Reprodução/YouTubeNas Filipinas, multas e prisão para quem espalhar informações falsas. Problema é quem julga o que é falso ou não

A verdade abafada

O rápido alastramento da pandemia foi acompanhado por bloqueios governamentais que frearam a livre circulação de informações. A China é só um exemplo
03.04.20

A China escondeu informações sobre a extensão da epidemia de coronavírus, divulgando um número inferior ao real de caos de infectados e de mortes. Segundo um relatório secreto das agências de inteligência americanas, entregue para a Casa Branca na semana passada, os dados falsos e incompletos atrapalharam a ação de outros governos no mundo. “Esse conjunto de dados é importante”, disse o secretário de estado americano Mike Pompeo, ex-chefe da CIA, em uma entrevista coletiva na terça, 31. “O desenvolvimento de terapias médicas e de medidas de saúde pública para salvar vidas depende da nossa capacidade de ter confiança e acesso a informações sobre o que realmente aconteceu.”

Ao brotar bem no coração da China, a pandemia de coronavírus ganhou uma característica que a acompanhou no resto de seu périplo mundial: o SARS-CoV-2 corre muito mais rápido do que as informações sobre ele. Já no final do ano passado, quando o vírus fez suas primeiras vítimas em um mercado de Wuhan, o Partido Comunista Chinês desceu sua mão pesada para suprimir ao máximo os dados sobre o surto.

Foi em 30 de dezembro que o médico oftalmologista Li Wenliang falou pela primeira vez sobre uma doença desconhecida para estudantes de medicina em um grupo privado do serviço de mensagens WeChat. A mensagem foi amplamente divulgada na rede social Weibo e acabou lida pelas autoridades. Rapidamente, 45 palavras e expressões foram censuradas nas redes sociais, segundo a organização Citizen Lab, da Universidade de Toronto. Entre elas estavam “pneumonia desconhecida em Wuhan”, “mercado de frutos do mar de Wuhan”, “variação do vírus SARS” e “Comitê de Saúde de Wuhan”. Quem buscava informações básicas sobre o que estava acontecendo não encontrava absolutamente nada.

Dois dias depois da mensagem de Li ser postada, ele e outros sete médicos foram interrogados por oficiais. Li ficou em uma prisão por várias horas e foi forçado a assinar uma declaração afirmando que tinha espalhado mentiras. Após contrair a Covid-19, ele morreu no dia 7 de fevereiro.

Li não foi o único a tentar soar o alarme. No final de janeiro, o advogado Chen Qiushi foi para Wuhan de trem para ver de perto o caos nos hospitais da cidade. Entrevistou familiares de vítimas e gravou imagens dos centros de quarentena. Quase que imediatamente, seus vídeos foram censurados. O comerciante de tecidos Fang Bin também fez vídeos da situação. Um deles mostrava oito corpos em sacos amarelos dentro de um micro-ônibus estacionado ao lado de um hospital.

ReproduçãoReproduçãoVídeo feito por Fang Bin: ônibus com corpos ao lado de hospital em Wuhan
Chen Qiushi e Fang Bin, que não eram jornalistas, foram perseguidos por relatar o que estava acontecendo. “Estou assustado. Na minha frente, tem o vírus. Atrás de mim, o poder legal e administrativo do estado chinês”, disse Chen em um vídeo de 30 de janeiro. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, em fevereiro, os pais de Chen souberam que ele estava “em quarentena”. Depois, não mais tiveram notícias. Fang teve as contas sociais encerradas, foi interrogado pela polícia, teve o laptop confiscado e também desapareceu.

Mais de 450 usuários de internet foram detidos na China desde janeiro por compartilhar informações sobre o coronavírus. Em fevereiro, dois analistas políticos que faziam comentários na televisão foram presos. Outro foi colocado em prisão domiciliar.

