Foto: Marcos Oliveira/Agência SenadoFoto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Terá o STF coragem de barrar a PEC Kamikaze?

Se o STF analisar a PEC e decidir contra ela, tomará uma decisão impopular, mas com fortes bases na legislação. Não deve ser apedrejado por isso. Mas não boto tanta fé na corte
01.07.22 19:17

Começo este texto com uma defesa preventiva do Supremo Tribunal Federal (STF), caso ele invalide a PEC Kamikaze (ou PEC da Emergência Eleitoral Governista) que o Congresso e o governo se apressam em pôr na rua. O partido Novo prometeu ajuizar uma ação contra a medida, que ontem passou pelo Senado com apoio quase unânime.

O STF é criticado com frequência, inclusive por este site, pelo seu ativismo excessivo. Uma decisão contrária à PEC irá na direção contrária: ela vai respeitar os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da legislação eleitoral, reafirmando proibições que os políticos desejam atropelar (a de fazer despesas acima do teto de gastos e a de não criar programas de transferência de renda em ano de eleições).

É certo como o nascer e o pôr do sol que políticos governistas vão atacar o Supremo se a PEC for julgada inconstitucional. Dirão, provavelmente, que a corte está interferindo mais uma vez na política – desta vez, penalizando a população mais carente com absoluta insensibilidade.

Serão argumentos desleais. O Congresso não tem licença para fazer política ao arrepio das leis. E não pode exigir que o Supremo decida contra as leis, sendo que o ataca sem clemência cada vez que ele “inova”.

Na época da pandemia, a adoção de estados de emergência e calamidade aconteceu no mundo todo. E vejam que curioso: em meio à crise sanitária, quando havia inclusive o posicionamento técnico de um órgão internacional, a OMS, amparando esse tipo de medida extraordinária, o governo Jair Bolsonaro recorreu ao Supremo para impedir o Congresso de instituir programas de proteção econômica da população. Acusou os parlamentares, adivinhem, de atentar contra a LRF.

Agora, a três meses da eleição, o presidente não esboça reação semelhante. Sendo que desta vez, o Congresso está errado. A decretação de situação de emergência com a finalidade de liberar o aumento nos valores do Auxílio Brasil e a criação de benefícios para caminhoneiros e taxistas é uma gambiarra desavergonhada. Não existe outro país que tenha recorrido a esse artifício para suavizar os impactos da crise de combustíveis. Pesquise você mesmo, se não acredita. Só o Brasil quer fazê-lo. Trata-se de uma jabuticaba.

A definição legal de situação de emergência é “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”. O Decreto 7257/2010, onde esse texto está incluído, trata do Sistema Nacional de Defesa Civil, o que mostra que os desastres que se tinha em mente eram enchentes, deslizamentos de terra, terremotos – ou pandemias. O aumento do preço internacional de uma commodity não pertence à mesma categoria de fenômenos.

Há alguns anos, governantes brasileiros vêm tentando incluir a falta de dinheiro nos cofres públicos entre as causas da decretação de emergência ou calamidade. O Rio de Janeiro abriu essa picada em 2016, porque não tinha recursos para terminar as obras das Olimpíadas. Cofre vazio, sem dúvida, é um desastre. Mas sua causa é a má gestão.

Não existe jurisprudência pacificada do STF sobre essa peculiar categoria da “calamidade financeira”. O que há são alguns indícios sobre os caminhos que o STF poderia seguir. Em uma ação julgada em março deste ano, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que “o estado de calamidade pública está associado ao direcionamento de finanças, sem dúvida. O que de forma alguma confunde-se com possíveis problemas com orçamento, carência de recursos para atendimento de qualquer serviço público. Carência de recursos financeiros não se enquadra como estado de calamidade a justificar a flexibilização das regras de aplicação dos recursos públicos.”

Quer dizer então que os pobres brasileiros devem ficar entregues à própria sorte, enquanto o preço dos combustíveis aumenta, pressionando o custo de alimentos e outros itens essenciais? Não é isso que estou sugerindo. Governar é escolher prioridades. Se o governo acha que deve priorizar o socorro aos pobres – e estaria certíssimo em fazê-lo – remaneje recursos do orçamento. Se o Congresso quiser colaborar, redirecione as verbas das emendas do relator para essa finalidade, ou reduza os recursos do Fundo Eleitoral. Há coisas que podem ser feitas sem vender ao distinto público essa ficção do “estado de emergência”, com a finalidade de autorizar despesas acima do teto de gastos. Quanto ao novo benefício para caminhoneiros e taxistas, esse é um caso perdido. Se a legislação proíbe esses arroubos em anos eleitorais, é porque eles invadem a seara da compra de votos.

Se o STF for instado a analisar a PEC e decidir contra ela, tomará uma decisão impopular, mas com fortes bases na legislação. Não deve ser apedrejado por isso.

Mas não boto tanta fé na corte. Acossada como ela anda, é possível que escolha o caminho populista, aceitando a decretação da situação de emergência, desmoralizando a LRF e as leis eleitorais e incentivando futuros governos incompetentes a recorrer às mesmas trapaças.

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