A juíza Joana Zimmer: "boas intenções" com resultados perversos

Uma história digna de ‘O Conto da Aia’

História da menina catarinense de 10 anos impedida de realizar um aborto depois de ser estuprada se assemelha às do livro e da série, em absurdo e crueldade
21.06.22 18:04

Em “O Conto da Aia”, romance e série distópicos idealizados pela canadense Margaret Atwood, jovens são mantidas em cativeiro em um país totalitário, com a única finalidade de parir bebês para mulheres inférteis. Periodicamente, elas são estupradas. Quando engravidam, são mantidas em estrita vigilância, para que não haja risco de a criança ser perdida.

Não há exagero nenhum em dizer que a menina catarinense de 10 anos  impedida de realizar um aborto depois de ser estuprada viveu um episódio que se assemelha aos do livro, em absurdo e crueldade.

Depois de constatar a gravidez, no início de maio, a mãe da menina a levou a um hospital, buscando realizar um aborto. O hospital se recusou a realizar o procedimento e notificou o Ministério Público, que ordenou o recolhimento da criança a um abrigo.

Dias depois, a menina e sua mãe foram convocadas para uma audiência. Os diálogos com a juíza Joana Ribeiro Zimmer, obtidos pelo site As Catarinas, são excruciantes. A menina, que mal entendia as circunstâncias em que estava e só sabia responder com monossílabos, passou por um longo interrogatório. Foi incentivada a “aguentar a gravidez mais um pouquinho”, para que o bebê tivesse mais chances de sobreviver e pudesse ser adotado, “trazendo felicidade a um casal”. A juíza ainda perguntou se ela gostaria de escolher um nome para o bebê e se acreditava que o pai da criança concordaria com uma adoção.

Ao perceber que a juíza não permitiria que o aborto acontecesse – em razão de suas convicções pessoais, mas em desobediência à lei – a mãe pediu para, ao menos, poder permanecer ao lado da filha, no abrigo público ou em outro lugar. Esse pedido também foi rejeitado. Só no dia 17 de junho a menina foi devolvida à mãe.

O raciocínio da juíza Joana Ribeiro Zimmer é comum a muitas pessoas. Elas argumentam que a mãe que não deseja um bebê não precisa ficar com ele depois do nascimento: ela sempre poderá entregá-lo para adoção. Este episódio brasileiro, no entanto, mostra como pode ser perversa essa solução aparentemente razoável. Forçar uma mulher a carregar uma criança concebida em um estupro significa privá-la de qualquer autonomia ou dignidade. É reduzi-la à função animal de parir.

A lei brasileira é clara a respeito da gravidez resultante de violência sexual: ela pode ser interrompida. Ainda assim, um estudo de 2017 do Ministério da Saúde estimou que ao menos 700 procedimentos desse tipo eram negados pelo SUS todos os anos. O caso de Santa Catarina demonstra que é muito mais do que injusto e ilegal impor esses tipo de obstáculo a mulheres e meninas que buscam o socorro médico. Trata-se de outra agressão. Por mais que ela seja cercada de palavras suaves e “boas intenções”, o sofrimento causado em geral fica escondido e é impossível de medir.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO