Adriano Machado/Crusoé

O equilíbrio se impõe

A ala mais moderada do governo se move para que as recomendações das autoridades sanitárias prevaleçam sobre o ímpeto de Jair Bolsonaro na condução da crise do coronavírus
03.04.20

A semana que começou à base de nitroglicerina pura parecia terminar bem menos inflamável. Até que o presidente Jair Bolsonaro voltou a ensaiar riscar o fósforo. Em entrevista na noite desta quinta-feira, 2, o mandatário do país expôs publicamente suas divergências com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Reconheceu as escaramuças entre os dois e disse que, em alguns momentos, faltava humildade ao titular da Saúde para ouvir mais o presidente da República. Ao menos admitiu que não pretende apeá-lo do cargo “no meio da guerra”.

De fato, há uma guerra – e ela é travada dentro e fora dos prédios da Praça dos Três Poderes e da Esplanada dos Ministérios. Existe o combate ao avanço do novo coronavírus no país e a disputa pelo protagonismo na crise entre duas alas do governo: a que defende que nenhuma medida restritiva é pouca na tentativa de evitar a disseminação do vírus e a que prega o relaxamento do isolamento social a fim de impedir a catástrofe econômica. Hoje, apesar dos altos e baixos do presidente, existe um processo de distensionamento em curso, cujo alcance dependerá da dose de calmante a ser administrada pelos principais atores do governo na luta contra a pandemia. A dose utilizada por Bolsonaro em pronunciamento à TV pode até ter destoado daquela que ele administrara no fim da semana, mas pelo menos o remédio foi encontrado. Todos concordam que o melhor caminho é o meio termo entre a necessidade de o presidente fazer política e a atuação sem amarras do corpo técnico do governo que se ocupa hoje de impedir a propagação do vírus. Há, enfim, em meio a um aparente desequilíbrio, um ponto de equilíbrio.

Se até a noite desta quinta o presidente ainda garantia Mandetta no cargo, a despeito de tê-lo admoestado publicamente, é porque ambos, nos últimos dias, ajustaram o discurso. Durante a semana, o presidente conversou com o próprio ministro da Saúde e recebeu recados eloquentes da área militar, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso de que, se esticasse a corda e editasse o tal decreto relaxando o isolamento social poderia vir a enfrentar problemas de ordem institucional. Um ministro do STF chegou a dizer que não havia, no ordenamento jurídico brasileiro, “nada que autorizasse um presidente a colocar em risco a vida dos cidadãos”. Coube a Jorge Oliveira, amigo de Bolsonaro e chefe da Secretaria-Geral da Presidência, a tarefa de fazer a ponte com os demais poderes. Além dos alarmes emanados da cúpula do Judiciário, do Legislativo e da caserna, a voz das ruas – ou o rufar das panelas nas sacadas – ecoou de forma determinante para mudar o léxico presidencial na crise. Bolsonaro percebeu que o tom mais radical não tinha sido bem digerido nem mesmo pela base bolsonarista mais fiel e entendeu que a tragédia na saúde pública poderia dinamitar a popularidade de seu governo. Sentiu a pressão.

Alan Santos/PRAlan Santos/PREm pronunciamento, o presidente moderou o tom e levou alívio ao governo
Temendo ser escanteado, sossegou os que o instigavam a remar na direção contrária – leia-se Carlos Bolsonaro, agora dono de um gabinete no terceiro andar do Palácio do Planalto – e buscou uma dose de remédio mais próxima do ideal para acalmar os ânimos. No pronunciamento em que falou em “pacto nacional” para o enfrentamento à pandemia, no “maior desafio da nossa geração” e na preocupação de sempre “em salvar vidas”, o presidente experimentou um lance de empatia com a população até então inexistente.

Conforme apurou Crusoé, Bolsonaro escreveu o discurso sozinho. De próprio punho, em folhas de papel ofício, antes de auxiliares transferirem o texto para o teleprompter, aquele aparelho usado por apresentadores diante das câmeras. O presidente manteve o teor do pronunciamento em sigilo até o momento da gravação, o que causou apreensão entre alguns aliados. “Todo mundo vai gostar”, limitava-se a dizer Bolsonaro a quem o perguntava. Suas declarações, ao fim e ao cabo, produziram em todos os setores do país uma rara sensação de alívio – um princípio ativo revigorante na inglória batalha contra um vírus que tem assolado nações inteiras. Se um “ufa” – quase que em uníssono – não foi pronunciado, é certo que esse sentimento povoou a mente de todos, tão logo o presidente encerrou o pronunciamento de oito minutos.

