Negócios à parte
A pandemia do coronavírus tem suscitado duas visões antagônicas sobre a China. Ao abafar os primeiros casos da Covid-19 em um mercado de frutos do mar em Wuhan, o país comunista postergou as medidas necessárias. A demora permitiu que o vírus se espalhasse e pegasse o mundo de surpresa. Quase 100 mil pessoas morreram com a doença no mundo, o que tem despertado muito rancor contra o regime chinês. Ao mesmo tempo, a China foi o país que mais se lançou para ajudar os demais, enviando médicos, remédios e equipamentos para o exterior. Também é um dos únicos que conseguiram elevar a sua capacidade de produção e está em condições de exportar máscaras, luvas e respiradores. O país ainda será fundamental mais adiante, quando os governos passarem a priorizar a retomada da economia. Como grande comprador de matérias-primas, a China será imprescindível na recuperação do mundo.
Esses dois pontos de vista sobre a China estão presentes na sociedade brasileira e dentro do governo. Nos últimos dias, manifestações de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro na internet jogaram a culpa da tragédia na China. Logo em seguida, setores mais pragmáticos dentro do governo e no empresariado correram para jogar água na fervura. Entre piadas de mau gosto e acenos de amizade, a impressão é a de que o segundo grupo conseguiu evitar o pior.
A faísca na relação entre os países luziu no último dia 19, quando o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente Jair Bolsonaro, atribuiu à China a responsabilidade pela pandemia. No sábado, 4, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez publicações em que zombava do sotaque chinês e insinuava supostas vantagens geopolíticas para o país em decorrência da pandemia. As declarações de Eduardo e de Weintraub desencadearam uma guerra ideológica anti-China nas redes sociais. Apoiadores do governo correram para aderir à campanha. Na última segunda-feira, as hashtags #BoicoteaChina e #BoicoteComercialaChinaJa ficaram entre as mais populares do Twitter. Blogueiros bolsonaristas ajudaram a inflar o movimento.
O movimento para conter a fúria da militância anti-China veio dos setores que sabem o quanto o país importa para a balança comercial brasileira. Os números são superlativos. Quase um terço de tudo que os brasileiros vendem ao exterior vai para o gigante asiático. Apenas no primeiro trimestre de 2020, o Brasil exportou 14,1 bilhões de dólares para a China. O país é, de longe, o principal destino dos produtos brasileiros no exterior. Para se ter uma ideia, o volume de negócios é quase três vezes maior do que o do nosso segundo maior comprador, os Estados Unidos.
No governo, um dos que correram para conter a situação foi o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que abriu um canal de diálogo direto com Wanming. Como a China produz cerca de 90% dos insumos necessários para lutar contra a Covid-19, uma megaoperação foi montada para trazer 960 toneladas de suprimentos ao Brasil. A aproximação entre Mandetta e Wanming se deu à revelia do Itamaraty. O ministério de Relações Exteriores, que tem como missão a gestão das relações com outros países, acabou tendo de ceder o espaço. O ministro Ernesto Araújo, que tinha saído em defesa de Eduardo Bolsonaro no primeiro embate com os chineses, baixou o tom.
O papel do país asiático também é central na indústria da mineração. Por isso, Vale, CSN e Anglo American mantêm um trabalho de diplomacia empresarial em Pequim. Mais de 80% da produção de minério de ferro brasileira é exportada. E de tudo o que vai para o exterior, 60% têm a China como destino. Cerca de 1 milhão de pessoas vivem em cidades com dependência direta da mineração. Em algumas cidades, a concentração econômica da arrecadação na mineração chega a 90%. “Qualquer interferência em negócios com a China seria uma pancada imensa, que afetaria recursos para a saúde e para a educação desses municípios”, explica Waldir Salvador, consultor de relações internacionais e econômicas da Associação dos Municípios Mineradores. “Quanto mais rápido a China e outros países se reerguerem, melhor para os empresários de setores como o de soja, de carnes e do minério de ferro.”
Para o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Andrew Tang, os interesses dos dois países são convergentes. “Três ou quatro anos atrás, na pior fase da crise brasileira, a China investiu cerca de 120 bilhões de dólares no país, emprestou 15 bilhões de dólares para a Petrobras e criou um fundo de 20 bilhões de dólares para infraestrutura”, diz Tang. “Os bons patriotas deveriam apoiar esta relação.” Reconhecer a importância estratégica da China para o Brasil não obriga ninguém a se calar contra a sua vontade. Cérebro e coração têm todo direito de se manifestarem, mas há hora para tudo.
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