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Mesa posta para o Centrão

Os campeões do fisiologismo do Congresso já esfregam as mãos de olho nos orçamentos polpudos que Jair Bolsonaro, contrariando o discurso que o elegeu, promete lhes entregar
01.05.20

Para ampliar sua base no Congresso Nacional e conquistar o apoio de partidos do Centrão, o presidente Jair Bolsonaro colocou pelo menos 53 bilhões de reais em jogo. Esse é o orçamento de todos os órgãos em negociação com legendas historicamente associadas ao fisiologismo, à velha política e, não raro, aos malfeitos. Aproveitando o momento de fragilidade política de Bolsonaro, o bloco de partidos abriu a temporada de barganhas, assim como fizeram em momentos cruciais dos governos do PT e de Michel Temer. Siglas como PP, PL, Republicanos, PTB, PSD e Solidariedade, de políticos como Paulinho da Força, Valdemar Costa Neto e Roberto Jefferson, pressionam por nacos cada vez maiores na estrutura administrativa federal.

Sem muita saída, o presidente incluiu no acordo com o Centrão o comando de órgãos estratégicos em áreas como educação, saneamento, transporte, obras contra a seca, e até diretorias de bancos públicos. O problema é que, historicamente no país, negociações dessa natureza com raposas tão felpudas da política, muitas das quais donas de extensas fichas corridas, não costumam dar em boa coisa. Em geral, os bilhões disponíveis nesses “aparelhos partidários” acabam servindo como dutos para desvios de dinheiro público – e (anote isso, caro leitor) nada garante que não haverá traição mais adiante.

O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, FNDE, virou um exemplo do que não deveria ser feito em órgãos públicos entregues de “porteira fechada” a agremiações políticas. O órgão que já foi reduto do DEM está em vias de ser cedido ao PP. Para os não familiarizados à sopa de letrinhas dos partidos do Brasil, trata-se da legenda liderada por Arthur Lira e Ciro Nogueira, envolvidos até o pescoço nos esquemas descobertos pela Lava Jato. A autarquia tem a relevante atribuição de executar políticas para melhorar o combalido ensino público brasileiro, mas um rumoroso caso de compra milionária de computadores para distribuir para escolas – negócio que foi suspenso no ano passado após a descoberta de fraude no processo – mostra como é fácil operar esquemas de corrupção nos nacos do poder entregues à fina flor do fisiologismo.

A negociata envolveu um pregão de 3 bilhões de reais para a aquisição de equipamentos para o Programa Educação Conectada. O FNDE compraria 1,2 milhão de computadores, notebooks, projetores e lousas digitais para alunos da rede pública de ensino. A autarquia não solicitou autorização ao Ministério da Economia, como exige a legislação em concorrências públicas desse montante. Mas esse é o menor dos problemas. Além de identificar riscos de direcionamento do pregão, auditores fizeram contas básicas e chegaram à conclusão de que o quantitativo estimado pelo FNDE tinha distorções graves. O documento previa, por exemplo, a compra de 117 laptops para cada estudante da Escola Municipal Laura Queiroz, do município de Itabirito, em Minas Gerais. Diante dos dados levantados pelos auditores e da conclusão inconteste de que o negócio era uma grande falcatrua, a autarquia cancelou o pregão.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, Crusoé pediu ao Ministério da Educação acesso a toda a documentação relacionada à licitação do FNDE para entender como – e, sobretudo, por que motivo – servidores tentaram comprar, em alguns casos, mais de uma centena de computadores por aluno. A legislação obriga os órgãos públicos a fornecerem esse tipo de informação no prazo máximo de 20 dias, mas a reportagem aguardou dois meses e meio e teve que apresentar recursos até conseguir acesso ao processo de licitação, só franqueado no último dia 16. O primeiro documento do processo é de maio de 2018, quando a então secretária de Educação Básica do MEC, Renilda Peres de Lima, pediu ao Comitê Deliberativo de Compras Nacional e ao FNDE a compra de equipamentos para viabilizar o Programa Educação Conectada. Nesse mesmo ano, o FNDE incluiu no sistema eletrônico uma planilha com quantitativos estimados por região e preço médio cotado por oito empresas. No documento, há o valor estimado de 3,6 bilhões de reais para a compra – montante depois reduzido para 3 bilhões de reais. Mas não há assinaturas no documento, nem ofícios encaminhando essas planilhas. Ou seja, não há digitais de quem estimou o quantitativo de 1,2 milhão de computadores.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressEm troca de cargos, Roberto Jefferson converteu-se ao bolsonarismo
Com a mudança de governo em 2019, foi inserido no processo eletrônico, mais uma vez sem assinatura, um documento com o estudo técnico preliminar para a celebração do negócio, desta vez com valor estimado de 3,2 bilhões de reais. Em julho, a autarquia pediu uma nova cotação dos equipamentos. Mais uma vez, os quantitativos controversos aparecem no documento. Em agosto, o Fundo lançou o edital com valor estimado em 3 bilhões de reais e, no mês seguinte, diante dos questionamentos da CGU, a presidência do órgão decidiu cancelar o certame. Questionado, o FNDE não informou qual setor e quais servidores foram responsáveis por estimar o milionário valor da compra de computadores. A autarquia afirmou, no entanto, que o relançamento da licitação ainda está em análise.

No cargo até 2018, o então presidente do órgão, Silvio Pinheiro, era uma indicação chancelada pelo prefeito de Salvador, ACM Neto, do DEM. No governo Bolsonaro, o FNDE teve três presidentes. Carlos Alberto Decotelli, o primeiro, chegou ao posto com aval da ala militar. Foi durante sua gestão, no ano passado, que a fraude acabou barrada pela CGU. Decotelli foi sucedido por Rodrigo Sérgio Dias, nome que teve a bênção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do mesmo DEM de ACM Neto. O afilhado do presidente da Câmara foi demitido no fim do ano e substituído por Karine Silva dos Santos, servidora de carreira do órgão. A expectativa é a de que a nomeação técnica seja efêmera: o nome do novo presidente do FNDE deve sair em breve, diante da pressão que o PP tem feito para acelerar as nomeações de indicados do Centrão.

Além do comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o PP de Arthur Lira acalenta o sonho de controlar o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Regional. O DNOCS é um contumaz escoadouro de dinheiro público. Em 2018, o TCU o classificou como um dos órgãos com maior risco de corrupção no país: o departamento foi mal avaliado em todos os critérios de transparência definidos pelo tribunal. No mesmo ano, o Ministério Público Eleitoral conseguiu suspender na Justiça a perfuração de poços no Ceará, diante de indícios da ingerência do então candidato ao Senado Eunício Oliveira sobre o órgão. A autarquia federal tem orçamento estimado em 998 milhões de reais para este ano e potencial para investimentos em centenas de municípios do semiárido. Para os políticos nordestinos, é um prato cheio. Logicamente, despertou a fome do PP.

Outro órgão alvo da cobiça do Centrão é o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, o famoso DNIT, onde personagens de alto calibre da política nacional já se refestelaram. O orçamento do órgão que pode cair nas mãos do PSD de Gilberto Kassab é de 5,8 bilhões de reais, dos quais só 18% estão carimbados como despesas correntes. O grosso do montante pode ser remanejado ao sabor das decisões políticas, já que 4,7 bilhões de reais, o equivalente a 82% do orçamento, são para investimentos – uma cifra capaz de comprazer até os mais ferrenhos defensores da nova política.

O DNIT já nasceu com a vocação para escândalos. A autarquia foi criada com a extinção do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, DNER, que implodiu no governo de Fernando Henrique Cardoso, após a descoberta, em 1999, da “Máfia dos Precatórios”. A mudança de nome não fez cessar as denúncias. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, o ex-diretor-financeiro do DNIT, Sérgio Pimentel, foi exonerado do cargo e acusou o ministro dos Transportes, Anderson Adauto, de favorecer a empreiteira Queiroz Galvão em pagamentos do governo. Em 2011, já no governo Dilma, um novo escândalo de corrupção apeou do cargo o diretor-geral do DNIT, Luiz Antonio Pagot. O órgão havia virado um feudo para toda sorte de tramoias do PR – aquele mesmo, de Valdemar Costa Neto, que agora se chama PL de novo. Mas não só. Depois de deixar a autarquia, Pagot confessou ter arrecadado dinheiro para diversas campanhas políticas.

André Bueno/CMSPAndré Bueno/CMSPO PSD, de Kassab, trabalha para controlar o DNIT, usual palco de escândalos
O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, é um dos que tentam brecar o toma-lá-da-cá no DNIT, onde diretores pediram exoneração para assumir cargos na Valec. Tarcísio correu ao Twitter para afirmar que as substituições seguirão o mesmo perfil técnico. Foi uma forma de pressionar publicamente o Planalto pela manutenção de quadros de carreira no comando do órgão, que é chefiado pelo general Antônio Leite dos Santos Filho. Mas não há, por ora, compromisso público de Bolsonaro com a vontade de Tarcísio.

Vinculada ao Ministério da Infraestrutura, a empresa responsável pela gestão do Porto de Santos foi outra estatal que despertou a avidez do Centrão. O maior complexo portuário da América Latina quase acabou no colo de Paulinho da Força, o deputado-sindicalista que comanda o Solidariedade. Mas o próprio abriu mão do acordo, pelo menos à luz do sol. O Porto de Santos se notabilizou por ser um reduto histórico do MDB e do ex-presidente Michel Temer. No início dos anos 2000, o então deputado federal foi enredado num esquema de cobranças de propina das empresas que atuavam no porto. Uma investigação chegou a ser aberta, mas foi arquivada pelo STF.

Para evitar que o Porto de Santos entre na feira de cargos (Valdemar também está de olho grande), mais uma vez Tarcísio entrou em cena. Nesse caso, por ora, ele parece levar a melhor. Sem confronto público e com discrição, o ministro indicou o nome de Fernando Biral, até então número dois da estatal portuária, para comandar a empresa. A antiga Companhia Docas do Estado de São Paulo tem investimentos previstos de 227 milhões de reais para os próximos meses, com obras como a instalação de um sistema de monitoramento de cargas e de cadeia logística, a construção de avenidas perimetrais no complexo portuário e a reurbanização da bacia do canal.

Outro órgão importante para o desenvolvimento de políticas públicas que está sendo negociado com o Centrão é a Fundação Nacional da Saúde, a Funasa. Seu orçamento para 2020 é de 2,3 bilhões, concentrado sobretudo em obras de saneamento. O órgão também já ganhou as páginas policiais. Há dois meses, o então presidente da fundação pública, Ronaldo Nogueira, deixou o cargo, depois de ser alvo de uma operação da Polícia Federal que investigou desvios de 50 milhões. Filiado ao PTB de Roberto Jefferson, ele chegou ao cargo com apoio da bancada evangélica. Agora, o comando da Funasa está prometido para o PSD de Gilberto Kassab, que anda se mostrando todo solidário a Bolsonaro.

Bancos públicos não ficaram de fora das tratativas do governo com o Centrão. O Banco do Nordeste está no pacote negociado pelo PP. A instituição traz visibilidade política para quem o comanda porque gere o bilionário Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste, com mais de 40 bilhões em operações de crédito por ano. Em 2016, o Ministério Público Federal no Ceará revelou um esquema fraudulento de empréstimos que gerou prejuízos de 683 milhões à instituição financeira. Entre as empresas agraciadas pelas negociatas, estavam firmas do doleiro Alberto Youssef, condenado a mais de 100 anos na Operação Lava Jato.

Na última quarta-feira, 27, durante participação numa live organizada por uma consultoria política, o vice-presidente Hamilton Mourão falou sobre as negociações entre Bolsonaro e líderes partidários. Argumentou que a crise gerada pela pandemia de coronavírus “obrigou o presidente a buscar nova forma de diálogo com Congresso”. Como é possível notar, porém, de novas as tratativas com o Centrão não têm nada.

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