Sobre a navalha
No último domingo, 19, enquanto surgiam os primeiros vídeos da participação de Jair Bolsonaro em uma manifestação cujas bandeiras iam do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal à volta da ditadura, mensagens cobrando uma manifestação firme do comando do Ministério Público em relação à atitude do presidente da República pululavam nos grupos de conversa integrados por procuradores. Já no fim da tarde, um tuíte do ministro Luís Roberto Barroso, compartilhado por seu colega e desafeto Gilmar Mendes, ampliou ainda mais a pressão por uma reação enérgica do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Mais uma vez, Aras teria que se equilibrar entre a pressão interna dos colegas de MPF e a sua relação próxima com Bolsonaro, que o indicou ao cargo sem seguir a lista tríplice apresentada pelos procuradores. Não bastasse, agora o STF também tornava público seu repúdio à atitude do presidente, assim como líderes do Congresso e todas as associações de magistrados e de membros do MP.
Já no fim da tarde, o procurador-geral começou a acionar sua equipe. Chamou o seu vice, Humberto Jacques, para analisar a situação. Cerca de um mês antes, no início da pandemia, outra manifestação já havia desfraldado bandeiras antidemocráticas e contado com a presença de Bolsonaro – na ocasião, não houve qualquer reação da Procuradoria, o que gerou muitas críticas. Desta vez, a leitura era que os organizadores dos atos haviam ultrapassado os limites. Sobre o presidente, após ouvir alguns integrantes de seu gabinete, o PGR concluiu que ele não tinha cruzado a linha, mas talvez fosse necessário mandar um recado.
Enquanto eram discutidos os detalhes de qual medida tomar, alguns auxiliares de Aras lembravam a urgência da necessidade de um posicionamento. Uma das opções à mesa era abrir uma investigação para apurar o ocorrido e em que medida a manifestação feria as leis em vigor e a Constituição. Havia dúvidas sobre os efeitos a iniciativa. Até saná-las, Aras optou por divulgar uma nota oficial. Mas, ainda assim, hesitava em relação aos termos que deveria usar. A saída, então, foi olímpica: o procurador reproduziu no comunicado discurso que proferira dias antes para procuradores-gerais de Justiça, chefes dos MPs estaduais. O texto foi a público já no fim da noite de domingo.
A decisão de deixar o presidente de fora foi tomada em conjunto por Aras e Jacques. O entendimento dos dois era o de que, ao mirar os organizadores, o inquérito não delimita quem pode se tornar investigado e, com a inclusão de deputados federais e manutenção do caso no STF, fica liberada a apuração de fatos relacionados a qualquer pessoa com foro, incluindo o presidente da República.
Por sorteio, a apuração foi distribuída para o ministro Alexandre de Moraes, já relator do rumoroso e inconstitucional inquérito do fim do mundo, aquele que censurou Crusoé e que investiga secretamente ataques ao Supremo, incluindo os orquestrados por grupos bolsonaristas. Assim como essa investigação, aberta desde o ano passado, a nova também ganhou inexplicavelmente o selo de segredo de Justiça.
É mais uma espada dependurada sobre a cabeça do presidente, de seus aliados e dos financiadores dos atos em favor do discurso de que o Supremo e o Congresso Nacional devem ser fechados. Com os dois inquéritos, o Supremo – e Moraes, em especial – tem os meios de se colocar como senhor da situação: caso Bolsonaro avance o sinal na direção de qualquer medida autoritária que ponha em risco as instituições, a corte tem meios de agir. O pedido de Aras, na prática, deu ao ministro mais uma arma potente, o que também é preocupante.
No mesmo dia, chegou outro expediente, desta vez assinado por 17 integrantes do topo da carreira do Ministério Público Federal. Eles queriam que Aras acionasse o governo contra a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”. Dessa vez, a decisão de Aras foi enviar o caso para o Rio de Janeiro, uma vez que o assunto já vinha sendo acompanhado na primeira instância.
A Procuradoria ainda mandou para o arquivo dois pedidos para investigar criminalmente o presidente por seus atos anti-isolamento. Os ânimos se acirraram ainda mais com a orientação de Aras, vista como deliberadamente pró-governo, para que o Ministério da Saúde não respondesse a pedidos isolados de informação sobre o combate à pandemia do coronavírus feitos por procuradores – tudo deveria ser centralizado em seu gabinete. A reação da carreira também foi imediata: dezenas de procuradores protestaram contra a medida.
Aras, para quem as críticas vêm de grupos de oposição a ele, passou desde então a adotar o discurso segundo o qual o caminho para quem tem interesse em cassar o presidente é político e não passa pela PGR. O argumento do chefe do MP é o de que a instituição não deve se embrenhar em disputas político-partidárias. É o equilibrista em ação.
Atualização: nesta sexta-feira, 24, após o pronunciamento em que Sergio Moro confirmou seu pedido de demissão do governo e acusou Jair Bolsonaro de interferir politicamente na Polícia Federal, Augusto Aras anunciou ter pedido a abertura de mais um inquérito, desta vez para investigar o teor das declarações do ex-ministro. Por decisão de Aras, o procedimento não mira apenas Bolsonaro. Moro também será investigado — e pode ser punido caso o PGR entenda que ele não tem meios de comprovar o que disse. Já que era impossível não abrir a investigação sobre o presidente dada a gravidade das declarações do ex-juiz de Lava Jato, a opção por incluir Moro nos autos também como investigado foi vista como mais um gesto de Aras para não desagradar tanto assim Jair Bolsonaro.
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