Divulgação"O Executivo está com dificuldade para se entender com o Legislativo. Em uma pandemia, essa fragilidade fica evidente"

‘A caneta ainda é do presidente’

O cientista político Paulo Kramer explica o modus operandi de Bolsonaro e diz temer uma recaída populista do Congresso com o coronavírus
10.04.20

Durante três décadas, o cientista político carioca Paulo Kramer, de 62 anos, foi professor na Universidade de Brasília, a UnB. Nesse período, ele era visto com frequência nos corredores e salões do Congresso, um dos principais objetos de suas pesquisas. Aposentado desde 2016, Kramer tem se dedicado a dar consultorias para empresas e associações. Defensor do liberalismo, também tem dado cursos pela internet — prática impulsionada nas últimas semanas com as medidas de distanciamento social –, nos quais fala sobre o conservadorismo no Brasil e destrincha ideias de pensadores como Alexis de Tocqueville e Max Weber.

Kramer conversou com Crusoé na segunda, 6, no exato momento em que o presidente Jair Bolsonaro se encontrava com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O resultado da reunião — Mandetta não foi demitido — ainda não havia sido anunciado, mas Kramer já identificava no processo alguns traços típicos do comportamento de Jair Bolsonaro. “É muito do jogo do presidente. Ele testa a resistência do outro lado até o limite. Estica a corda ao máximo. Depois afrouxa, recua, quando sente que pode quebrar a cara”, diz.

Para o professor, a despeito do aparente isolamento, o presidente tem o poder da caneta e não faz sentido falar rem parlamentarismo branco no Brasil. Ao implodir o presidencialismo de coalizão, contudo, Bolsonaro tornou a relação com o Congresso muito instável, algo que ficou mais evidente com a pandemia. Sobre o coronavírus, Kramer acredita que a crise colocará novos temas na pauta, como o fortalecimento dos municípios. Ele também teme uma recaída populista do Congresso, principalmente se a economia demorar a aquecer.

Por que Bolsonaro ameaçou demitir Mandetta?
A esta altura do campeonato, todos nós já deveríamos estar acostumados com o modus operandi do presidente. Quando surge um tema controverso, ele eleva artificialmente a temperatura. Depois, coloca um termômetro e vê como as coisas estão. Se a temperatura estiver muito quente, ele joga água fria no paciente. Bolsonaro tensionou muito a corda. Criticou o Mandetta abertamente e recebeu o deputado federal Osmar Terra, seu possível substituto. A tensão chegou ao máximo. Mas aí Bolsonaro viu que Mandetta é o seu ministro com maior aprovação popular. Seu subordinado também tem a seu lado o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre. Bolsonaro percebeu que demitir Mandetta tiraria muito da sua força. No final de tudo, a montanha pariu um rato.

O que o presidente ganha com isso?
É muito do jogo do presidente. Ele testa a resistência do outro lado até o limite. Estica a corda ao máximo. Depois afrouxa, recua, quando sente que pode quebrar a cara. Bolsonaro também não demitiu o ministro da Justiça, Sergio Moro, que manteve o seu indicado na Polícia Federal, Maurício Valeixo. Quando a crise passa, Bolsonaro sai com uma vantagem. Como são as fontes palacianas que alimentam o noticiário, os repórteres publicam as notícias que os assessores do Planalto sopram para eles. Só que a profecia não se cumpre. Os bolsonaristas então saem dizendo que a imprensa especula no vazio. Dizem que a mídia é uma gigantesca fábrica de fake news. Essa é, portanto, uma maneira de o presidente extrair um ganho político. Isso dá credibilidade para ele, e credibilidade é poder. Bolsonaro continua com um grau razoável de iniciativa nas mãos. A caneta ainda é do presidente. Vivemos um período com equilíbrio instável, mas é assim que ele age.

Elza Fiuza/Agência BrasilElza Fiuza/Agência Brasil“Unimos o presidencialismo com o pluripartidarismo. Aí a coisa se complicou”
O fato de Jair Bolsonaro não ter um partido o prejudica?
Nossa história política foi dividida entre AC e DC: “antes do coronavírus” e “depois do coronavírus”. No ano passado, Bolsonaro calculou que teria tempo suficiente para que seu projeto de partido, a Aliança Pelo Brasil, crescesse. Ele não estava preocupado com a eleição municipal, mas com a de 2022. Bolsonaro imaginou que teria um partido musculoso até lá para tentar a reeleição. É claro que seria muito forte. Seria o partido do presidente da República. No governo de Dilma Rousseff, ela apoiou o Gilberto Kassab para criar o PSD. Os demais partidos ficaram furiosos com a presidente e com o novo partido, que recrutou nomes importantes deles. Dilma não era nenhuma estrategista política, mas ela era a presidente e tinha a caneta na mão. Ao prestigiar a sigla do Kassab, ela desequilibrou o jogo. Agora, quando um presidente como Bolsonaro, que tem um eleitorado muito fiel e mobilizado, lança um partido, então essa sigla teria uma capacidade de atração extraordinária.

No início do ano passado, o sr. parecia otimista com a possibilidade de Bolsonaro superar o presidencialismo de coalizão. Depois, debateu-se muito se o país estaria enfrentando um parlamentarismo branco. Qual é a situação agora?
Em 2018, Bolsonaro entendeu que tinha um mandato claro do eleitorado para implodir o presidencialismo de coalizão. As pessoas queriam que ele acabasse com a distribuição de cargos em troca de fidelidade dos partidos ao governo. Mas essa atitude teve um custo, a desarticulação política. O Executivo está com dificuldade para se entender com o Legislativo. Em uma situação excepcional como a de uma pandemia, essa fragilidade fica mais evidente. Mas duvido que Bolsonaro vá, por vontade própria, voltar ao status quo anterior, o do presidencialismo de coalizão. Sua base jamais o perdoaria. Com isso, provavelmente continuaremos vendo Bolsonaro sendo ele mesmo. Ele seguirá desafiando o Congresso e botando a culpa das coisas ruins nos deputados. Continuará tensionando e afrouxando a corda.

Dá para falar de um parlamentarismo informal?
Nosso sistema não permite tal coisa. Um presidente no Brasil é eleito com dezenas de milhões de votos, enquanto um Rodrigo Maia só conseguiu alguns poucos milhares. Além do mais, a população já rejeitou esse modelo duas vezes, em janeiro de 1963 e abril de 1993.

O sr. é a favor do presidencialismo ou do parlamentarismo?
Sou parlamentarista raiz. Gosto do sistema puro, como o que existe no Reino Unido e na Itália. O sistema misto, como o da França, em que o presidente é eleito diretamente, não me agrada e jamais serviria para o Brasil. Trocar um sistema presidencialista por um parlamentarista com eleições para presidente não daria certo por aqui. O presidente não demoraria nada para dar um chapéu no primeiro-ministro, dizendo que teve mais votos. Essa com certeza não seria a receita para a nossa crise. Seria pular da frigideira do presidencialismo de coalizão para cair no fogo do parlamentarismo misto.

Como estão os partidos hoje?
Eles não têm capilaridade. São meros blocos parlamentares. Nosso sistema é disfuncional. O presidencialismo, como foi concebido originalmente pelos que escreveram a Constituição dos Estados Unidos, é um sistema destinado a funcionar com poucos partidos. De preferência, com dois. Donald Trump sabe que, ao fim e ao cabo, os republicanos não têm alternativa a não ser marchar com ele. Os democratas também sabem que devem se opor a Trump. No Brasil, unimos o presidencialismo com o pluripartidarismo. Aí a coisa se complicou. Este monte de partidos cria uma infinidade de grupos de veto, que colocam cascas de banana em cada etapa do processo decisório. Então o presidente da República precisa ser mais que um político. Tem que ser um malabarista do Cirque du Soleil.

