Até quando aguentaremos?
Invisível e ameaçador, o coronavírus transformou o planeta em um grande tabuleiro em que os registros oficiais de mortes pela Covid-19 em cada país são acompanhados em tempo real. A China, berço da pandemia, parece estagnada com 3,4 mil mortos, a confiar nos dados de um regime autoritário. Há duas semanas, o país foi ultrapassado pela Itália e, em seguida, pela Espanha. Ontem, os Estados Unidos deixaram todos para trás, com 40% dos novos infectados. Países em desenvolvimento, como o Brasil, aguardam o maior baque. Para o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a transmissão deve começar a crescer exponencialmente entre abril e junho, caindo mesmo só a partir de setembro.
A Itália já contabiliza o dobro do número de mortes da China. Lentos em adotar medidas de confinamento e de fechamento das indústrias e do comércio, os italianos têm testemunhado comboios do Exército saindo de pequenas cidades carregados com corpos para serem cremados em outros lugares. A cidade de Bérgamo ganhou a alcunha de “Wuhan italiana”, em referência à capital da província chinesa de Hubei, onde a pandemia começou. Com 1,1 milhão de habitantes — aproximadamente a população de Guarulhos, São Luís do Maranhão ou de Maceió —, a província de Bérgamo já teve 1.328 mortes pela doença.
Para evitar o triste destino da Itália, alguns governos adotaram políticas severas. Na Alemanha, reuniões com mais de duas pessoas foram proibidas. Testes massivos também têm sido realizados. Na Jordânia, todo o comércio, incluindo mercados, padarias e açougues, foram fechados. Quem não tinha alimento estocado ficou sem opção. Em Israel, pessoas só podem andar até 100 metros além de sua casa, algo como um quarteirão. Medidas proibindo a abertura de fábricas e do comércio foram decretadas com prazos distintos. Na Rússia, a ordem vai perdurar por uma semana. Na Índia, onde policiais foram filmados nesta semana batendo com cassetetes em cidadãos que saíram às ruas, 21. Na maioria dos países, o prazo foi de 15 dias.
Um estudo publicado pelo Imperial College, em Londres, no dia 16 de março, foi decisivo para orientar muitas dessas decisões. Segundo a pesquisa, caso os governos não fizessem nada, oito em cada dez britânicos e americanos seriam infectados e as mortes poderiam somar 510 mil no Reino Unido e 2,2 milhões nos Estados Unidos. O grande gargalo seria a quantidade de leitos intensivos e de UTIs disponível para atender os pacientes graves. Para que o número de casos não ultrapassasse a capacidade do sistema de saúde, o estudo dizia que o distanciamento social deveria ser ampliado. O raciocínio é simples: quanto mais tempo a doença demorar para se alastrar na sociedade, maiores as chances de pessoas com sintomas graves serem tratadas em leitos que contam com respiradores, ou “ventiladores mecânicos”, capazes de bombear ar para os pulmões. “Nenhuma intervenção de saúde pública com efeitos tão disruptivos na sociedade foi tentada anteriormente por um período tão longo. Como as populações e as sociedades reagirão ainda permanece incerto”, diz o estudo.
Nos dois estudos, os pesquisadores deixam claro que não estudaram os custos econômicos das medidas. Mas a conta foi feita de todo modo. O mundo todo entraria em recessão, incluindo a Europa, os Estados Unidos e o Japão. A China poderia crescer menos de 4% ao ano. No Brasil, o crescimento do PIB deve ser de menos de 1% — uma projeção até otimista, tendo em vista que o próprio Banco Central já prevê, oficialmente, crescimento zero neste ano. Na quinta-feira, os Estados Unidos se surpreenderam com a notícia de que 3 milhões de americanos perderam seus empregos em uma semana, um recorde histórico. Até então, o maior número era de 695 mil, em 1982.
O alarme econômico fez com que aqueles que tomaram medidas para impedir uma tragédia humana pelo coronavírus passassem a ser questionados sobre os danos que o isolamento da população pode causar à economia. Um dilema passou a amedrontar os governantes: salvar vidas e destruir a economia ou salvar a economia e deixar a população morrer. O binarismo, contudo, é falso. Primeiro porque a recessão também acarreta custos humanos. Segundo porque, se um governo ignorar a ameaça da Covid-19, a economia também será prejudicada. O desafio para as autoridades, no momento, é encontrar o ponto de equilíbrio dessa equação.
Ao longo da história, recessões também cobraram seu preço em vidas humanas. O crescimento do desemprego no Brasil entre 2012 e 2017 gerou 31 mil mortes adicionais, segundo um estudo da Fiocruz e da FGV. A taxa de mortalidade infantil teve uma elevação de 4,8% em 2016, depois de 26 anos de quedas consecutivas. Entre os motivos apontados estão a crise econômica e a epidemia de zika vírus. “É preciso que os governos controlem a disseminação do coronavírus, mas também é necessário dar uma solução para que a economia não entre em recessão. Nem mesmo a Suíça consegue aguentar ficar com tudo parado por mais de dois meses”, diz o médico Fabio Jung, ex-pesquisador do Centro MD Anderson em Houston, no Texas, e tem MBA em finanças e administração de saúde pela Wharton. “Precisamos urgentemente de medidas criativas e embasadas na Ciência.”
