Vladimir Putin discursa no Dia da Vitória: horas antes, um bombardeio russo havia matado 60 pessoas em uma escola

Putin, destruidor de escolas

No domingo, 8 de maio, uma escola foi bombardeada por um avião russo em Bilohorivka, vilarejo no leste da Ucrânia. A destruição de uma escola sempre guardará um simbolismo trágico
15.05.22 11:25

No domingo, 8 de maio, uma escola foi bombardeada por um avião russo em Bilohorivka, vilarejo no leste da Ucrânia. O presidente Volodymyr Zelensky disse que 60 pessoas morreram, mas parece haver incertezas sobre esse número. Em qualquer hipótese, não é a primeira escola – ou prédio residencial, hospital, shopping center, museu… – que as forças russas destruíram. Em fevereiro, no início da guerra, ainda ouvíamos simpatizantes de Vladimir Putin garantindo que a ofensiva russa atacava apenas instalações estratégicas, e que danos e baixas em áreas civis eram poucas e acidentais. Esse argumento tornou-se insustentável depois do massacre de Bucha e da terra arrasada em Mariupol, mas essa gente segue relativizando a barbárie.

A destruição de uma escola sempre guardará um simbolismo trágico, e foi isso que me chamou a atenção em primeiro lugar. Há também a ironia triste de que o número elevado de mortes parece se dever ao fato de que a escola vinha sendo usada como abrigo contra bombardeios. E ainda que a escola não houvesse sido sepultada por uma bomba, só a necessidade de convertê-la em abrigo já escancara a catástrofe que a invasão russa impõe à população civil da Ucrânia. 

As mortes em Bilohorivka lembraram-me de outra escola destruída por forças militares russas, com números ainda mais tétricos. As circunstâncias foram distintas: não se tratava propriamente uma situação de guerra (ou “operação militar especial”, como prefere o governo Putin), e tudo se deu em território da Federação Russa. Refiro-me aos horrores de Beslan, na Ossétia do Norte, onde um sequestro realizado por terroristas chechenos em 2004 acabou com o saldo de 334 mortos, dos quais 186 eram crianças. Cada uma a seu modo, as tragédias de Bilohorivka e Beslan revelam o mesmo desprezo pela vida humana. 

Em 1 de setembro de 2004, primeiro dia do ano letivo, trinta terroristas tomaram a escola de Beslan e prenderam todos que lá encontraram – mais de 1000 pessoas, entre professores, funcionários, pais e alunos, – no ginásio. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções, os chechenos mataram reféns já no primeiro dia e plantaram bombas no prédio.

O governo russo não podia e nem devia atender as exigências dos terroristas, que incluíam nada menos que a independência da Chechênia. Os militares decidiram então tomar a escola, ação que poderia e deveria ser planejada para minimizar mortes de civis. Há exemplos de que é possível fazer isso. Atuando em Uganda, um país hostil, comandos israelenses resgataram, em 1976, 102 passageiros de um avião sequestrado por terroristas de organizações alemãs e palestinas que estava pousado no aeroporto de Entebe. Três passageiros e um militar morreram. Cada uma dessas mortes é uma tragédia, mas, consideradas as circunstâncias, o número era aceitável. Os quatro sequestradoras foram mortos. 

As forças de segurança russas, porém, interessam-se só em matar terroristas, e não em salvar suas vítimas. Isso já ficara claro dois anos antes do ataque em Beslan, quando outro grupo de separatistas chechenos fez reféns em um teatro de Moscou. Para dar fim ao sequestro, as forças especiais russas injetaram no teatro um gás tóxico que matou os 40 terroristas – e também mais de 100 inocentes. As equipes de hospitais que socorreram sobreviventes não sabiam como tratá-los porque as autoridades se recusavam a informar que tipo gás havia sido empregado. 

O desastre se repetiu em Beslan. A operação para retomar a escola começou com duas explosões no terceiro dia do sequestro, 3 de setembro. Eram os terroristas detonando suas bombas, diriam depois as autoridades. Investigadores independentes desmentem essa versão. Em um relatório minucioso, Yuri Saveliev, especialista em armas e membro da Duma (a câmara baixa do parlamento russo), afirmou que as explosões foram causadas por dois disparos – o primeiro de lança-chamas, o segundo de um lançador de granada –  feitos de fora da escola, a partir de prédios próximos.

A escola pegou fogo, como era de se prever. A ordem para combater o incêndio só foi dada horas depois. Das mais de 300 vítimas fatais em Beslan, pelo menos 100 morreram em razão do incêndio.

Em 2017, a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou o governo russo pelo desastre de Beslan. A sentença diz que o uso de armas pesadas foi excessivo e que a ação não foi planejada para preservar a vida dos reféns. Bem antes disso, ainda em 2004, o presidente Vladimir Putin anunciou novas leis antiterrorismo. Na mesma oportunidade, também deu fim às eleições para governadores, que passaram a ser escolhidos por indicação presidencial.

As tragédias sempre serviram de pretexto para Putin apertar ainda mais o cerco à democracia. O russo Garry Kasparov, campeão do xadrez e ativista pró-democracia, reconstitui essa escalada autoritária em um livro devastador,  Winter is Coming (O Inverno Está Chegando), publicado em 2015 mas infelizmente ainda sem tradução no Brasil. Encerro com uma passagem comovente dessa obra, na qual Kasparov conta da visita que fez ao cemitério de Beslan, em 2005. Cenas similares talvez estejam se passando em cemitérios da Ucrânia.

“Visitei o cemitério, ou Novo Cemitério, como era chamado pelos habitantes de Beslan. Ainda estavam fazendo construções lá, dez meses depois do ataque. Depositei flores em cada túmulo, percorrendo o cemitério em estado de choque por causa da proximidade com o horror que as pessoas haviam sofrido e com o qual os sobreviventes conviviam todos os dias. Imagine fileira após fileira de túmulos, cada um deles com a mesma data de morte: 3 de setembro de 2004, 3 de setembro de 2004, 3 de setembro de 2004, de novo e de novo 330 vezes. Fileira após fileira com datas de nascimento nos anos 1990 e algumas até nos anos 2000. Foi o dia mais doloroso da minha vida.”

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  1. O mesmo acontece no Brasil há anos e ninguém viu lá o Putin destrói com bombas já aqui no chiqueiro brazyllis a quadrilha aparelhou as universidades e escolas com péssimos mestres que destroem de forma bem mais eficaz e tenebrosa ... pela deseducação que diploma idiotas e fabrica cidadãos de terceira ... e pode ficar bem pior.

  2. Depois da guerra do Vietnã, as guerras dos EUA tornaram-se mais “civilizadas”. Graças à democracia e à imprensa livre. Já com os soviéticos e a Federação Russa, algo parecido com democracia só com Boris Yeltsin (1991-1999) e primeiros anos de Putin. Os horrores do teatro de Moscou em 2002 e de Beslan em 2004, os assassinatos de jornalistas e opositores, derrubariam qualquer governo democrático. Lukashenko arrastou a Bielorrússia para a guerra pois como ditador pouco se importa com seu povo.

  3. 🥀É doloroso.Qdo a morte chega dentro da normalidade, já nos choca. Qdo pela truculência e inoperância , é dor insuportável . Tb seria dantesco se fosse possível enfileirar , aqui no Brasil, em único lugar as mortes evitáveis da pandemia, da fome, dos latrocínios, homicídios , dos eventos climáticos que por falta de planejamento urbano , causam previsíveis mortes às centenas, todo ano . São eventos distintos os universos dos 2 quadros . Ambos DOLOROSOS 🥀

  4. Se ñ conseguem importar-se c a vida dos seus, qto menos por qm é de outra nacionalidade. Sempre olhei a falta de apreço pela vida ou pela dor alheia como sendo parte de pessoas q cresceram s família, s educação (vinda de casa) e s crer em Deus (p q "ñ terão" nenhuma alma p se preocupar em "dar conta"), mas ñ é assim... a maldade está no ser humano e é tão grande e dominadora q sempre consegue fazer calar. Na vdd, ñ acho o q comentar, mas acho absurdo um texto desse, aparentmnt, passar em branco.

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