FelipeMoura Brasil

A vacina literária

24.04.20

O poeta, contista e romancista Charles Bukowski escreveu no prefácio de Pergunte ao pó, do autor americano John Fante:

“Nada do que eu lia tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas que me cercavam. Parecia que todo mundo estava fazendo jogos de palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados excelentes escritores. (…) E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O começo daquele livro foi um milagre arrebatador e enorme para mim.”

Bukowski nasceu na Alemanha, mas viveu num subúrbio da Califórnia, onde é ambientada a história de Arturo Bandini, jovem escritor que “fugiu de sua pequena cidade do Colorado porque era pobre, perambula pelas sarjetas de Los Angeles porque é pobre, esperando escrever um livro para ficar rico”, como se diz o protagonista, na cidade das ruas “cheias de belas mulheres que vocês nunca possuirão”, “romances que vocês nunca vão viver, mas ainda assim estarão no paraíso, rapazes, na terra do sol”.

Eu, Felipe, nasci no Rio de Janeiro. Rubem Fonseca foi o meu John Fante.

Descobrir sua obra na juventude foi um milagre arrebatador e enorme para mim, incomparável à bibliografia escolar – “aquele esforço pedagógico bem-intencionado que tenta induzir estudantes estúpidos e semianalfabetos a gostar de ler”, como descreveu seu personagem também escritor Gustavo Flávio, presente em Bufo & Spallanzani, além de E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto.

Eu também trocava o “esforço pedagógico bem-intencionado” de alguns professores de faculdade, matando aula para ler Rubem Fonseca na biblioteca. Parecia que todo mundo estava fazendo jogos de palavras, enquanto seus contos e romances mostravam a realidade em suas vísceras, não raro literalmente – fruto do período como comissário na polícia civil, de 31 de dezembro de 1952, quando começou a registrar ocorrências no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, subúrbio operário, até 6 de fevereiro de 1958.

“Ele viu bandido. Ele conversou. Ele investigou. Ele fez inquérito. Ele entrevistou os bandidos. Ele diz que aquilo marcou ele para o resto da vida, como se ele tivesse passado 90 anos ali dentro”, disse sua filha, Bia Corrêa do Lago, ao Fantástico.

Graças, entre outros fatores, aos “90 anos ali dentro” de seis, Rubem Fonseca foi o escritor brasileiro que melhor retratou a crueldade humana e os desatinos ocultos, com um humor cortante que tornou tragicômicas suas histórias, como é o cotidiano no país.

“Em seus termos”, declarou a escritora amiga Nélida Piñon ao Globo, “era um moralista latino, de molde clássico, e padecia, portanto, com o ser que éramos e que não quisera que fôssemos. Sua obra admirável é um brado à natureza secreta do humano.”

Rubem Fonseca teve seu livro de contos Feliz Ano Novo censurado pela ditadura militar após três edições esgotadas e sua morte, em 15 de abril de 2020, por parada cardíaca, aos 94 anos, foi ignorada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Uma semana depois dela, o general Luiz Eduardo Ramos pediu à imprensa que desse também as notícias boas durante a pandemia do novo coronavírus (“tem tanta coisa boa acontecendo…”), depois de reclamar da “cobertura maciça dos fatos negativos”. “Com todo respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão, é corpo e o número de mortos.”

Enquanto a Covid-19 mata milhares de brasileiros, o general prefere o mundo da “fantasia” de Bolsonaro, retratado por veículos chapa-branca financiados pelo governo e comentaristas porta-vozes de empresários governistas, que, com seus jogos de palavras, agora também precisam passar pano para a aliança com o Centrão, os nove recursos negados pela Justiça a Flávio Bolsonaro, o resmungo de Eduardo Bolsonaro no STF contra a CPMI das Fake News, a apuração da Polícia Federal sobre a militância golpista estimulada pelo bolsonarismo e a tensão com Sergio Moro diante das novas tentativas do presidente de trocar o diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo.

Eu, Felipe, sempre preferi a realidade nua e crua de Rubem Fonseca, em sua soberba simplicidade. Contra embustes e deslumbramentos, o Brasil precisa cada vez mais dela.

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