Na madrugada da quinta-feira, 26, o Senado americano aprovou o maior pacote de ajuda financeira da história: 2 trilhões de dólares. A lei inclui transferências diretas de 1.200 dólares para americanos com renda de até 75 mil dólares no ano. Também será dado um adicional de 500 dólares para cada criança. Com algum dinheiro extra para pagar o básico, espera-se que a população continue consumindo e não deixe de honrar as dívidas, o que geraria um efeito cascata na economia. A medida também expande os benefícios para desempregados, aumenta os gastos em hospitais e facilita os empréstimos para empresas. Na mesma quinta-feira, o G20 prometeu injetar 5 trilhões de dólares na economia mundial. Dias antes, a Alemanha aprovou um socorro de 750 bilhões de euros. A mesma quantia será despejada na economia dos países da União Europeia pelo Banco Central Europeu. A política de austeridade foi deixada de lado.
Para o Brasil, pacotes de ajuda dessa monta não seriam imagináveis, é claro. Dois trilhões de dólares, o total do pacote americano, é quase o dobro o PIB anual do país, pelo câmbio de 5 reais. “Se nós tivéssemos, há dez anos, feito as reformas necessárias, hoje talvez teríamos algum dinheiro disponível em caixa. Mas não é esse o caso”, diz Juliana Inhasz, coordenadora do curso de graduação em economia do Insper, em São Paulo. “Mais de 90% do orçamento é impositivo, está comprometido principalmente com a Previdência, e sobra muito pouco para ser realocado.” Os brasileiros mais prejudicados devem ser os trabalhadores informais, que não têm dinheiro para tempos bicudos. No Brasil, os informais representam 40% da força laboral. Um período prolongado com a atividade econômica parada levaria a um aumento da inadimplência e ao fechamento de muitos negócios. Medidas paliativas, como inserir rapidamente mais pessoas no Bolsa Família, acabam sendo frustradas pela burocracia brasileira.
Uma solução que começou a ser debatida nos últimos dias é permitir que os brasileiros mais jovens possam retornar ao trabalho. Os idosos, que integram o grupo de risco, seguiriam com pouco contato social. É o chamado “isolamento vertical”, que pode ser mais ou menos rigoroso, dependendo da faixa etária. Para não atiçar o vírus com esse afrouxamento, as autoridades de saúde precisariam, porém, popularizar os testes. Assim, seria possível identificar rapidamente os infectados e isolá-los. Os testes, que foram abundantemente usados na Coreia do Sul, explicam muito do sucesso do país em derrotar a pandemia.
O debate sobre quais são as providências corretas a serem tomadas só está começando. O sucesso e o fracasso dos países mais adiantados na pandemia será de grande valia. Na semana passada, pesquisadores da Universidade Oxford colocaram em dúvida algumas conclusões anteriores do Imperial College, aquele que orientou as políticas mais draconianas em todo o mundo. Para eles, o vírus já infectou mais da metade da população britânica (na semana passada, descobriu-se que até o príncipe Charles tinha contraído o vírus). Se o modelo matemático de Oxford estiver correto, isso significa que apenas 1 em cada 1.000 infectados fica realmente doente ou precisa ir a um hospital. Na quarta-feira, 24, o pesquisador que conduziu os estudos do Imperial College, Neil Ferguson, afirmou em um depoimento ao Parlamento que as limitações à locomoção de pessoas já teriam surtido efeito. Com isso, as mortes no Reino Unido dificilmente passarão de 20 mil. A projeção inicial era a de que, sem qualquer medida, os mortos somariam mais de 500 mil. A quantidade de leitos disponíveis no país, assim, daria conta do recado. É uma conta macabra, não importa a cifra.
Outra conta macabra. Na Itália, médicos já levantaram a suspeita de que apenas 12% dos mortos contabilizados na pandemia realmente morreram de coronavírus. Um estudo publicado no jornal da Associação Médica Americana mostrou que a média de idade das vítimas italianas é muito elevada: 79,5 anos para homens e 84 anos para mulheres. Cada um deles tinha uma média de 2,7 patologias graves. No entanto, os hospitais estão entupidos de adultos jovens, com menos de 40 anos. Angelo Borelli, chefe da agência de proteção civil, estimou que, para cada paciente diagnosticado, há outros dez na população. Se isso for verdade, então a taxa de letalidade, calculada como o número de mortes entre o total de infectados, pode ser um décimo do estimado.
O único fato inquestionável é que todas as simulações matemáticas e estatísticas não dão conta do que realmente importa para cada um de nós, nossos familiares e nossos amigos: as nossas próprias vidas. Como escreveu o líbano-americano Nassim Taleb, autor de A Lógica do Cisne Negro, em artigo publicado no jornal britânico The Guardian, no último dia 25, “deixar um segmento da população morrer pelo bem da economia é uma dicotomia falsa — além da repugnância moral da ideia. Quando se lida com profunda incerteza, tanto a governança quanto a precaução exigem que nos protejamos do pior. Embora a assunção de riscos seja um negócio deixado para os indivíduos, a segurança coletiva e o risco sistêmico são negócios de estado. Falhar nesse mandato de prudência, jogando com a vida dos cidadãos, é um erro profissional que se estende além do erro acadêmico; é uma violação da ética do governo. A política óbvia que resta agora é o bloqueio (das atividades), com testes maciços e rastreamento de contatos: siga as evidências da China e da Coreia do Sul, em vez de milhares de códigos de computador propensos a erros.”
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