Marcos Corrêa/PRBolsonaro elevou o tom em videoconferência com governadores do Sudeste marcada pelo embate com João Doria

Aposta de alto risco

Ao questionar a quarentena, Jair Bolsonaro confronta o Congresso, os governadores e põe seu poder e sua capacidade de liderança à prova
27.03.20

Jair Bolsonaro decidiu fazer uma aposta nesta semana. Em meio à pandemia do novo coronavírus, definiu um lado e despejou todas as suas fichas nele. Numa espécie de “all-in”, colocou seu futuro político na mesa. Como ficou claro em pronunciamento na noite de terça-feira, 24, em que exortou a população a sair da quarentena e voltar à normalidade, depois de classificar mais uma vez a doença que devasta o mundo como um “resfriadinho”, o presidente tenta empurrar para os governadores o ônus da inevitável desaceleração econômica provocada pela restrição à circulação de pessoas. Se, mais adiante, as medidas de contenção derem certo, mesmo que as tenha encampado timidamente, Bolsonaro aposta que também colherá os louros do triunfo, pois independentemente dos caminhos e descaminhos trilhados até aqui, terá sido ele, no exercício do mandato de presidente da República, o responsável por enfrentar e debelar uma crise de proporção global. A questão é que, se houver contaminação em massa, somada ao colapso do sistema de saúde, a mortes a granel e a um dramático cenário econômico, seu próprio destino estará sob risco. Daí o grau de altíssima periculosidade da cartada.

Se é óbvio que a economia precisa ser preservada, também é evidente que o sistema de saúde não pode entrar em parafuso quando vidas dos brasileiros estão em jogo. A julgar pelo que acontece em países que estão bem à frente do nosso na curva de contaminação, a melhor receita até agora tem sido manter o máximo de pessoas em casa num primeiro momento, ao mesmo tempo que se expande a capacidade das emergências hospitalares e se investe na testagem do maior número de cidadãos. O efeito de ações como o fechamento do comércio já é trágico, mas os países mais afetados ensinam que o melhor é aguardar o pico de contágio – o que ainda não ocorreu no Brasil – para sopesar, mais adiante, as vantagens sanitárias e econômicas de um relaxamento do isolamento social. Os governadores resolveram adotar o protocolo proposto pelos especialistas. O presidente, por sua vez, partiu para lógica do “libera-geral” – e, em consequência, do confronto político.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMandetta (à dir) não se indispõe com Bolsonaro para evitar uma crise na crise
Outro risco embutido nessa estratégia é o de ficar isolado politicamente ou de ele mesmo se impor um autoisolamento, que foi exatamente o que aconteceu ao longo da semana. Sem partido, em rota de colisão do governadores e assistindo quase que impassível à deserção de aliados, como a deputada Janaína Paschoal e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, Bolsonaro passou a se apoiar cada vez mais na ala mais radical do bolsonarismo e no eleitorado que ainda lhe presta fidelidade. Internamente, até mesmo os militares já se entreolham com semblantes de preocupação. Integrantes da ala fardada fizeram questão de se dissociar, por exemplo, do pronunciamento de terça-feira do presidente. Não pelo conteúdo em si, porque muitos oficiais-generais até concordam que é preciso balancear os efeitos econômicos da crise e o risco à saúde da população. Mas pela forma. No mesmo dia em que o presidente foi à TV, o comandante do Exército, general Edson Pujol, adotou um tom bem mais olímpico. Em vídeo enviado à corporação, disse que a crise do coronavírus “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. “Vivemos o enfrentamento de uma pandemia que exige a união de todos nós brasileiros. O momento é de cuidado e de prevenção, mas também de muita ação por parte do Exército brasileiro”, afirmou.

A relação com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também já não é mais a mesma. Mesmo contrariado por defender o isolamento social e não o vertical pregado pelo presidente, que valeria só para idosos e grupos de risco, Mandetta, aos olhos do público, se enquadrou. O ministro, em entrevista coletiva, tentou não se indispor com Bolsonaro, equilibrando-se no limite da sua responsabilidade, sem incorrer na insubordinação ao mandatário do país. Mas exigiu o que chamou nos bastidores de “controle da estratégia” das ações de combate ao novo coronavírus. O ministro age com cuidado para não criar mais uma crise dentro da crise. Aliados e até parentes o aconselharam a pedir demissão, mas Mandetta tem dito a auxiliares que não pretende abandonar o barco em meio à tormenta. “Ele tem senso de responsabilidade e não pedirá demissão para ser substituído por um pau mandado de Bolsonaro, que poderá botar a perder todo o trabalho feito até agora”, disse a Crusoé um interlocutor do ministro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPronunciamento do presidente na TV teve o dedo de Carlos Bolsonaro
Enquanto coleciona rusgas com governadores e a cúpula do Congresso, Bolsonaro fortalece a musculatura do grupo mais restrito e ao mesmo tempo mais beligerante do governo: o núcleo ideológico comandado por seu filho 02, o vereador Carlos, que produz munição pesada para as redes sociais e, agora, também oferece conteúdos para pronunciamentos do presidente, como o da noite de terça. Até antes de a declaração ir ao ar, a aposta de assessores e da ala militar do governo era de que o presidente seguiria o tom de conciliação adotado em reunião com governadores do Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste e pregaria a união nacional no combate à doença. Era o que estava combinado. Até Carluxo entrar em campo – e de sola.

Segundo fontes do governo, a ausência da cúpula da Secretaria Especial de Comunicação — o secretário Fabio Wajngarten e o seu adjunto, Samy Lieberman, tiveram de entrar em quarentena após contraírem o novo coronavírus — deixou um vácuo de poder logo preenchido pelo 02, que perambulava cabisbaixo pelo Palácio do Planalto antes da eclosão da pandemia. O quadro mudou radicalmente a partir de então. Carluxo, na última semana, não só deu tintas fortes ao pronunciamento do presidente, como participou ativamente de três das cinco teleconferências com representantes dos estados na segunda-feira, 23, e na terça-feira, 24. O 02 também marcou presença na reunião entre Bolsonaro e ministros, na tarde de quarta.

Um alento em tempos de calamidade é que, enquanto o presidente prefere ouvir o grupo que o encoraja a pintar-se para a guerra político-ideológica, uma batalha mais importante vem sendo travada por integrantes do chamado gabinete de crise do Planalto: a destinada a mitigar os efeitos da disseminação do vírus que assola nações no mundo inteiro. O grupo está sob a batuta do ministro da Casa Civil, o general Walter Braga Netto. São eles que tocam as reuniões diárias, em geral às 10 horas, com executivos de todos os ministérios envolvidos nas ações contra a epidemia e atualizam Bolsonaro sobre o avanço da doença pelo país. Os especialistas dizem que os próximos dias serão determinantes para a definição da evolução da doença no Brasil. Aos brasileiros resta esperar que as autoridades à frente da guerra — seja o presidente, sejam os governadores, sejam os congressistas — tomem decisões acertadas. A despeito das diferenças políticas entre elas, a gravidade do momento pede que ajam guiadas pelo interesse comum, e não por suas conveniências eleitorais.

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