MarioSabino

O anjo e o demônio

24.04.20

Há alguns dias, um amigo enviou-me pelo WhatsApp uma crônica de Paulo Mendes Campos, publicada em 1961, na revista Manchete. Conheci Paulinho, era assim que os seus amigos o chamavam, na década de 1980, quando eu trabalhava na Scipione, como editor de coleções de livros de ficção para jovens — uma delas, criada por mim, chama-se Série Diálogo. Chama-se porque ainda existe, mas já não traz o meu nome no expediente. Descobri a ausência quando, por ordem da escola, o meu filho caçula leu um dos volumes, Guerra Dentro da Gente, de Paulo Leminski, cujo contrato foi assinado pelo escritor paranaense numa manhã fria de Curitiba, com ele tomando vodca na padaria e eu, um pingado. Era 1988.

Os créditos vão embora, as lembranças permanecem até que esqueçamos de nós mesmos — e Paulinho é uma delas. A última vez que o vi, não me lembro do ano exato, foi em um cenário que lhe era completamente estranho: o centro de São Paulo. Na verdade, o centro de São Paulo é estranho até mesmo aos paulistas. Ele tinha vindo à cidade para participar de um evento da Scipione, e nós o levamos para almoçar no Carlino, um restaurante italiano que ficava na Vieira de Carvalho, antes que embarcasse para o cenário certo, o Rio de Janeiro (rua Carlos Gois, Leblon). Nós, no caso, éramos o historiador Nicolau Sevcenko, a editora Cristina Carletti, mulher de Nicolau, Anna Luiza, a minha primeira mulher, e logicamente eu. Paulinho estava acompanhado da sua respectiva, Joan, uma inglesa muito amável que ainda guardava os traços da mulher belíssima que fora na juventude. Paulinho apreciava bastante mulheres bonitas, eu o apreciava também por tal motivo, e certamente não lhe passaria pela cabeça que isto se tornaria um crime:

No meu tempo de menino, em Belo Horizonte, havia de moças bonitas duas dúzias e mais três. Três que a gente não tinha muita certeza de escalar no time de cima. O número é estimativo, mas a verdade era concreta. Minas ainda se espreguiçava na renda agropastoril. Confinada à montanha, precariamente educada e vestida, anemizada por sete mil preconceitos, a moçada mineira gozava uma juventude curta, sem brilho. 

Essa Minas não havia mais, ele constatava nessa mesma crônica intitulada Mulheres Bonitas:

Exercícios físicos, dinheirinho e dietas nutritivas cumpriram rigorosamente o seu dever: entre as gentes mais favorecidas já se distingue uma média de beleza e saúde, um fato coletivo.

Millôr Fernandes tinha uns cinco números que executava alternadamente, dependendo do interlocutor. Não raro, ele repetia um ou outro consecutivamente. Paulinho tinha uns sete números, mas mesmo quando os repetia consecutivamente era como se os tivesse executando pela primeira vez. No almoço em São Paulo, depois de ele apresentar uns quatro números e entornar alguns copos a mais, hábito que o acabou matando, Joan fez um sinal para que pedíssemos o café. “Aqui tem expresso, Paulinho”, disse Cristina. Expressos ainda eram raridade em São Paulo e, no Rio, inexistentes. Vieram os cafés. “Gostou, Paulinho?”, perguntei. “Muito bom”, ele respondeu. “Mas está faltando alguma coisa… Garçom, traz um Sambuca, por favor!” Foram quatro Sambucas de enfiada. Mas quatro cafés também.

A crônica enviada por WhatsApp pelo meu amigo é Pecado e Virtude. É Paulinho por inteiro, o melhor daquele time de cronistas formado por Fernando Sabino (tive de informar o próprio do nosso não parentesco), Rubem Braga (que certa vez encasquetou que eu tinha de encontrar um comprador para a sua coleção do Anuário Estatístico do Brasil, publicado pelo IBGE) e Otto Lara Resende.

Paulinho inteiro é um Paulinho dividido. Seres inteiros são seres divididos na justa medida. O trecho de Pecado e Virtude explica:

A cena é de 1935, o cenário é o pátio do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo. Seis horas da noite. Um menino do segundo ano desce as escadas de madeira da enfermaria e dirige-se para a sala de estudo, caminhando sob as arcadas. No silêncio lunar do antigo quartel dos dragões d’El Rei ouve-se um barulho de água jorrando. Uma das bicas do pátio foi esquecida aberta. O menino vai até lá, fecha a torneira, distingue, vindo em direção oposta, os vultos do padre diretor e do professor Fontoura, sobe para sala de estudo, abre o livro e entra na sua solidão.

Depois das duas horas de estudo da noite, havia reza na capela, com benção do santíssimo ou não, seguida de prática edificante, chamada “o boa-noite”.

O boa-noite de hoje é do próprio Padre Chico Lana, o diretor, ao qual chamávamos, em razão de vício de prosódia e Leitmotiv disciplinar, de “boa-oldem”.

Hoje contarei dois episódios, começou o diretor, que ilustram dois caracteres diferentes, opostos. O menino bom e o menino mau. Pela semente se conhece a árvore. Bons frutos e maus frutos.

O padre contou o primeiro episódio: pela manhã, notara que uma das árvores do pátio tinha sido entalhada a canivete. Um nome de mulher. Maltratando a planta e mostrando-se preocupado com frivolidades mundanas, um aluno, um membro da nossa comunidade, revelara-se duplamente mau e pecaminoso. Não dará boa coisa, caso não se emendasse a tempo.

Fiquei firme no meu canto e enquadrei-me entre os maus, os pecadores. O criminoso, o frívolo, era eu.

Veio o segundo episódio. O bem, a ilustração da virtude, a boa semente, o coração generoso, o homem verdadeiro com um futuro garantido no bom caminho.

O “boa oldem” fez então um breve e bonito panegírico dum menino que atravessara o pátio para fechar uma torneira. Menino bom, menino de alma limpa, autor dum gesto que ele recomendava como exemplo ao corpo discente. E o diretor não pode imaginar que esse anjo chegava naquele momento à primeira conclusão grave da sua vida. O homem é bom e mau. Triste e humano, disse Bilac. O diretor não poderia imaginar que o demônio e o anjo eram o aluno 49.

Entrado nesta minha solidão de prisão domiciliar, concluí que, aos 58 anos, o aluno 36 talvez tenha fechado poucas torneiras durante a vida, muito menos do que o aluno 49, certamente. Preciso fazer a algo a respeito o quanto antes. E comprar uma garrafa de Sambuca.

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