Carlos Fernandodos santos lima

Faça a coisa certa

01.05.20

“Faça a coisa certa”. Assim Sergio Moro justificou seu pedido público de demissão do Ministério da Justiça. Mais do que isso, em entrevista vista por milhões de brasileiros na última sexta-feira, 24, o ainda ministro da Justiça explicitou os fatos que o levaram a essa decisão. Agora, hordas de bolsonaristas, em graus diversos, desde aqueles temerosos da volta do Partido dos Trabalhadores, passando por manipuladores dos mais diversos quilates, até chegar ao “gabinete do ódio” e seus exércitos de robôs, empreendem uma campanha difamatória contra o ex-juiz nas redes sociais.

Mas o que Moro fez para se transformar do dia para noite de herói da Lava Jato em vilão mancomunado com George Soros, TV Globo e qualquer um que esteja à esquerda de Jair Bolsonaro? A resposta é simples: fez o que era certo, do jeito certo e na hora certa. Nenhuma outra atitude poderia ser exigida de Sergio Moro, salvo a de pedir demissão e expor pública e imediatamente a ilicitude cometida por Bolsonaro.

É claro que fazer o certo e expor-se à sanha de idólatras de Bolsonaro não é fácil, mas normalmente o certo não é mesmo um caminho simples ou agradável. Entretanto, no serviço público é o único caminho admissível. Já tinha enfrentado esse tipo de inconformismo na condução dos processos da Operação Lava Jato, só que na época eram os idólatras de Lula a que não agradava. A pergunta a ser respondida aqui não é se ele precisava ter revelado que Bolsonaro estava intervindo na Polícia Federal, ou que o ilícito objetivo do presidente era ter um contato interno que lhe repassasse informações de investigações sigilosas ou dificultasse investigações de deputados bolsonaristas.

A pergunta realmente importante é como ele, sabendo disso tudo, poderia ter ficado quieto?

Lealdade ao presidente, grita a turba apoplética. Traição, respondem a si mesmo em coro. Mas qual é a lealdade que realmente deve ter um homem público? Um homem deve lealdade à sua história, ao país e ao nome de sua família. Se é um homem público, deve ainda lealdade à Constituição e às leis. Apenas a esses. Jamais um homem público pode ser leal a quem deseja cometer crimes. O que fica claro é que para esses grupos de extremistas de direita – fenômeno que também se repete com a extrema esquerda – o importante são as relações partidárias, e não as institucionais. Pouco lhes importa o caráter de um homem, mas apenas sua submissão aos interesses ideológicos ou pessoais.

Ter obrigação de revelar o mal feito pode parecer utópico em um país em que a corrupção dos costumes políticos está tão entranhada na sociedade que fazer o certo parece ser exatamente o oposto. Espanta que muitas pessoas tenham considerado que Moro, mesmo agindo certo em pedir demissão, devesse ter se omitido de dizer os motivos. Esquecem que se deixasse de fazer a denúncia pública estaria permitindo que os desejos do presidente se tornassem realidade, tornando-se, assim, cúmplice de um atentado à Constituição.

Moro agiu conforme um preceito ético simples: “faça a coisa certa!”. Isso é hoje a base de uma revolução dos costumes, principalmente no mundo empresarial, mas que também vale para o setor público. Fala-se muito em compliance, que pode parecer um conceito difícil de assimilar, mas se é possível traduzir a conformidade em uma única frase, nenhuma outra seria melhor que esta: “os fins não justificam os meios”. Não se viola a Constituição por qualquer motivo, por melhor que seja. E ideologia, temor de volta do PT ao poder e até mesmo preocupação com os filhos certamente não justificam crimes.

Certo é que os interesses de Bolsonaro na troca não foram bons, justos ou éticos. Já havia muito tempo ele vinha tentando intervir na Polícia Federal. Tentou antes colocar nomes de sua confiança nas superintendências da Polícia Federal de Pernambuco e Rio de Janeiro, no que foi impedido por Valeixo com apoio de Moro. Por causa disso, suas baterias se voltaram contra os dois, culminando no episódio da última semana.

Desta vez, Bolsonaro não ficou somente na intenção. Surpreendeu Moro na quinta-feira, 23, com a decisão de troca de Valeixo para a colocação de um nome de sua confiança. Certamente estava crédulo de sua “força” depois do episódio de desgaste que impôs a Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde. Tão confiante que externou seus objetivos: aparelhar a Polícia Federal para seus interesses pessoais e partidários. Parvo, acreditava que uma pessoa como Sergio Moro, com a história que tem, fosse aceitar.

Não se pode permitir o aparelhamento da Polícia Federal, ou de qualquer outra instituição, para quaisquer fins que não sejam os constitucionais. Não se pode permitir que usem do poder para obstruir investigações ou produzi-las contra desafetos e adversários. Sergio Moro agia como garantidor da lisura neste governo. Muitas vezes impediu que os interesses pessoais de Bolsonaro avançassem sobre a Polícia Federal. Agora, essa garantia se foi, mas não sem antes alertar a todos do que estava acontecendo.

Justamente por isso, Bolsonaro não conseguirá seu objetivo e sairá enfraquecido desse embate. Como o que aconteceu com Dilma Rousseff na nomeação de Lula, o STF liminarmente suspendeu a posse de Alexandre Ramagem por indicativos de desvio de finalidade em sua nomeação. Agora, seja quem for o novo diretor-geral da Polícia Federal, todos os olhos estarão vigilantes.

Esse episódio, mais sua completa irresponsabilidade na condução da política de combate à pandemia do coronavírus, é suficiente para justificar o impedimento de Bolsonaro. Impeachment é um processo difícil de acontecer, mas é certo que o presidente cometeu grave crime de responsabilidade. Infelizmente, haverá resistência a essa solução no Congresso Nacional, comandada pelo Centrão e seu generalíssimo Rodrigo Maia, bem como de alguns ministros do STF, Gilmar Mendes e Dias Toffoli especialmente, pois isso fortalecerá ainda mais Sergio Moro, que representa o real temor do atual modo de se fazer política.

Moro, por sua vez, se não sai fortalecido politicamente, mesmo porque pouco espaço existe para ele dentro do atual cenário político do toma lá dá cá, sai grande. Confirma sua história e sua atuação ética na Operação Lava Jato. Mostra que há diferença entre políticos venais e verdadeiros homens públicos. Enfim, mostra que fazer a coisa certa seja, ao fim, dizer: “Prezada. Não estou à venda.”

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