DivulgaçãoDivulgação“Trocar um sistema presidencialista por um parlamentarista com eleições para presidente não daria certo por aqui”
Como será o Brasil depois do coronavírus?
De cara, será um país mais pobre. As pessoas vão perder riqueza, ativos, empregos. Estávamos saindo de uma recessão violenta e caímos novamente no buraco. Por outro lado, isso poderá ser um bom argumento para avançar com as reformas, como a tributária e a administrativa. Há ainda várias reformas micro, que são setoriais: a privatização das ferrovias, o novo marco regulatório para o saneamento, a nova lei de licitações e a independência do Banco Central. Essas coisas poderiam melhorar o clima de expectativas.

Há o risco de o estado ficar ainda maior depois que o coronavírus passar?
Quando o estado cresce em uma emergência como esta, dificilmente volta ao tamanho de antes. Quase todas as medidas que foram tomadas nos últimos dias trazem uma ressalva: elas foram desenhadas para ajudar no período da calamidade. Meu medo é que o Brasil mergulhe em uma estagnação demorada. O Congresso, então, poderia mudar de pensamento. Até agora, o roteiro na cabeça dos deputados é que o governo está quebrado, com poucos recursos, e é necessário deslocar o eixo econômico para o mercado, ampliando os investimentos privados. Deputados e senadores têm uma percepção clara de que, se eles não fizerem as reformas, serão responsabilizados mais tarde. O que eu temo é que, se a retomada não aparecer, o Congresso tenha uma recaída populista. Este é um perigo bem concreto. Se os gastos forem ampliados, aí tudo irá por água abaixo.

A pandemia deve incluir novos temas na pauta política?
Um assunto que ganhará força é o do federalismo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já compartilhava antes a ideia de deslocar mais recursos para os municípios. Ele tem na cabeça o modelo americano, de empoderamento dos governos locais. Mais Brasil e menos Brasília. Então, pode ser que o federalismo agora entre em uma etapa mais vigorosa. Como essa pandemia atua principalmente no espaço social em que os indivíduos efetivamente moram, o município, a questão do fortalecimento financeiro das cidades deverá ganhar peso. O Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) circulou há alguns dias uma análise das repercussões da pandemia. Uma das poucas conclusões é a de que o melhor foco para o combate da doença é o municipal. Além disso, a cobrança da população pela retomada das atividades deve aumentar e isso será sentido principalmente pelos prefeitos.

Campanhas espontâneas nas redes sociais têm defendido o SUS. O serviço vai ganhar força no Brasil pós-coronavírus?
O SUS é um tabu no Brasil. Quem tem críticas ao sistema tem medo de falar em público. Na Constituinte de 1988, a esquerda canonizou o SUS. À época, a imprensa chegou a falar até de um Partido Sanitarista. Parlamentares médicos e trabalhadores da área da saúde formaram uma coalizão pluripartidária a favor do SUS. O problema na minha opinião é o de todo o setor público. Como o estado é, por definição, monopolista, ele não precisa competir com ninguém. Sem rivais, o estado tem poucos incentivos para cortar a gordura nas áreas que estão no meio, isto é, a burocracia. Aquilo que é a atividade-fim, o atendimento à população, fica prejudicado. Os planos de saúde privado, por outro lado, estão sempre cortando a burocracia para melhorar a qualidade dos serviços que prestam.

É possível melhorar o SUS?
O SUS pode ser aperfeiçoado, claro. O sistema tem áreas de excelência, como o Instituto Nacional do Câncer, o Inca, no Rio de Janeiro. Os usuários com renda suficiente poderiam pagar alguma coparticipação nas consultas, contribuindo para o reforço financeiro do sistema. O dinheiro faria diferença, porque sabemos que muitos pacientes morrem na fila dos hospitais públicos. Esta situação precária tem feito com que o brasileiro, que tradicionalmente sempre desejou uma casa própria e um carro, passasse a ter também o sonho de um plano privado de saúde.

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