O cerco do DEM
Por trás do enredo envolvendo a demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, confirmada nesta quinta-feira, 16, há uma guerra fria político-partidária: de um lado da trincheira encontra-se o DEM, partido que controla dois ministérios no governo (Cidadania e Agricultura) e comanda a Câmara e o Senado, e do outro o presidente Jair Bolsonaro. O DEM enxerga na atual crise uma oportunidade para a retomada do protagonismo de outrora na cena política nacional. Para chegar lá, conta com trunfos importantes que lhes escapavam às mãos desde o governo FHC, quando a legenda era peça fundamental no tabuleiro político de Brasília. A meteórica popularidade de Mandetta, até há pouco aprovado por 76% da população, é o principal deles. Ao deixar o ministério, o médico se transformou quase que instantaneamente no maior ativo político da legenda. Abrigado ou não na estrutura administrativa de um governo estadual, Mandetta será o principal antípoda de Bolsonaro no terreno da saúde, que por muito tempo ainda monopolizará as atenções não só no Brasil como no mundo. Embora o político sul mato-grossense já tenha dito que irá aproveitar a saída do governo para se dedicar inicialmente à família, o DEM tem projetos para ele. Por ora, a ideia é criar um núcleo vinculado à Fundação Liberdade e Cidadania, braço teórico do partido, para que o ex-ministro siga trabalhando em ações de combate ao coronavírus. Ainda não se fala abertamente em candidatura, uma vez que no contexto de uma crise sem precedentes na história recente ninguém arrisca vaticinar nada que ultrapasse três meses. Mas é certo que os planos ultrapassam as fronteiras de seu estado e miram o ano de 2022.
Bolsonaro, por sua vez, quer evitar ficar refém do partido que ajudou a turbinar. Para além das divergências sobre as políticas para combater o coronavírus, há também no movimento do presidente de apear Mandetta do Ministério da Saúde a intenção de reduzir o espaço político do DEM. Hoje, o partido usa as armas atualmente à disposição para ampliar o cerco sobre o mandatário do país – de olho no horizonte eleitoral. O DEM não é só a serpente que o presidente alimentou ao ser um dos artífices da eleição de Davi Alcolumbre ao comando do Senado e ao acomodar três integrantes da sigla na Esplanada dos Ministérios. De certa forma, o partido está para Bolsonaro como o PMDB esteve para o PT de Lula e Dilma Rousseff. Senão, vejamos. Tido pelo bolsonarismo com um dos maiores adversários políticos de Bolsonaro, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, assim como Eduardo Cunha em 2016, é o dono da caneta capaz de deflagrar um processo de impeachment contra o presidente da República. Pedidos já não faltam. Hoje ele refuta o tema, não por falta de vontade, mas por cálculo político. Sabe que não é hora e que o assunto não teria fôlego para avançar no Congresso. Mas Maia, além de controlar um dos atores cruciais do processo, os partidos do fisiológico Centrão, também sabe que política é como nuvem. E, se somada a velocidade com que a popularidade de Bolsonaro se deteriorou nos últimos tempos ao que ainda pode vir por aí para desgastar ainda mais a imagem do presidente em decorrência de uma brutal crise sanitária e econômica, o cenário de tempestade perfeita passa a ser factível.
E é aí que, mais uma vez, entra o fator Mandetta, único integrante do primeiro escalão nacional cujo valor do passe político aumentou exponencialmente desde que o coronavírus chegou por aqui. O ex-ministro tende a se transformar em um comentarista e avaliador permanente das ações do governo e de seu sucessor, Nelson Teich, escolhido por Bolsonaro. A qualquer sinal de agravamento da situação, poderá confortavelmente dizer que a estratégia de combate à epidemia não funcionou porque seu trabalho foi interrompido e, antes ainda, era sabotado pelo presidente. O tilintar das panelas ecoado com vigor em diferentes cidades do país tão logo foi anunciada a sua demissão é um sinal. “O Moro que se cuide, temos um novo herói nacional”, comemorou um expoente do DEM.
O líder do DEM na Câmara, deputado Efraim Filho, evita falar em eleições, mas reconhece que a ascensão fulminante de Mandetta e o papel estratégico de Maia e Alcolumbre conferem musculatura ao partido até mesmo para as eleições municipais deste ano. A sigla comanda hoje as prefeituras de três capitais: Salvador, Florianópolis e Curitiba, e projeta um crescimento expressivo no Centro-Sul, no Norte e no Nordeste. “Vamos sair mais fortes da eleição municipal e, com isso, ganhar envergadura para 2022. Chegaremos à eleição presidencial com condições de nos sentarmos à mesa e participar das tomadas de decisão”, diz o deputado.
