FelipeMoura Brasil

Imprensa e dinheiro do povo

27.03.20

“Percebe-se aí um contraste lamentável com governantes que preferem dar dinheiro para a imprensa do que fazer o certo.”

O comentário é de Eduardo Bolsonaro sobre o relato de Abraham Weintraub de que o Ministério da Educação cortou 450 milhões de reais da TV Escola e de que este recurso pode ser usado agora no tratamento do coronavírus.

Eduardo omite que um dos “governantes que preferem dar dinheiro para a imprensa” é seu pai, Jair Bolsonaro.

Em primeiro lugar, o presidente prometeu extinguir a empresa estatal EBC (que administra a TV Brasil, uma rádio e uma agência online), o que resultaria em economia anual de centenas de milhões de reais dos pagadores de impostos, mas a manteve. Na enorme lista de profissionais na folha de pagamento (em março de 2019, eram 1.992), há vários jornalistas com mais de 30 mil reais de remuneração cada um, ainda em janeiro de 2020. Detalhe: a audiência, que já era ínfima (conhecida como “traço”), caiu 22% em doze meses: de 0,33 ponto em fevereiro de 2019 para 0,25 em fevereiro de 2020.

Em segundo lugar, a Secretaria de Comunicação do governo Bolsonaro – à qual está vinculada a EBC – distribui verbas a emissoras privadas de TV e rádio que topam fazer “jornalismo” chapa-branca. Em outras palavras, a Secom (como direi?) não curte noticiários inconvenientes, nem críticos incômodos na programação, especialmente em horário nobre, que dirá em cargos de poder, como sabem os donos desses veículos.

Silvio Santos, que criou o programa governista “A semana do presidente” ainda na ditadura e cortou a opinião de uma apresentadora crítica do governo do PT no ano eleitoral de 2014, quando Dilma Rousseff buscava a reeleição, também soube se aproximar de Bolsonaro. A parceria rendeu 511% de crescimento do faturamento publicitário do SBT já no primeiro trimestre de 2019 em relação a 2018. Só para a segunda fase da campanha da reforma da Previdência, a emissora levou 5,4 milhões de reais do governo, atrás apenas da Record, que embolsou 6,5 milhões de reais. A emissora do bispo Edir Macedo teve 659% de crescimento do faturamento publicitário junto à Secom no primeiro trimestre do ano passado.

Na safra da reforma, a RedeTV!, que não alcançou sequer 1 ponto de média de audiência em 2019, recebeu 1 milhão de reais do governo Bolsonaro. O programa de Marcelo de Carvalho, um dos sócios da emissora, ganhou 290 mil reais para merchandising, sendo que cada testemunho dele pró-reforma custou 7 mil reais de cachê. Coincidentemente, Carvalho defendeu com maiúsculas no Twitter o chefe da Secom, Fabio Wajngarten, das suspeitas de corrupção em razão de sua própria empresa receber dinheiro de empresas beneficiadas por suas decisões no governo.

(Aliás, a quem quiser descobrir outras emissoras beneficiadas pela Secom, recomendo pesquisar os dias das notícias de jornal sobre o escândalo de Wajngarten e verificar se os principais programas noticiaram e comentaram o escândalo, ou se os donos preferiram proteger o parceiro comercial dando ordem para omitir. Também recomendo conferir se o gueto virtual governista celebrou a saída de algum crítico incômodo do governo da emissora, daqueles que não topam descer junto na lama.)

Assim como Lula preferia dar entrevistas a blogueiros financiados com verba de publicidade das estatais então controladas pelo PT, Bolsonaro prefere dar entrevistas, em emissoras beneficiadas, para apresentadores pagos pelo seu governo na campanha da reforma, como José Luiz Datena (cujo programa recebeu 331 mil reais, sendo 12 mil reais ao apresentador por cada fala favorável), Ratinho (915 mil reais ao programa por quatro elogios) e Luciana Gimenez (153 mil reais ao programa por seis). Naquela segunda fase da campanha, o total gasto pelo governo com merchandising, que ainda inclui cachês de outros apresentadores (como Otávio Mesquita, Eliana, César Filho, Ana Hickman e Milton Neves), foi de 4,3 milhões de reais.

Apesar de todos esses números, a Secom de Wajngarten usa as redes sociais para divulgar até manifestação em meio à pandemia, como o coronapalooza bolsonarista de 15 de março. Mas não divulga uma listinha mensal com as verbas destinadas a TVs e rádio, o que dirá com a verba polpuda de publicidade federal das estatais hoje controladas pelo bolsonarismo.

Os brasileiros não sabem o valor total dos gastos do governo federal com a imprensa amiga; e, embora as narrativas governistas em noticiários e comentários estejam ainda mais constrangedoras durante a crise de saúde, os mais ingênuos ouvem e assistem ao fantástico mundo dos panos, sem saber que se trata de uma “Voz do Brasil” repaginada. 

A deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) tem um projeto de lei (n. 7, de 2020, assinado em 4 de fevereiro) que veda “o uso de recursos públicos em publicidade e/ou propaganda governamental e institucional em todo o estado de São Paulo”, exceto em campanhas de esclarecimento sobre questões de saúde, por exemplo, como se faz agora com o coronavírus. Dos 9 artigos, destaco esses três itens consecutivos, que o deputado federal Eduardo Bolsonaro poderia copiar e colar em projeto de lei para todo o país:

“§3º [do artigo 1º] – O responsável por gerenciar os recursos públicos investidos em campanhas educativas, informativas, ou de orientação social, fica impedido de ter qualquer participação, com ou sem poder de gestão, em empresas potencialmente beneficiadas na contratação.

Artigo 2º – Fica vedado o uso de recursos públicos em financiamentos a empresas de publicidade e/ou propaganda, bem como a veículos de comunicação de toda e qualquer natureza.

Artigo 3º – Fica vedado o uso de recursos públicos para pagar qualquer veículo de comunicação, jornalista, artista, comunicador, blogueiro, youtuber, apresentador de programa de rádio ou televisão e formadores de opinião em geral, para promover agentes políticos, com ou sem cargos, ou programas e realizações de governo e instituições.”

Das dez páginas de justificativa do projeto, que deveriam ser lidas por todos os jornalistas, parlamentares e consumidores do mercado brasileiro de comunicação, destaco alguns trechos:

“Ao possibilitar que um eventual candidato se utilize dos poderes de Estado para favorecer sua imagem perante a opinião pública, coloca-se em risco a equidade que deve marcar as disputas eleitorais em sistemas democráticos de governo.”

“(…) interessante notar que a Lei Federal n. 9.504/97, que dispõe sobre as regras para as eleições no país, prevê inúmeras restrições para a publicidade oficial no período próximo às eleições. Ora, não faz sentido proibirem-se tais medidas apenas às vésperas das eleições, mantendo-se, contudo, durante todo o mandato, autorizadas diversas condutas que podem até mais gravemente desequilibrar o pleito eleitoral!”

“Maria Helena Rolim Capelato, na obra ‘Multidões em Cena: propaganda política no varguismo e no peronismo’, bem aponta que, na era Vargas, ‘a cooptação do jornalismo deu-se por meio das pressões oficiais, mas também houve concordância de setores da imprensa com a política do governo… Muitos jornalistas não se dobraram às pressões do poder, mas, segundo Nelson Werneck Sodré, foram raríssimos os jornais empresariais que não se deixaram corromper por verbas e favores oferecidos pelo governo…’ (2a. Ed., São Paulo: Unesp, 2008, p. 87).”

“(…) em país em que sobram problemas nas mais diversas áreas, desde saúde e educação até segurança pública, autorizar que vultosos gastos com publicidade sejam realizados, diminuindo-se o orçamento de campos que deveriam receber maior atenção do governo, é revoltante!”

“(…) faz-se necessário zelar para que os recursos públicos, o dinheiro oriundo dos impostos pagos pelos cidadãos não seja utilizado em área inócua e não sirva para fragilizar a Democracia, seja por favorecer alguém que tem quatro anos para se promover, seja por conferir a esse alguém forte instrumento para controlar a Imprensa.”

“Há notícias de que conhecidos apresentadores de TV receberam verbas para defender programas de governo, o que fere a ética e, sobretudo, a confiança da população, que não pode ser manipulada por aqueles que gozam de sua mais pura confiança. Quando um cidadão assiste a um programa de TV, ouve um programa de rádio, ou lê um blog, acredita que seu apresentador ou escritor favorito está se manifestando em um sentido, ou outro, por efetivamente pensar da forma que diz pensar. Não é justo, com os cidadãos, admitir que o dinheiro dos impostos seja utilizado para a vil finalidade de comprar apoio a uma pauta governamental, por mais justa que seja.”

E finalmente:

“Àqueles que já estão ensaiando dizer que este projeto cerceia a Imprensa, aduz-se, sem medo de errar, ser o contrário, pois a censura se dá pela força e também pelo dinheiro.”

Se Eduardo Bananinha se revolta com governantes que financiam a imprensa, deveria propor um projeto de lei na Câmara dos Deputados (agora que a pandemia pesa contra seus passeios no exterior com dinheiro público), para vedar a distribuição de verbas federais a veículos de comunicação e blogueiros, com ou sem crachá – como fez Janaina, que trabalha mais que ele, na Alesp; e, como fez, ao menos pontualmente para o período de crise, o deputado federal Kim Kataguiri, ao incluir em suas propostas contra o coronavírus o item XI: “Limitação nos gastos de comunicação e publicidade pública para estabelecer finalidade exclusiva no combate e prevenção de pandemia”.

Seria bem mais coerente para Eduardo (e bem-vindo para o país) do que ele passar o dia nas redes sociais, com cinismo reacionário, atacando (e estimulando sua militância organizada a atacar) os jornalistas que não se dobraram às pressões do poder do papai.

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