Adriano Machado/Crusoé

A PF encrespada

Como a corporação tem reagido, nos bastidores, à barulhenta demissão de Maurício Valeixo e por que seu substituto, seja ele quem for, já chegará com novas crises contratadas
01.05.20

É possível apontar várias diferenças entre a Polícia Federal de hoje e a Polícia Federal de vinte anos atrás. Àquela época, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, a PF era sinônimo de ineficiência. Seus agentes, peritos e delegados eram mal remunerados e, não raro, não havia nem gasolina para sair a campo com uma viatura. Havia muito menos verbas para a compra de equipamentos ou para bancar grandes operações. Hoje, a corporação é uma das instituições mais respeitadas do país, de acordo com pesquisas de opinião, tem estrutura comparável às das melhores polícias do mundo e traz em seu histórico ações antes inimagináveis, como as prisões dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer e de figurões do empresariado, como Marcelo Odebrecht, Joesley Batista e André Esteves.

Ao menos uma característica, porém, liga os dois períodos. No segundo mandato de FHC, após quatro anos sob o comando do delegado Vicente Chelotti, a PF teve cinco diretores-gerais – uma troca de chefe a cada nove meses, em média. O substituto imediato de Chelotti, Wantuir Jacini, ficou apenas três meses no cargo. Já o sucessor de Jacini, João Campelo, durou apenas seis dias. Em julho de 1999, assumiu Agílio Monteiro, indicado do então ministro da Justiça, o notório Renan Calheiros. Monteiro deixou a PF para ser candidato a deputado federal pelo PSDB, o mesmo partido do então presidente.

A despeito da elogiável mudança no perfil da corporação, com alguma frequência há soluços que lembram os velhos tempos. E eles, quase sempre, têm a ver com tentativas de ingerência no trabalho de agentes e delegados. Desde 2017, quando Leandro Daiello, o mais longevo dos chefes da PF, foi substituído por Temer, três diretores já sentaram na cadeira mais importante do Máscara Negra, o edifício-sede da PF, em Brasília. Fernando Segovia, o escolhido do emedebista para a vaga, durou pouco mais de três meses. Caiu por ter sugerido o arquivamento de um inquérito cujo alvo era o presidente que o colocou lá.

Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, assumiu Maurício Valeixo, escolhido por Sergio Moro. Ele ficou desde o primeiro dia do governo até a última sexta-feira, 24, quando sua demissão deu início àquela que é a maior crise já enfrentada por Bolsonaro, com possibilidade até de desaguar em um processo de impeachment. Mas por que uma crise na PF hoje se transforma em um escândalo capaz de ameaçar um presidente?

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressValeixo, o ex: a próxima crise na PF é questão de tempo
A reação interna e externa às acusações de Moro sobre as tentativas de Bolsonaro de nomear o delegado Alexandre Ramagem, amigo de seu filho Carlos, é reflexo da importância que a corporação ganhou nos últimos anos — e da consolidação do conceito de que a polícia deve ser um órgão de estado, e não de governo. É algo que veio junto com as mudanças nos procedimentos de trabalho, cujo ápice foram as dezenas de fases da Lava Jato.

A partir de 2003, assim como suas principais congêneres mundo afora, a PF passou a nortear seu trabalho pelo “follow the money”, o famoso “siga o dinheiro”. Antes até das investigações que, em parceria com o Ministério Público Federal, desarticularam o petrolão, houve outras dezenas de operações que contribuíram para desenvolver o novo padrão – entre os exemplos, estão a Anaconda, que avançou sobre esquemas de corrupção no Judiciário, e a Navalha, cujo alvo eram construtoras que recebiam verbas federais.

O poder amealhado pela instituição no curso desse longo processo de transformação também tensionou as disputas políticas envolvendo a  corporação. Dentro dela, grupos de delegados passaram a se mover mais intensamente para ascender aos postos de comando. Fora, os poderosos de plantão tentam, sempre que possível, impor cabrestos ao trabalho ou, pelo menos, ter acesso às informações sensíveis angariadas especialmente pela Diretoria de Inteligência Policial, a DIP, e pela Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, a Dicor, por onde trafegam os segredos mais sensíveis, desde relatórios sigilosos para uso interno até o desenrolar de apurações e a programação de operações.

Nos últimos meses da gestão Temer, após Segovia cair ao defender publicamente o arquivamento da investigação que mirava as ligações do presidente com um esquema de corrupção nos portos, os policiais mais experientes projetavam que o novo governo poderia chegar já com tudo preparado para estreitar os laços de forma mais sutil. O presidente da vez, avaliavam, trabalharia para ter a PF relativamente por perto, até para não repetir os problemas do passado próximo. Para a alegria dos policiais, a expectativa mudou de rumo. Com o Ministério da Justiça nas mãos de Moro, antigo conhecido e defensor da PF, seria possível até ampliar a independência da corporação.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisCarlos Bolsonaro e Ramagem, em festa de Réveillon: amizade desde a campanha
Na prática, porém, a história se mostrou outra – a primeira expectativa, na verdade, estava mais próxima da realidade. Como Crusoé mostrou, as primeiras tentativas de Bolsonaro de interferir na nomeação de delegados para postos chaves começou ainda em agosto de 2019, oito meses após o início do governo. O pano de fundo, desde então, são investigações sensíveis que estão em andamento na PF, como o inquérito que investiga ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal e mira apoiadores do presidente.

Como admitiu em um pronunciamento solene no Planalto horas após o anúncio oficial da saída de Moro, Bolsonaro queria a PF funcionando a seu modo, e gostaria de ter um “contato pessoal” no comando da corporação. Há meses, desde os primeiros sinais do presidente nesse sentido, começaram as movimentações dos interessados em ser o tal “contato”. O escolhido, no fim das contas, foi o delegado Alexandre Ramagem, que coordenou a segurança de Bolsonaro na campanha e virou, desde então, amigo da família – de Carlos, o filho 02, em especial.

Só que Ramagem nem sequer sentou na cadeira. Poucas horas antes da solenidade que lhe daria posse – a cerimônia seria no Planalto, em mais um sinal explícito do desejo do presidente de ter a PF sob sua guarda –, saiu do Supremo uma ordem do ministro Alexandre de Moraes impedindo o virtual chefe da PF de assumir o posto. Até o fechamento desta edição, a questão continuava em aberto. Bolsonaro revogou o ato de nomeação, mas logo em seguida avisou que não desistiu do “sonho” de colocar Ramagem no comando da polícia. “Quem manda sou eu”, disse o presidente ainda na quarta-feira, 29. “Eu quero o Ramagem lá. É uma ingerência, né? Vamos fazer tudo para o Ramagem. Se não for, vai chegar a hora dele.”

Entre os policiais, o impasse só fez aumentar a tensão. Com a dúvida se Bolsonaro conseguirá dobrar o Supremo e emplacar Ramagem, começaram as especulações sobre outros nomes alternativos. Um deles é o do delegado Anderson Torres, antigo preferido de Bolsonaro, atualmente na secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Torres não é bem visto internamente na corporação porque trabalhou mais tempo em gabinetes de políticos do que no front das investigações. Ainda pesa contra ele o fato de também ser próximo ao presidente. Outro cotado é Alexandre Saraiva, atual chefe da PF no Amazonas, que Bolsonaro quis emplacar em meados do ano passado no comando da superintendência do Rio de Janeiro, num episódio que já havia gerado atritos entre o presidente e Moro.

STFSTFAlexandre de Moraes: o diretor interino da PF é próximo dele
Outros dois delegados correm por fora, mas ganharam força nos últimos dias. Um deles é Paulo Gustavo Mauirino, hoje responsável pela segurança do STF. Ele já foi secretário de Esporte no governo de São Paulo, na gestão de Geraldo Alckmin, e integrou o Conselho de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Por seu bom trânsito junto a políticos, tem ganhado espaço na disputa. O segundo é Josélio Azevedo, ex-chefe do Serviço de Inquéritos Especiais, o Sinq, onde correm as investigações envolvendo políticos. Azevedo era chefe do setor quando os delegados do grupo se rebelaram e denunciariam a interferência da Segovia em favor de Temer. Qualquer que seja o substituto de Valeixo, ante a declarada intenção de Bolsonaro de ter um “contato direto” no comando, a tensão permanecerá — e, ao menor sinal de ingerência, haverá escândalo. A não ser, obviamente, que haja um surto repentino de republicanismo em meio aos fartos sinais de mandonismo, é uma crise que já está instalada.

Enquanto isso, uma PF acéfala tenta evitar que a política contamine o andamento das investigações e o combate ao crime organizado. Um dos temores é que os políticos, conhecidos clientes da casa, aproveitem o momento de fragilidade para instigar rupturas internas. A polícia sempre enfrentou tensões intestinas entre as diversas carreiras: agentes, peritos e escrivães, de um lado, e delegados de outro travam uma disputa silenciosa. Um dos temores do momento é que políticos interessados em minar e enfraquecer a instituição se valham de projetos discutidos no Congresso, como o que prevê autonomia e mandato ao diretor-geral, para instituir, por exemplo, uma carreira única. Isso poderia ampliar a exposição à influência política. Hoje, um agente ou escrivão que deseje virar delegado precisa passar por concurso público. Com a carreira única, a ascensão interna dependeria dos chefes e abriria margem para apadrinhamentos.

Embora as tensões de hoje reavivem na PF uma parte dos problemas do passado, o cenário mostra que existe capacidade de resistência aos desmandos. Atualmente, para além das tentativas explícitas (e barulhentas) de interferência, o maior desafio dos policiais, independentemente da função que exercem, é identificar e fazer frente a um outro tipo de movimento de poderosos interessados em ter trânsito e influência na corporação.

Se no Planalto e no Congresso eles se apresentam abertamente, no terceiro vértice da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal, também há quem queira dar as cartas, mas de outra maneira. Só nas últimas semanas, houve duas decisões de Alexandre de Moraes relacionadas à polícia. Além do despacho que vetou a posse de Alexandre Ramagem, na esteira da grita de Bolsonaro o ministro proibiu que houvesse qualquer mudança na equipe de delegados que respondem diretamente a ele no inquérito do fim do mundo, aquele que censurou Crusoé e apura supostas ameaças à corte. A própria liminar barrando Ramagem acabou por ampliar os poderes de Moraes sobre a PF: enquanto um novo diretor não chega, o comando está nas mãos de um interino, o delegado Disney Rossetti, que é muito próximo do ministro do Supremo.

A presença de Dias Toffoli e Gilmar Mendes na posse do novo titular da Justiça, André Mendonça, é outro sinal de que a corte, agora que Moro saiu, também tenta reaver sua influência sobre a corporação que até há pouco, conforme o próprio Gilmar verbalizava em público e nos bastidores, estava entregue à “turma de Curitiba”. É parte desse estratagema um movimento interessante registrado nesta quinta, dois dias após a cerimônia festiva no Planalto: Toffoli estaria em campo tentando aparar as arestas com Moraes para que Bolsonaro, agora formalmente investigado pelo próprio Supremo, possa colocar quem ele quiser no comando da polícia. As engrenagens em Brasília se movem intensamente. O perigo é elas empurrarem as instituições para o cenário de vinte anos atrás.

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