Uma história digna de ‘O Conto da Aia’
Em “O Conto da Aia”, romance e série distópicos idealizados pela canadense Margaret Atwood, jovens são mantidas em cativeiro em um país totalitário, com a única finalidade de parir bebês para mulheres inférteis. Periodicamente, elas são estupradas. Quando engravidam, são mantidas em estrita vigilância, para que não haja risco de a criança ser perdida.
Não há exagero nenhum em dizer que a menina catarinense de 10 anos impedida de realizar um aborto depois de ser estuprada viveu um episódio que se assemelha aos do livro, em absurdo e crueldade.
Depois de constatar a gravidez, no início de maio, a mãe da menina a levou a um hospital, buscando realizar um aborto. O hospital se recusou a realizar o procedimento e notificou o Ministério Público, que ordenou o recolhimento da criança a um abrigo.
Dias depois, a menina e sua mãe foram convocadas para uma audiência. Os diálogos com a juíza Joana Ribeiro Zimmer, obtidos pelo site As Catarinas, são excruciantes. A menina, que mal entendia as circunstâncias em que estava e só sabia responder com monossílabos, passou por um longo interrogatório. Foi incentivada a “aguentar a gravidez mais um pouquinho”, para que o bebê tivesse mais chances de sobreviver e pudesse ser adotado, “trazendo felicidade a um casal”. A juíza ainda perguntou se ela gostaria de escolher um nome para o bebê e se acreditava que o pai da criança concordaria com uma adoção.
Ao perceber que a juíza não permitiria que o aborto acontecesse – em razão de suas convicções pessoais, mas em desobediência à lei – a mãe pediu para, ao menos, poder permanecer ao lado da filha, no abrigo público ou em outro lugar. Esse pedido também foi rejeitado. Só no dia 17 de junho a menina foi devolvida à mãe.
O raciocínio da juíza Joana Ribeiro Zimmer é comum a muitas pessoas. Elas argumentam que a mãe que não deseja um bebê não precisa ficar com ele depois do nascimento: ela sempre poderá entregá-lo para adoção. Este episódio brasileiro, no entanto, mostra como pode ser perversa essa solução aparentemente razoável. Forçar uma mulher a carregar uma criança concebida em um estupro significa privá-la de qualquer autonomia ou dignidade. É reduzi-la à função animal de parir.
A lei brasileira é clara a respeito da gravidez resultante de violência sexual: ela pode ser interrompida. Ainda assim, um estudo de 2017 do Ministério da Saúde estimou que ao menos 700 procedimentos desse tipo eram negados pelo SUS todos os anos. O caso de Santa Catarina demonstra que é muito mais do que injusto e ilegal impor esses tipo de obstáculo a mulheres e meninas que buscam o socorro médico. Trata-se de outra agressão. Por mais que ela seja cercada de palavras suaves e “boas intenções”, o sofrimento causado em geral fica escondido e é impossível de medir.
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