As articulações de bastidores que levaram à mudança de tom de Bolsonaro começaram ainda no sábado, 28. Acompanhado de outros ministros das alas militar e jurídica, Mandetta dirigiu-se até o Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, para pedir carta branca para continuar pautando a atuação da pasta com base na ciência. A conversa teve momentos de tensão. O ministro defendeu que o presidente modulasse o discurso. Bolsonaro, por fim, aquiesceu. Mas no dia seguinte emitiu sinais dúbios. Saiu para dar uma volta pelo comércio de Brasília e de cidades-satélites, quando conversou com comerciantes e populares, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde e do próprio Ministério da Saúde. Na volta, em entrevista à imprensa, pela primeira vez cogitou baixar o tal decreto liberando todas as profissões legalmente regulamentadas a voltarem ao trabalho, desde que aquele trabalho fosse essencial para o sustento da família.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressVillas Boas: militares aconselham Bolsonaro a não esticar a corda
A turma do “deixa disso” teve de entrar em cena mais uma vez para evitar o pior. Nas horas seguintes, os ministros da Casa Civil, general Walter Braga Netto, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, redobraram os conselhos ao presidente para que ele suavizasse o discurso. Durante o processo de persuasão, os auxiliares tiveram a seu favor a ausência do vereador Carlos Bolsonaro, o filho que mais tem despertado os instintos primitivos do presidente. Para a felicidade geral da nação, o 02 havia voltado para o Rio de Janeiro na segunda-feira, 30, portanto, um dia antes do pronunciamento.

Nesse mesmo dia de manhã, em vez dar ouvidos a Carluxo, Bolsonaro preferiu ir até a casa do general Eduardo Villas Boas, ex-comandante do Exército e uma das vozes mais respeitadas da instituição. Do general, já com sérias dificuldades de comunicação em razão de uma doença degenerativa em estado avançado, o presidente captou apelos insistentes em favor da moderação. E concordou. Em contrapartida, Villas Boas acertou que o defenderia publicamente. “Conheço o presidente e sei que ele não tem outra motivação que não o bem estar do povo e o futuro do país. Pode-se discordar do presidente, mas sua postura revela coragem e perseverança nas próprias convicções”, dizia uma mensagem publicada na sequência no perfil do general do Twitter.

Do lado de Mandetta, os bombeiros foram seus próprios aliados políticos. O pedido foi para que o ministro da Saúde se mantivesse firme na defesa técnica das ações de combate ao coronavírus, mas evitasse criticar diretamente o presidente. No entorno do ministro, a avaliação é a de que Bolsonaro não reúne hoje condições políticas para demiti-lo. “Bolsonaro não possui nenhum nome com as qualidades do Mandetta para o lugar”, argumentou um aliado do ministro no DEM. A avaliação é compartilhada até mesmo por aliados de Bolsonaro, que veem Mandetta como o “novo Moro” do governo. Assessores do ministro ponderaram, porém, que ele precisava parar de se deixar enervar pelo embate político. Assim o ministro fez e, a exemplo do presidente, também modulou o discurso, que passou a incluir também a preocupação com a economia.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéCarlos viajou para o Rio e sua ausência foi comemorada pelos moderados
O titular da Saúde ainda atuou para baixar a temperatura política no seio do governo. “Ele quer sair das páginas de política dos jornais e voltar a ficar só nas de Saúde”, afirmou uma pessoa próxima ao ministro. Ainda na segunda-feira, 30, instado a comentar a caminhada de Bolsonaro pelo comércio de Brasília, Mandetta disse apenas que não era recomendável, mas evitou entrar em bola dividida. O chefe da Saúde exibia ali, ante os olhares de todos, a mensagem de que, no que dependesse dele, a bandeira branca estava mais do que desfraldada. Mas, vez ou outra, deixava escapar uma farpa.

Em mais um sinal da disputa por protagonismo na condução da crise, o presidente ordenou que as entrevistas diárias saíssem da sede da Saúde e passassem a ocorrer no palácio, com participação de outros ministros. Na primeira delas, Mandetta tratou de ironizar uma intervenção do chefe da Casa Civil que, ante a pergunta de um repórter sobre a possibilidade de demissão do ministro, correu para negar. “Deixar claro para vocês: não existe essa ideia de demissão do ministro Mandetta. Isso aí está fora de cogitação. No momento. Não existe”, disse Braga Netto. Com um sorriso de canto de lábio, Mandetta emendou: “Em política, quando a gente diz que não existe, a pessoa fala existe”.

