XinhuaAo abafar os primeiros casos, a China ajudou a espalhar o vírus. Agora, o mundo infectado precisa da indústria chinesa

Negócios à parte

O acirramento do discurso político dos aliados mais radicais de Bolsonaro contra a China pode ser prejudicial ao Brasil, e o problema não é só a balança comercial
10.04.20

A pandemia do coronavírus tem suscitado duas visões antagônicas sobre a China. Ao abafar os primeiros casos da Covid-19 em um mercado de frutos do mar em Wuhan, o país comunista postergou as medidas necessárias. A demora permitiu que o vírus se espalhasse e pegasse o mundo de surpresa. Quase 100 mil pessoas morreram com a doença no mundo, o que tem despertado muito rancor contra o regime chinês. Ao mesmo tempo, a China foi o país que mais se lançou para ajudar os demais, enviando médicos, remédios e equipamentos para o exterior. Também é um dos únicos que conseguiram elevar a sua capacidade de produção e está em condições de exportar máscaras, luvas e respiradores. O país ainda será fundamental mais adiante, quando os governos passarem a priorizar a retomada da economia. Como grande comprador de matérias-primas, a China será imprescindível na recuperação do mundo.

Esses dois pontos de vista sobre a China estão presentes na sociedade brasileira e dentro do governo. Nos últimos dias, manifestações de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro na internet jogaram a culpa da tragédia na China. Logo em seguida, setores mais pragmáticos dentro do governo e no empresariado correram para jogar água na fervura. Entre piadas de mau gosto e acenos de amizade, a impressão é a de que o segundo grupo conseguiu evitar o pior.

A faísca na relação entre os países luziu no último dia 19, quando o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente Jair Bolsonaro, atribuiu à China a responsabilidade pela pandemia. No sábado, 4, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez publicações em que zombava do sotaque chinês e insinuava supostas vantagens geopolíticas para o país em decorrência da pandemia. As declarações de Eduardo e de Weintraub desencadearam uma guerra ideológica anti-China nas redes sociais. Apoiadores do governo correram para aderir à campanha. Na última segunda-feira, as hashtags #BoicoteaChina e #BoicoteComercialaChinaJa ficaram entre as mais populares do Twitter. Blogueiros bolsonaristas ajudaram a inflar o movimento.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming
O representante do governo de Pequim em Brasília reagiu com indignação. “O lado chinês aguarda uma declaração oficial do lado brasileiro sobre as palavras feitas pelo ministro da Educação, membro do governo brasileiro. Nós estamos cientes de que nossos povos estão do mesmo lado ao resistir às palavras racistas e salvaguardar nossa amizade”, escreveu o embaixador Yang Wanming no Twitter.

O movimento para conter a fúria da militância anti-China veio dos setores que sabem o quanto o país importa para a balança comercial brasileira. Os números são superlativos. Quase um terço de tudo que os brasileiros vendem ao exterior vai para o gigante asiático. Apenas no primeiro trimestre de 2020, o Brasil exportou 14,1 bilhões de dólares para a China. O país é, de longe, o principal destino dos produtos brasileiros no exterior. Para se ter uma ideia, o volume de negócios é quase três vezes maior do que o do nosso segundo maior comprador, os Estados Unidos.

No governo, um dos que correram para conter a situação foi o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que abriu um canal de diálogo direto com Wanming. Como a China produz cerca de 90% dos insumos necessários para lutar contra a Covid-19, uma megaoperação foi montada para trazer 960 toneladas de suprimentos ao Brasil. A aproximação entre Mandetta e Wanming se deu à revelia do Itamaraty. O ministério de Relações Exteriores, que tem como missão a gestão das relações com outros países, acabou tendo de ceder o espaço. O ministro Ernesto Araújo, que tinha saído em defesa de Eduardo Bolsonaro no primeiro embate com os chineses, baixou o tom.

Janaina Duarte/DivulgaçãoJanaina Duarte/DivulgaçãoMina da Vale, em Minas Gerais: 1 milhão de pessoas depende da mineração
Outra frente para apaziguar os ânimos partiu dos empresários. “Em vez de entrar na polêmica, o que fizemos foi mandar sinais para mostrar o grande respeito que temos à história da China e ao povo chinês e nosso amplo interesse de manter essa boa relação comercial, que tem grande espaço para crescer”, diz Paulo Hartung, presidente do Instituto Brasileiro de Árvores. A entidade representa a cadeia produtiva de árvores plantadas com fins industriais e reúne empresas de celulose, um dos principais produtos de exportação do Brasil para a China. Ex-governador do Espírito Santo e com vasta experiência na vida pública, Hartung chamou preventivamente o embaixador José Carlos da Fonseca Júnior para ajudar a aprimorar os negócios internacionais e cuidar da relação com a China. No primeiro trimestre deste ano, praticamente a metade do valor negociado pelas companhias de celulose brasileiras veio da China.

O papel do país asiático também é central na indústria da mineração. Por isso, Vale, CSN e Anglo American mantêm um trabalho de diplomacia empresarial em Pequim. Mais de 80% da produção de minério de ferro brasileira é exportada. E de tudo o que vai para o exterior, 60% têm a China como destino. Cerca de 1 milhão de pessoas vivem em cidades com dependência direta da mineração. Em algumas cidades, a concentração econômica da arrecadação na mineração chega a 90%. “Qualquer interferência em negócios com a China seria uma pancada imensa, que afetaria recursos para a saúde e para a educação desses municípios”, explica Waldir Salvador, consultor de relações internacionais e econômicas da Associação dos Municípios Mineradores. “Quanto mais rápido a China e outros países se reerguerem, melhor para os empresários de setores como o de soja, de carnes e do minério de ferro.”

Para o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Andrew Tang, os interesses dos dois países são convergentes. “Três ou quatro anos atrás, na pior fase da crise brasileira, a China investiu cerca de 120 bilhões de dólares no país, emprestou 15 bilhões de dólares para a Petrobras e criou um fundo de 20 bilhões de dólares para infraestrutura”, diz Tang. “Os bons patriotas deveriam apoiar esta relação.” Reconhecer a importância estratégica da China para o Brasil não obriga ninguém a se calar contra a sua vontade. Cérebro e coração têm todo direito de se manifestarem, mas há hora para tudo.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO