Adriano Machado/Crusoé

Bolsonaro na berlinda

Supremo, Congresso, pandemia, economia: o presidente, agora formalmente investigado e com múltiplas crises no horizonte, nunca esteve diante de tantas incertezas
01.05.20

Desde que foi engolfado pela crise, agravada de maneira febril com a saída do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro tenta se assenhorar do próprio destino. A partir de movimentos pensados e bem articulados, Bolsonaro atuou para mudar a configuração do governo, deixando-o ainda mais à sua feição, ao nomear quadros mais “domesticados” para cargos estratégicos, distribuiu afagos ao Judiciário e intensificou as negociações por espaços na Esplanada dos Ministérios em troca de sustentação no Congresso com o fisiológico Centrão. Por trás das recentes investidas do presidente da República, agora formalmente investigado pelo Supremo, reside o interesse do governo em garantir uma blindagem nas esferas de poder hoje capazes de encrencá-lo ainda mais, tornando a estrada para uma eventual abertura de processo de impeachment ainda mais curta. Ao mover-se prioritariamente pela sobrevivência, no entanto, Bolsonaro tem encontrado obstáculos pelo caminho para além das questões políticas e jurídicas. No epicentro de múltiplas crises – acrescente-se ao cardápio já mencionado a econômica e a sanitária –, o presidente navega como nunca num mar de incertezas.

Desde o início do ano às voltas com um cenário nada favorável, Bolsonaro foi definitivamente tragado para o olho do furacão a partir das acusações de Sergio Moro, esgrimidas no dia de sua despedida do Ministério da Justiça. Depois de meses debaixo de pressões, Moro resolveu deixar o governo quando viu que a demissão de Maurício Valeixo, seu aliado na Polícia Federal, restava sacramentada – e sem o seu aval. No dia do desembarque, sem recorrer a mesuras, o ex-juiz acusou Bolsonaro de querer interferir na PF, ter acesso a relatórios de inteligência e influir em inquéritos no STF. Desafiado pelo presidente, o ex-juiz tornou pública uma conversa com o próprio, travada via WhatsApp. Como as mensagens exalavam cheiro de motivação nada republicana por trás da intenção de mudar o comando da Polícia Federal, as acusações de Moro ensejaram o inquérito instaurado na noite de segunda-feira, 27, pelo decano do STF, ministro Celso de Mello, atendendo ao pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país”, afirmou o ministro, ao determinar a investigação.

No pedido de abertura de inquérito, o procurador-geral da República afirmou que, em tese, oito crimes podem ter sido cometidos. São eles: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crimes contra a honra. Bolsonaro pode ser enquadrado em seis. Ao incluir no escopo do inquérito delitos como denunciação caluniosa e crimes contra a honra, Aras abriu uma brecha para eventualmente Moro ser penalizado. Isso se ele não dispuser de provas. Moro garante que não é o caso e promete levar tudo o que tem ao Supremo. Segundo pessoas ligadas ao ex-ministro, além de conversas por WhatsApp, ele tem áudios capazes de colocar o presidente ainda mais nas cordas.

O ministro Celso de Mello tinha dado inicialmente 60 dias para a PF colher o depoimento de Sergio Moro. Outras iniciativas também poderiam ser adotadas nesse intervalo de dois meses. A questão principal era que toda fase de produção de provas do inquérito ficaria a cargo de uma Polícia Federal já sob o comando do diretor-geral, Alexandre Ramagem, o pupilo da família Bolsonaro. Celso de Mello, porém, não parece disposto a permitir ingerências – nem da PGR nem de uma PF agora mais simpática a Bolsonaro.

Foi exatamente com a intenção de que absolutamente nada escapasse ao seu controle que o presidente resolveu nomear Ramagem. Estava tudo pronto e preparado para que o delegado fosse o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Diretor da Abin e “copa e cozinha” dos filhos do presidente, Alexandre Ramagem era o delegado que Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência morto em março ao sofrer um infarto fulminante, apontava nos bastidores como um dos indicados por Carlos Bolsonaro, filho 02 do presidente, para integrar a chamada “Abin paralela”, cuja ideia foi gestada no começo do governo. Bebianno dizia a interlocutores que um dos mentores do plano era o próprio Carlos.

Najara Araújo/Câmara dos DeputadosNajara Araújo/Câmara dos DeputadosMaia: apesar dos 30 pedidos de impeachment, a Câmara deve deixar o Supremo agir primeiro
Ao lado de Carluxo, três agentes fariam parte da estrutura destinada a bisbilhotar e fustigar inimigos do governo. A iniciativa foi abortada por Bebianno e pelo general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo. Não sem custo. Os dois caíram em desgraça e foram apeados dos respectivos cargos pelo presidente em questão de semanas. Como demonstração de fidelidade a Bolsonaro, antes mesmo da posse, Ramagem já procurava nomes capazes de substituir o superintendente da PF do Rio de Janeiro, um dos locais mais sensíveis para a família do presidente.

Na manhã de quarta-feira, 29, porém, a nomeação do parceiro virou “sonho” – para usar uma expressão do próprio presidente – de uma noite de verão. A ida de Ramagem para o comando da PF acabou suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendendo a um pedido do PDT. Na decisão, Moraes disse que as atribuições do presidente como “a livre nomeação de seus ministros e funcionários de confiança” precisavam ser sustentadas necessariamente “pelos princípios constitucionais e pela legalidade dos atos”. Moraes pegou Ramagem pelo pé: a posse estava marcada para às 15 horas do mesmo dia, junto com a do sucessor de Moro, André Mendonça, até então chefe da Advocacia-Geral da União. Um assessor palaciano lamentou o que chamou de reviravolta previsível: “Aconteceu o que nós alertamos a ele (Bolsonaro).”

No Supremo, Moraes vem se constituindo como o principal freio e contrapeso do presidente. Além de ter barrado a nomeação de Ramagem, ele tem sob sua batuta dois inquéritos potencialmente devastadores para Bolsonaro: o que abriu para apurar os atos antidemocráticos do dia 19 de março e a investigação secreta sobre supostas ameaças a ministros do STF – o inquérito do fim do mundo que censurou Crusoé. Os dois inquéritos se entrelaçam e podem desaguar nos mesmos personagens. Daí a importância para o presidente da nomeação para o ministério da Justiça de alguém com bom trânsito no STF como André Mendonça.

O ex-advogado-geral da União pode não ser tão íntimo dos Bolsonaro quanto Ramagem, mas ao nomeá-lo ministro da Justiça o presidente nutre o mesmo desejo: o de que ele segure as rédeas sobre toda e qualquer situação na Justiça que possa vir a constrangê-lo. “Serei um fiel missionário”, prontificou-se Mendonça em seu discurso inaugural. Além de leal ao presidente, o novo ministro transita com desenvoltura dentro e fora do governo e tem acesso a ministros do STF como o presidente Dias Toffoli e Gilmar Mendes. No Palácio do Planalto, espera-se que Mendonça use o seu prestígio junto à corte para influir nas investigações que tiram o sono do presidente — e até mesmo para reverter a situação de Ramagem.

A cerimônia de posse do novo titular da Justiça foi emblemática nesse sentido. Em discurso, o presidente se derreteu para João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça – “quando lhe vi, foi amor à primeira vista”, disse – e afagou Gilmar, ao se referir a ele como “integrante do nosso Supremo Tribunal Federal e homem que nas vezes em que o Executivo precisou não se furtou de dar seu voto em prol do Brasil”. Detalhe: Gilmar, presente na solenidade ao lado de Dias Toffoli, é relator de um dos processos envolvendo Flávio Bolsonaro na corte. Já há no meio jurídico quem enxergue em todo esse insólito cenário de bajulação as digitais de mais um grande acordão – com Supremo, com tudo – para aproximar o Planalto da cúpula da corte e resolver problemas de parte a parte.

Wagner Pires/Futura Press/FolhapressWagner Pires/Futura Press/FolhapressCom Supremo, com tudo: Bolsonaro afaga Gilmar em posse de Mendonça
Numa outra frente da estratégia de blindagem ao governo, o presidente tem recorrido ao Centrão para montar seu dique de proteção no Congresso, onde desembarcaram nos últimos meses 30 pedidos de impeachment. O grupo é formado por partidos que reúnem cerca de 200 dos 513 deputados. As táticas de cooptação são as consagradas pela velha política: cargos e mais cargos no governo em troca de apoio no Congresso. A promessa por mais espaços foi feita a PP, PL, Republicanos, Solidariedade e PSD, e inclui entre os contemplados o deputado Arthur Lira, uma espécie de ás do Centrão, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto, os dois últimos envolvidos até o último fio de cabelo no mensalão.

Intramuros, as conversas seguem a todo vapor. Um dos poucos a falar sem pudores sobre o assunto é o presidente do Solidariedade, o deputado Paulinho da Força. “Me ofereceram o Porto de Santos, mas eu não quero. Não vou para o governo uma hora dessas”, afirmou. Além do Porto de Santos, as negociações de Bolsonaro com a turma do Centrão envolvem a ampliação da participação do bloco no Banco do Nordeste, Codevasf, FNDE, DNOCS, DNIT e Funasa. Em 15 dias, segundo promessa do presidente, os novos aliados estarão muito bem acomodados.

Por ora, o grande timoneiro das agremiações do Centrão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, evita fazer movimentos bruscos – talvez esperando que o Supremo dê o primeiro passo. Durante a semana, mediu cada palavra ao discorrer sobre eventual abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro. Usou expressões como “equilíbrio, paciência” e disse que, na atual circunstância, “açodamento e pressa atrapalham”. Maia conhece como poucos o pulso da Câmara. Pede calma, pois sabe que um processo dessa natureza se assemelha mais a uma maratona do que a uma corrida de 100 metros. Também entende que, hoje, não há condições políticas nem votos necessários para a aprovação do impeachment. Mas para quem, há menos de um mês, negava peremptoriamente emitir o sinal verde para o processo de afastamento do presidente, Maia andou uma casa no tabuleiro.

Um personagem que, no sentido oposto, havia andado uma casa para trás no jogo do poder e se recuperou a tempo é o ministro da Economia, Paulo Guedes. Não sem mais uma confusão armada no seio do governo. Durante a semana, a crise dentro da crise – a contenda que envolveu o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o da Casa Civil, Braga Netto, em torno do plano de investimentos Pró-Brasil – por pouco não levou Guedes para fora da Esplanada. Bolsonaro, no entanto, acabou puxando o freio de mão e o prestigiou publicamente depois de ouvir os conselhos dos militares de que uma eventual saída de Guedes poderia fazer com que o governo desmoronasse de vez. “Não temos vocação para violinista do Titanic”, alertou um auxiliar do chefe do Executivo.

Na luta pela sobrevivência, porém, o presidente e seu círculo mais íntimo sabem que há ainda uma longa batalha pela frente. Na avaliação de militares que acompanham o desenrolar da crise de perto, o problema para Bolsonaro é que o governo parece ter entrado no modo “mito de Sísifo”, o personagem da mitologia grega condenado ao trabalho fatigante de rolar uma rocha até o topo da montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o cume, a pedra descia novamente ladeira abaixo. O pico da montanha seria 2022, que é onde Bolsonaro quer chegar. A rocha que insiste em desabar morro abaixo equivaleria às intercorrências políticas e jurídicas que podem surgir no caminho do presidente – novas revelações, surgimento de provas no curso do inquérito no STF ou até mesmo barbeiragens que possam vir a ser cometidas por um governo useiro e vezeiro na arte de tropeçar nas próprias pernas.

DivulgaçãoEm meio à crise, Bolsonaro vai a stand de tiro: o perigo é acertar o próprio pé
Jogam ainda contra Bolsonaro um cenário de aumento dos índices de desemprego, que atingiu 12,9 milhões de pessoas em março, segundo dados do IBGE, uma cruenta recessão econômica que se avizinha e reconhecida pelo próprio ministro Paulo Guedes, para quem “o país terá de se reestruturar com financiamento privado pois o governo quebrou”, e a imponderável crise sanitária sem precedentes na história, que está na origem do desastre da economia. A depender do desfecho, ela pode arrastar o presidente definitivamente para o cadafalso. Nos últimos dias, o Brasil superou a trágica marca dos 5 mil mortos. Durante a semana, a média de óbitos diários oscilou para além de 400. Capitais como São Paulo, Manaus e Belém já estão com a capacidade de leitos de UTI acima dos 80%.

Considerando os casos subnotificados, o número de infectados pelo coronavírus no país pode ter ultrapassado a casa do milhão, 16 vezes maior do que a marca oficial, segundo especialistas. E ainda não é possível afirmar, de acordo com o próprio ministro da Saúde, Nelson Teich, que atingimos o pico do contágio da doença. Capitais que projetavam o fim da quarentena, como São Paulo e Rio, já anunciam a prorrogação do isolamento.

Preocupado com a deterioração de sua popularidade, o presidente, notório defensor do libera-geral, tem adotado uma maior cautela ao discorrer sobre o tema nos últimos dias. Segue, no entanto, colecionando expressões espantosas para o momento. Indagado sobre o elevado número de mortes registradas no Brasil, Bolsonaro reavivou William H. Vanderbilt, o magnata norte-americano que proferiu em 1882 o infeliz “the public be damed” (“o público que se dane”, em tradução livre). “E daí? Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse o presidente, em uma daquelas frases que marcam governantes pela eternidade.

O tom adotado por Bolsonaro lembra em muito o dos antecessores Fernando Collor e Dilma Rousseff, quando estavam à beira de experimentar o infortúnio que o presidente quer evitar. Há outras semelhanças entre eles. Collor e Dilma também promoveram mudanças no ministério para tentar se blindar no Congresso e no Judiciário. Collor, que a exemplo de Bolsonaro também contava com Roberto Jefferson em sua tropa de choque, apostou em vão num alardeado “ministério de notáveis” — na prática, um eufemismo para acomodar os interesses de sempre. Ao primeiro sinal de perigo, os mercenários do Congresso mudaram de lado e deu no que deu. Também no desespero, num momento em que a Operação Lava Jato aumentava o cerco sobre o PT e o governo, Dilma colocou no Ministério da Justiça uma pessoa disposta a conter os ímpetos da PF, o ex-procurador Eugênio Aragão.

A então presidente ainda tentou entregar o governo de bandeja para Lula, o nomeando para a Casa Civil, num ato que o blindaria juridicamente e o faria escapar de uma iminente ação policial. Poderia ser a salvação, não fosse a divulgação dos famosos áudios em que Dilma conversava com Lula sobre a entrega do termo de posse por “Bessias” – Jorge Messias, então servidor da Casa Civil – para ser usado “em caso de necessidade”. Ali, o STF adotou a mesma postura aplicada agora no episódio Ramagem: anulou a nomeação de Lula. A quebra do sigilo da conversa entre Dilma e Lula foi determinada pelo então juiz Sergio Moro, ex-ministro da Justiça que, agora, se constituiu em adversário de Bolsonaro. A história recente mostra que não convém tê-lo do lado oposto da trincheira. Os próximos tiros serão disparados em breve: nesta quinta-feira, Celso de Mello deu prazo de cinco dias para a Polícia Federal interrogar Moro na investigação que pode selar o destino do presidente.

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