A interlocutores, o ministro garante não se importar com o que Bolsonaro fala e pensa, desde que ele tenha carta branca para gerir a crise e manifestar suas opiniões. Quer dizer, desde que sua pasta não perca a autonomia para trabalhar, Bolsonaro, na condição de presidente da República, pode dizer o que lhe der na telha – até fazer política, se assim entender mais conveniente. Ao longo da semana, Mandetta verbalizou esse entendimento letra por letra em ao menos duas ocasiões. Disse, por exemplo, que não o ofendia em nada não ter sido convidado para uma reunião destinada a avaliar a eficácia da cloroquina na tarde de quarta-feira, 1º.

O ministro Jorge Oliveira atuou como ponte com os demais poderes
De novo, nas entrelinhas, ele demarcou a diferença. “Só trabalho com critérios técnicos e científicos. Só trabalho com academia. Só trabalho com o que é ciência. Agora, existem as pessoas que trabalham com critérios políticos, que são importantes também. Deixe que eles trabalhem”, disse o ministro. Na noite de quinta-feira, 2, procurado para comentar o teor da entrevista em que Bolsonaro disse que lhe faltava humildade em alguns momentos, Mandetta voltou a colocar panos quentes. “Não comento o que o presidente da República fala. Ele tem mandato popular, e quem tem mandato popular fala, e quem não tem, como eu, trabalha.”

Até segunda ordem, o ministro tem mesmo sinal verde para atuar. Ao longo dos últimos dias, ele preparou uma portaria que cria uma espécie de QG da crise do coronavírus na pasta que comanda. Segundo auxiliares, trata-se de um organograma definindo como se dará a gestão interna das medidas de combate à pandemia, dividindo tarefas e estabelecendo cadeias de comando. O ministério vem atuando na luta contra o avanço do vírus há semanas, como se sabe, mas até então não havia definido oficialmente essas questões. Hoje já funciona um gabinete de crise no Planalto, coordenado por Braga Netto. Mandetta, no entanto, foi autorizado pelo presidente a montar a sua própria sala de situação.

É a partir de lá que ele pretende montar o que no governo vem sendo chamado de “Plano de Ação Oficial” contra o coronavírus. A ideia é estabelecer parâmetros de estrutura para lidar com a pandemia. Segundo auxiliares do ministro, são pelo menos 10 pontos gerais, envolvendo número mínimo de leitos, equipamentos e profissionais de saúde. O plano também deve trazer por escrito recomendações sobre isolamento e maneiras de avaliação dos números da doença. O objetivo do Ministério da Saúde é que o material seja usado para balizar as futuras decisões de governadores e prefeitos.

Ninguém tem dúvidas no Planalto de que Bolsonaro jamais deixará de expor sua contrariedade em relação a medidas as quais considera demasiadamente restritivas. A estratégia adotada há quase um mês é óbvia: ele teme que a derrocada econômica imploda o seu mandato ou o projeto de reeleição. Logo, sempre que possível, irá marcar diferenças em relação aos governadores para, mais adiante, não perder a narrativa pró-economia na linha do “eu avisei”, como ocorreu quando divulgou ao longo da semana dois vídeos recheados de críticas ao isolamento, na esteira do pronunciamento de timbre apaziguador. Esse comportamento não irá mudar – e isso é algo que já está precificado dentro do governo. O que mudou, depois do pilates retórico em cadeia nacional de rádio e TV, é que ele passou a demonstrar o mínimo de sensibilidade e zelo com a saúde da população, e a considerar a importância do isolamento social, o que não havia ocorrido desde a eclosão da pandemia do coronavírus.

Se algo não sair do prumo nos próximos dias, e há sempre esse risco, a julgar pelos personagens envolvidos, pode-se dizer que, apesar das manifestações mais radicais do presidente aqui e acolá, a máquina do governo encontrou um ponto de convergência na crise. As alas pró-ciência e pró-economia estão cientes do seu papel e sabem até onde podem e devem avançar para não provocar melindres desnecessários. Por ora, no entanto, as medidas de contenção do vírus permanecem orientadas pelas decisões técnicas. Durante a semana, um dos parlamentares governistas brincou que o país, em meio à pandemia do coronavírus, é como o Jardim das Aflições de Olavo de Carvalho, numa alusão ao livro lançado pelo guru de Bolsonaro em 1995 e que, mais recentemente, virou filme. Estão todos aflitos, por óbvio. Mas o mais importante é que o presidente, contrariado ou não, continue deixando o jardim com quem sabe cuidar. Por enquanto, pode-se dizer que, como jardineiro-chefe, Mandetta tem se saído um exímio equilibrista.

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