Cálcio (calcário agricola) em terra firme, com menor custo de exploração e que são suficientes pra atender à demanda, quase que indefinidamente!

  3. Enquanto o dinheiro for a coisa mais importante que existe, seguiremos firmes no objetivo de transformar o Brasil em planícies estéreis e desérticas. É uma tristeza ver os órgãos responsáveis pelo meio ambiente serem os algozes deste. O sentimento de impotência diante da decisão ambiciosa e comprada de ignorantes é imenso.

  4. o ser humano que destrói seu habitat e os europeus fizeram há décadas e agora brigam para preservar o dos peixes que deve ser preservado sim mas de forma racional não sob ideologias criminosas que protegem animais e massacram seres humanos basta ver a Ucrânia hoje.

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