Caio Guatelli/FolhapressO empreiteiro em Salvador: acervo estrelado e milionário

A jogada de Emílio

O dono da Odebrecht transferiu sua coleção de obras de arte milionária dias antes de a empreiteira pedir recuperação judicial. Ele pode ser investigado por mais uma fraude
27.03.20

No auge do poderio financeiro de suas empresas, que chegaram a faturar 132 bilhões em um único ano, Emílio Odebrecht tinha uma coleção de obras de arte de dar inveja a muitos dos museus do Brasil. O sobrenome Odebrecht foi sinônimo de riqueza na Bahia durante todo o século XX e o fausto se estendeu até o conglomerado de empresas da família entrar na maior recuperação judicial da história brasileira, em janeiro de 2019, um processo com valor estimado de 51 bilhões de reais.

A negociação com os credores é um dos mais duros capítulos da crise deflagrada pela descoberta das milionárias traquinagens do grupo pela Operação Lava Jato e, depois, pela prisão de Marcelo, o primogênito de Emílio. Até então, o velho empreiteiro curtia a vida de bilionário, enquanto o filho tomava a frente dos negócios, que iam desde a construção civil até o setor de defesa, passando pelos ramos imobiliário e de petróleo e energia. Com Marcelo na cadeia, Emílio reassumiu as rédeas do grupo e passou a coordenar a estratégia para salvar o conglomerado. De uma cobertura de hotel em Brasília, orientou pessoalmente todos os acordos de delação premiada de executivos da empreiteira e, no pacote, revelou também a parte que lhe cabia nos crimes cometidos pelo grupo em troca da obtenção de generosos contratos com o governo e estatais como a Petrobras.

Uma das iniciativas do estrategista Emílio na esteira do turbilhão que engolfou sua família, porém, tem potencial para lhe dar novas dores de cabeça. Trata-se de uma decisão que vem sendo contestada, inclusive, nos autos do processo de recuperação judicial da Odebrecht – para a felicidade do filho Marcelo, com quem o empreiteiro trava uma guerra intensa. O caso envolve a transferência, por Emílio, de sua milionária coleção de obras de arte em uma operação que, ao fim e ao cabo, pode lhe render uma nova acusação de fraude.

Sete dias antes de dar partida no processo de recuperação do grupo, em 10 de junho de 2019, Emílio doou para os filhos Márcia, Mônica e Maurício e para o genro Daniel Lepikson sua participação na holding Boavista Participações – apenas Marcelo ficou de fora do rateio. A transferência das quotas da firma embute uma jogada importante: era em nome da Boavista que estava registrada a rica coleção de obras de arte de Emílio, além de dezenas de outros bens de luxo cuja soma, em valor histórico, ultrapassava os 100 milhões de reais.

ReproduçãoReprodução“Nossa Senhora do Leite”, de Carybé, que integra o rol
Em dezembro de 2018, poucos meses depois de tornar-se fiador em um acordo da Odebrecht com a Controladoria-Geral da União, a CGU, Emílio havia transferido o milionário rol de bens para a Boavista. Foi o primeiro movimento do empreiteiro. Depois, com a recuperação judicial em vista, ele passou a empresa para os filhos e o genro. A manobra chamou a atenção de credores da Odebrecht. Um deles, José Carlos Grubisich, ex-executivo da empreiteira que também chegou a ser alvo da Lava Jato e tem valores a receber da companhia, foi à Justiça para reclamar.

Ele argumenta que a jogada de Emílio pode prejudicar quem está na fila para receber. Diz que, caso a empresa não pague o que deve aos credores listados no processo de recuperação, a transferência faz com que não seja possível alcançar, depois, os bens do próprio Emílio como forma de acertar as contas. Na transferência, vale dizer, ele previu a impenhorabilidade dos bens, o que impede a Justiça de acessá-los para serem dados como garantia de suas dívidas ou das dívidas de suas empresas. Em nome da Boavista estão, por exemplo, uma casa de 8 milhões de reais em um condomínio no litoral baiano, três apartamentos e carros, como um Range Rover de 222 mil.

O rol de obras de arte, por sua vez, é composto precisamente por 548 peças, entre pinturas, esculturas e peças de tapeçaria, algumas do século XVII. A planilha com o inventário das obras é um passeio pela história da arte brasileira. Inclui, por exemplo, telas de Alfredo Volpi, apontado como o principal nome da segunda fase do modernismo brasileiro. Uma delas está avaliada em 2,1 milhões de reais. Há ainda, aos montes, peças assinadas por Carybé, José Pancetti, Manabu Mabe, Tomie Ohtake e Frans Krajcberg.

No papel em que estão registrados o que seriam os valores de aquisição, as obras de artistas modernistas, pós-modernos e contemporâneos somam 13 milhões de reais. Especialistas calculam que o valor atualizado, porém, vá muito além disso – só os tapetes antigos já fariam a soma subir consideravelmente. “Quem comprou ou orientou a compra entende de arte. Os nomes são muito fortes”, diz o professor e perito em artes Pedro Cavalheiro. Procurado por Crusoé, Emílio Odebrecht não se manifestou sobre a pendenga. O Ministério Público quer que a transferência dos bens seja apurada.

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