A ousadia de Mandetta, para além da posição confortável que a condução da crise em consonância com os líderes mundiais lhe assegurava, guarda relação também com as costas quentes que o comando partidário sempre lhe proporcionou. Por mais que ele se tenha se esforçado para tentar despolitizar suas ações, são fartos os sinais da estratégia de imposição. Foi no sábado, 10, por exemplo, após uma longa conversa com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que Mandetta decidiu dar a entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, no domingo, 12, direto do Palácio das Esmeraldas, sede do governo local. Até recentemente, Caiado era o governador mais alinhado com o presidente da República. Hoje, reza na mesma cartilha da maioria do partido que optou por se afastar de Bolsonaro – umas das exceções é o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, bolsonarista de carteirinha. O prefeito de Salvador e presidente nacional da legenda, ACM Neto, por exemplo, não poupa críticas ao chefe do Planalto. Na época da indicação de Eduardo Bolsonaro, o filho 03, para a embaixada de Washington, em julho, o baiano classificou o episódio como “lamentável”. Os adjetivos usados por ACM Neto para classificar os atos de Bolsonaro ficaram ainda mais carregados de lá para cá.
Se democratas com mandato no Executivo desistiram de dar suporte ao governo, é no Congresso que estão as vozes do DEM mais críticas ao presidente – e as peças do partido com potencial de causar sérios embaraços a seu governo. Maia e Alcolumbre cercam o capitão numa espécie de guerra psicológica. Tentam impingir à relação institucional um ar de independência, mas as tensões entre a cúpula do Legislativo e o Palácio do Planalto são inegáveis e crescentes. Rodrigo Maia foi um dos expoentes do DEM que aplaudiu de pé a iniciativa de Mandetta de confrontar o presidente, o que acabou culminando com sua demissão. O presidente da Câmara, nos últimos meses, não perde uma oportunidade sequer de fustigar Bolsonaro. Nos últimos dias, Maia tem estado mais irascível. O que o levou aos nervos à flor da pele foi a atitude de Bolsonaro de prescindir da sua interlocução para receber, individualmente, os líderes do Centrão em audiência no Palácio do Planalto.
O presidente da Câmara é um dos construtores do projeto do DEM para 2022. Independentemente de ter um candidato próprio ou não à sucessão de Bolsonaro, Maia quer tornar o partido uma força capaz de influir decisivamente no pleito. Filho do ex-prefeito do Rio Cesar Maia, ele já experimentou o céu e o inferno no comando do DEM. Depois de conduzir o processo de renovação de uma sigla que havia desmilinguido após os anos de FHC no poder – sob a batuta de ACM, Jorge Bornhausen, Marco Maciel e companhia, o ainda PFL assumiu ao lado do PSDB o protagonismo da política nacional –, Maia por pouco não testemunhou a extinção da legenda após a ascensão do PT ao poder. Em 2010, durante um comício no interior de Santa Catarina, Lula, então presidente da República, chegou a fazer uma ameaça ao seu maior rival político. “Nós precisamos extirpar o DEM da política brasileira”, bradou o petista, ao lado de sua candidata, Dilma Rousseff. Para além da retórica eleitoral, a intimidação embutia uma ameaça concreta: o antigo PFL encolheu tanto durante os governos do PT que o sumiço da sigla virou uma possibilidade real.
Em 2002, o partido tinha a segunda maior bancada da Câmara, com 85 deputados. Doze anos depois, na segunda eleição de Dilma, só elegeu 22. A decadência dos democratas só teve um ponto de inflexão em 2018: ainda durante a campanha, setores do partido aproximaram-se de Jair Bolsonaro que, eleito, retribuiu o apoio com três ministérios – que agora viraram dois. O DEM ganhou ainda mais estatura na abertura do ano legislativo de 2019, ao desbancar o MDB e faturar, além da presidência da Câmara, o comando do Senado – com apoio do Planalto, diga-se. Em março deste ano, já com a epidemia do coronavírus, o espaço do partido no cenário político ganhou ares de latifúndio. O DEM agora quer voltar a frequentar, de maneira definitiva, o Olimpo político. A demissão de Mandetta, um político que ganhou verniz de técnico, não reduz o espólio eleitoral conquistado pela sigla nos últimos anos. Pelo contrário, pode ampliá-lo. O cavalo não passava encilhado para os líderes do Democratas desde o final da década de 90. Por isso, eles enxergam o atual momento como uma oportunidade de ouro, pois cavalo encilhado, diz um provérbio gaúcho em geral adaptado à política, não passa duas vezes. Ruim para Bolsonaro, que lá atrás se ofereceu como catapulta e agora é visto pelo partido como o estribo ideal.
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