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Por um Natal com mais clichês e menos Brasília

25.12.22 12:35

Então é Natal. Não dá para ignorar a data. O desafio é escrever a respeito sem afundar no clichê – como fiz já na primeira frase deste primeiro parágrafo, que cita o primeiro verso de uma surrada canção de John Lennon (para piorar, na versão em português interpretada por Simone).

Fui buscar inspiração no primeiro Natal: o nascimento de Cristo, tal como é contado na Bíblia, em termos claros e sucintos, sem derramamentos líricos nem sentimentalismo de comercial de banco. É no Evangelho de Lucas que se encontra a narrativa mais circunstanciada do episódio. Estão lá o censo que levou José e Maria a se deslocarem de Nazaré para Belém, a estalagem que não tinha lugar para a mãe em trabalho de parto e os pastores que visitam o recém-nascido. De Mateus, vêm os Reis Magos e a estrela-guia, mas somente Lucas oferece o detalhe mais comovente: na falta de um berço, Maria envolve o filho em panos e o acomoda em uma manjedoura.

O trecho ocupa os primeiros vinte versículos do segundo capítulo de Lucas. Beleza simples e econômica: 358 palavras na tradução de João Ferreira de Almeida. Quase me arrependo de tê-las relido: me sinto envergonhado pelo contraste entre a grandeza dessa história antiga – uma grandeza que nasce da humildade – e as anedotas políticas medíocres que em geral são objeto dos meus textos. Tenho me dedicado às ideias de tilápia de Jair Bolsonaro, às demagogias chorosas de Lula em torno da fome, à santimônia militante da nova esquerda histérica e ao golpismo farsesco da Horda Canarinha. Como é que posso agora falar de Natal?

Essa disposição festiva que hoje chamamos de espírito natalino – outro clichê – inspira-se no evangelho mas lhe dá uma pátina secular: o que importa não é o drama da salvação, mas a celebração do amor, da simplicidade, da generosidade com o próximo encarnada pelos reis que levam ouro, incenso e mirra ao menino do presépio. Esse Natal moderno ganhou uma expressão açucarada mas encantadora em Uma Canção de Natal, de Charles Dickens. Graças a versões e releituras e paródias diversas no cinema, a história de Scrooge, o velho rico que corrige uma vida inteira de avareza ao ser visitado pelos espíritos do Natal passado, presente e futuro, tornou-se conhecida até de quem não leu o conto.

Neste ano eleitoral, a generosidade com os necessitados que Scrooge descobre depois de uma noite de sonhos inquietos tornou-se moeda de disputa política, com os dois principais candidatos batendo no peito para dizer “eu dou mais dinheiro pro pobre”. Os economistas responsáveis – incluindo alguns que fizeram papel decorativo na equipe de transição – alertam que benefícios mal planejados e sem lastro adiante cobrarão seu preço, que será pago, claro, pelos mais pobres. Próceres e apoiadores do próximo governo preferem pintar os críticos do estouro fiscal como sovinas vitorianos, insensíveis ao sofrimento de quem tem fome. Para empregar um clichê que nem mesmo é natalino: já vimos esse filme antes, e ele não acaba bem. A repetição é nossa tragédia. No Brasil atual, o espírito do Natal passado, o espírito do Natal presente e o espírito do Natal futuro são na verdade um único espírito.

Entre o presidente sorumbático que hoje só se pronuncia para emitir sinais ambíguos aos seus tietes e as decisões de politica econômica que o próximo governo delegou à decisão monocrática de um ministro do STF, parece que o país passará o período de festas em transe diante da transição. Mas nem tudo é política. As festas de fim de ano deveriam se distanciar dos rancores ideológicos em torno dos quais tantos se dividiram ao longo do ano. Não estou defendendo a alienação: devemos estar sempre atentos ao que a gente de Brasília anda fazendo, pois o que é decidido lá afeta nossa vida doméstica – quase sempre de forma negativa. Mas é preciso resguardar recessos pessoais e familiares para que as vulgaridades dos palanques e as negociatas dos gabinetes não conspurquem o que nos é caro. O Natal, em particular, deveria ser uma data sagrada, mesmo para aqueles dentre nós que não acreditamos no caráter divino da criança na manjedoura.

No debate público, a propalada reconciliação nacional é só mais uma mentira. As reuniões com parentes e amigos na época do Natal são, ou pelo menos deveriam ser, de outra natureza. Recentemente, visitando minha terra de origem depois de anos imobilizado por questões pandêmicas ou econômicas, revi pessoas muito queridas de quem sentia falta. Esses encontros são, na minha experiência, emotivos mas leves, fáceis mas repletos de significado. São os momentos que devemos valorizar – ou, na verdade, os momentos que valorizam nossa vida.

Estou ciente de que me aproximo do sentimentalismo de comercial de banco criticado lá no início do texto. Que seja. Às vezes, vale a pena se entregar aos clichês. Minha recomendação para o Natal: junte-se a quem você gosta, troque presentes e abraços, e, depois, chame todos à sala para ver A Felicidade Não se Compra (1946), clássico de Frank Capra, legítimo herdeiro de Charles Dickens.

Ao meu leitor, desejo só os melhores clichês natalinos.

“Que Deus nos abençoe, que nos abençoe a todos”, disse o Pequeno Tim.

“E voltaram os pastores glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto.”

(Este texto é dedicado a José Carlos e Sheila)

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  1. Parabéns por esta bela crônica. Também desejo ao autor e seus familiares muitas felicidades. Somente faço um reparo: de que adianta estar atento ao que "essa gente faz em Brasília", visto que eles fazem o que querem e o cidadão comum nada pode a não ser votar, para depois ver o seu voto traído.

  2. Há indícios e profecias de que um meteoro cairá no Planalto Central que extinguirá tudo lá existente como foi com os dinossauros há milhares de anos ... quem nos dera que isto ocorresse no dia 1o. de janeiro e naquele antro restasse apenas o fedor por alguns séculos nos lembrando do grande mal feito a um povo.

  3. Mesmo sendo clichê, Feliz Natal e que o menino da manjedoura nos abençoe a todos. Bênçãos não são dispensáveis aos brasileiros.

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