Os habitantes de Wuhan só começaram a receber dados sobre a doença depois que o Partido Comunista começou a tomar medidas e liberou os veículos oficiais para tratar do assunto. Até então, durante três semanas, os chineses ficaram completamente no escuro. Não sabiam como se prevenir ou o que podiam fazer quando os sintomas apareciam. “No início, as pessoas só ficaram sabendo daquilo que o governo permitiu que elas soubessem. As autoridades subnotificaram os casos de infecções, subestimaram a gravidade da doença e descartaram a probabilidade de transmissão entre humanos”, diz Yaqiu Wang, que estuda censura na China na Human Rights Watch.

Três semanas de inação é muita coisa quando o inimigo que se quer combater se propaga de maneira exponencial. Um estudo da Universidade de Southampton, no Reino Unido, concluiu que se o governo chinês tivesse atuado três semanas antes, o número de infectados seria reduzido em 95%, o que limitaria muito seu alcance mundial.

O Supremo Tribunal da China reconheceu no final de janeiro que a prisão de oito médicos acusados de espalhar rumores falsos, incluindo Li Wenliang, foi equivocada e contribuiu para enfraquecer a resposta à epidemia. Mas a mea-culpa não mudou o comportamento do governo comunista. Quase cinco meses após o início da epidemia, ainda há sérias dúvidas sobre os números que a China divulga para o mundo. Segundo o portal de notícias Caixin, cerca de 500 caixões são entregues diariamente às funerárias de Wuhan, o berço da pandemia. Em um único dia foram entregues 5 mil — o dobro da quantidade oficial de mortos na cidade.

ReproduçãoReproduçãoO húngaro Viktor Orbán: nova lei para consolidar poder
Para a China, mais importante que o bem-estar da população é a sobrevivência do regime. Permitir críticas em um momento que a economia já não cresce como antes seria um risco elevado para os burocratas. O mesmo raciocínio foi seguido por outros governantes autoritários, que também adotaram medidas para evitar o fluxo livre de informações e consolidar ainda mais o poder.

Na Hungria, o Parlamento aprovou um projeto de lei que pune com até cinco anos de prisão quem publicar notícias falsas sobre o coronavírus ou questionar medidas do governo. O primeiro-ministro, Viktor Orbán, poderá governar por decreto e estender o estado de emergência. Na Venezuela, o ditador Nicolás Maduro recrudesceu as medidas para dominar totalmente o fluxo de informações. Desde meados de fevereiro, 22 pessoas foram interrogadas pelo governo. Dentre elas, cinco profissionais de saúde. O médico Julio Molino foi detido no dia 17 de março por membros da Guarda Nacional Bolivariana após denunciar o estado precário dos hospitais no estado de Monagas. Molino foi acusado de incitação ao ódio, incitação ao pânico e, em seguida, colocado em prisão domiciliar.

Diversos outros países também entraram na onda repressiva do vírus com decretos, mudanças constitucionais e estados de emergência. Nas Filipinas, governada por Rodrigo Duterte, um projeto de lei aprovado pelo Congresso estabelece multas e prisão de até dois anos para quem espalhar informações falsas sobre o coronavírus nas redes sociais e outras plataformas. Marrocos, Omã, Jordânia e Iêmen ordenaram a suspensão da circulação de jornais impressos sob a justificativa de que poderiam espalhar o vírus. Nenhum estudo científico até agora comprovou a existência desse risco.

A retórica comum por trás de todas essas políticas duras é a de que o governo é a única fonte confiável para divulgar informações e que, portanto, suas decisões não podem ser questionadas. Qualquer um que se afaste do discurso oficialista — seja denunciando superfaturamento em compras emergenciais ou relatando as precárias condições dos hospitais —, poderia ser acusado de causar pânico na população. O raciocínio não cola. “Uma das coisas que essa epidemia nos ensinou é que precisamos prestar muita atenção às declarações das autoridades de saúde e dos cientistas. E eles estão falando com a população principalmente por meio da imprensa”, diz Courtney Radsch, do Comitê de Proteção aos Jornalistas, em Washington. Pesquisas em diversos países mostraram que a confiança nos jornais aumentou com a chegada da pandemia.

“O que deixa a população aflita não é o excesso de informação, mas a falta dela. As pessoas só ficam inseguras quando não acham as respostas para as suas perguntas”, diz Courtney.

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