MarioSabino

Moro, atire pedra em todo cão que ladra

01.05.20

Nesta segunda-feira, Crusoé comemora dois anos de existência. A capa da sua primeira edição foi uma longa entrevista com Sergio Moro, então juiz da Lava Jato, feita pelo diretor da revista, Rodrigo Rangel. Um ano depois, já como ministro, ele sofreria ataques virulentos do Partido dos Trabalhadores e de boa parte da imprensa. Tentaram assassinar a sua reputação a partir de mensagens hackeadas do celular do procurador Deltan Dallagnol. Alardearam que Moro direcionou a investigação do Ministério Público sobre Lula. Uma tremenda balela que ensejou, no entanto, um pedido de suspeição que está com o julgamento suspenso no STF.

Dois anos mais tarde, Moro viu-se obrigado a pedir demissão do Ministério da Justiça. Não tolerou, em respeito à sua própria biografia, que Jair Bolsonaro fizesse uma indicação política para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Os ataques contra ele agora partem de todos os lados — a milícia digital bolsonarista o transformou em “traidor”; petistas e assemelhados, liderados por um advogado que disse que “a condenação de Lula é uma loucura histórica”, apresentaram uma denúncia contra Moro na Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Os aloprados da esquerda dizem agora que o então ministro violou o Código de Ética do Servidor, ao não relatar a “reputada conduta criminosa” de Bolsonaro. Ele também teria feito um escambo, com base na fala mentirosa do presidente de que Moro lhe disse que aceitaria trocar o diretor-geral da PF, mas no final do ano, se fosse nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Os aloprados da esquerda também querem que seja investigado o pedido de Moro, revelado pelo próprio, para que fosse garantida uma pensão à sua família, se acontecesse algo com ele como titular da pasta da Justiça. O Centrão, novo companheiro de infância de Bolsonaro, assiste embevecido ao espetáculo deprimente.

Para completar, o próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, no pedido de investigação sobre as circunstâncias da saída de Moro do ministério, inventou que o ex-ministro pode ser acusado de denunciação caluniosa, caso se comprove que nunca houve tentativa de interferência política na PF da parte de Bolsonaro. É uma invenção porque denunciação caluniosa só é aplicável quando há requisição formal contra alguém que o denunciante sabe ser inocente. Moro não denunciou Bolsonaro, apenas explicou o motivo da sua demissão — e provou o que disse com a troca de mensagens com a deputada Carla Zambelli mostrada no Jornal Nacional. Aliás, o presidente também corroborou Moro, ao dizer que queria mesmo um diretor geral da PF que lhe fornecesse relatórios diários e indicar Alexandre Ramagem para o cargo, um policial que, como segurança de Bolsonaro durante a campanha, “dormia em casa, tomava café comigo, trocava informações”, nas palavras do presidente.

Em meio a esse atropelo de fatos, fui reler a entrevista que Moro deu a Crusoé há dois anos. Destaco alguns trechos abaixo:

Os frequentes ataques que o senhor sofre, especialmente na internet, incomodam em que medida?

Não raramente o que tentam não é um ataque físico, mas sim um ataque à reputação. Tentam retirar a minha legitimidade e a minha credibilidade. Eu acho muito deplorável isso. Não vejo condições de vir publicamente, a cada momento, refutar as fake news que aparecem em sites ou, às vezes, até por supostos jornalistas. Eu acho que não vale a pena. Não se deve dar atenção a quem não merece. Tem um velho ditado que diz que não se deve atirar uma pedra em todo cão que ladra. É muito difícil lidar com isso porque não tenho bem presente até que ponto vale refutar explicitamente ou simplesmente ignorar. Na maioria dos casos, eu tenho simplesmente ignorado. Mas, como eu disse, acho isso deplorável. Claro que, em relação à Operação Lava Jato, existem críticas que são construtivas, existem críticas que a meu ver muitas vezes são injustas, mas que se encontram dentro do âmbito da liberdade de expressão e opinião. Algo diferente são as fake news.

O que mais o agrediu?

Eu já fui ofendido pessoalmente, até no sentido de que teria prevaricado e participado de crimes contra a administração pública. Fizeram isso também com a minha esposa, algo que a meu ver revela o baixo calão desse tipo de ofensor. Chegaram até ao extremo de ofender amigos e mães de amigos meus. É uma coisa extraordinária. Esse é um problema que o mundo tem que debater. Como lidar com essa questão das fake news e a distribuição dessas fake news nas redes sociais. Mas é um problema bastante complexo: como lidar com isso sem abrir oportunidade para censura prévia ou censura à liberdade de expressão. Há uma afirmação, por exemplo, de que a Operação Lava Jato seria seletiva. Mas as operações em Curitiba são focadas nos contratos com a Petrobras, que segundo os casos já julgados era usada para enriquecimento de agentes da própria Petrobras e de agentes políticos que controlavam a empresa na época. Então, é natural que os agentes políticos que aparecem na investigação em Curitiba sejam aqueles vinculados à coalizão governamental de então, e que hoje não necessariamente se encontram do mesmo lado. Temos agentes condenados de vários partidos. Temos gente do PTB, do PP, do PT e do PMDB. Por outro lado, se você for pensar nos desdobramentos da Operação Lava Jato, e a maior parte deles corre em outros juízos, fora de Curitiba, porque não estão centrados apenas nos crimes que envolvem os contratos da Petrobras, eles afetaram todo o espectro político brasileiro. Cada juízo tem sua velocidade, tem sua prática, e tem que ser avaliado. São casos em andamento. As pessoas precisam ter um pouco de paciência.

O que falta para o combate à corrupção no Brasil ser mais efetivo?

Até o momento existe um esforço muito grande por parte do que eu chamo de sistema de Justiça criminal. Estou falando da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, mais alguns órgãos que vêm dando contribuição relevante, como a Receita Federal. Mas o enfrentamento da grande corrupção, disso que a gente tem chamado de corrupção sistêmica, essa corrupção disseminada, exige mais do que processos judiciais. Os processos são importantes, tem que haver resposta institucional, as pessoas que cometeram crimes têm que ser punidas, mas é preciso fazer reformas mais amplas que eliminem incentivos e oportunidades para a corrupção. Estamos cuidando apenas do aspecto patológico da corrupção, e não de suas causas, embora a impunidade seja também uma causa. Tenho a firme crença de que só enfrentar os casos na Justiça não é suficiente.

Era de se esperar que num momento como esse houvesse um engajamento maior dos demais poderes, como o Executivo e o Legislativo, em favor do combate à corrupção?

Houve algumas iniciativas interessantes, para ser bastante justo, como a Lei das Estatais aprovada no ano passado, que melhorou a governança das estatais e foi louvável. Mas diante do tamanho do problema revelado pelos casos já julgados (na Lava Jato), era de se esperar, com todo o respeito, tanto do governo quanto do Legislativo, mais iniciativas para fortalecer a Justiça criminal e para diminuir incentivos e oportunidades para a corrupção. Não é só questão legislativa. Muitas vezes são questões de prática, do dia-a-dia da administração pública. O que se faz ainda no Brasil, por exemplo o loteamento de cargos públicos, é algo que está na raiz dos crimes que surgiram na Petrobras. A Lei das Estatais foi um avanço, mas a meu ver não é totalmente suficiente. Além disso, embora se tenha fechado o cerco nas estatais, as regras não valem para a administração pública direta. As restrições saudáveis que valem para nomear um diretor na Petrobras não se aplicam para a nomeação de ocupante de um cargo importante em um ministério, por exemplo. As regras deveriam ser estendidas para nomeações em toda a administração.

Na ocasião, Moro cogitava tirar um ano sabático nos Estados Unidos ou na França, uma vez concluídos os julgamentos que lhe cabiam na Lava Jato. Seis meses depois da entrevista, ele aceitou integrar o ministério do novo governo, para declaradamente tentar fortalecer o combate à corrupção de dentro do sistema político e diminuir a criminalidade violenta no país — na “firme crença de que só enfrentar os casos na Justiça não é suficiente”. Tomou uma invertida de parlamentares, que desfiguraram os projetos enviados ao Congresso — e, ao final, do próprio Bolsonaro, que se elegeu para o Palácio do Planalto com a pauta do combate sem tréguas à corrupção e traiu a maior parte dos seus eleitores.

Moro tinha desde cedo o diagnóstico para a doença nacional da corrupção sistêmica e afecções similares, como também disse na entrevista a Crusoé: “as restrições saudáveis (depois da Lei das Estatais) que valem para nomear um diretor da Petrobras não se aplicam para a nomeação de ocupante de um cargo importante em um ministério, por exemplo. As regras deveriam ser estendidas para nomeações em toda a administração”. Pois é. Ele acreditou, como dezenas de milhões de brasileiros, que Bolsonaro poderia representar o início da cura. Foi defenestrado porque o presidente quer um amigo subserviente no comando da PF — um amigo subserviente que se esforce para deter as investigações sobre a atuação dos seus filhos na difusão de fake news e sabe-se lá o quê.

O atual presidente revelou-se uma recidiva da doença nacional. Talvez Moro chegue à conclusão de que o início da cura possa ser ele próprio no Palácio do Planalto, mas sem messianismo, espera–se, com o perdão do trocadilho voluntário. Como a sua popularidade permanece inabalável e tende a não sair de patamar elevado, os ataques raivosos a ele continuarão até 2022, de qualquer jeito. O meu conselho é que Moro atire pedra em todo cão que ladra, ao contrário do que disse na entrevista de dois anos atrás. A matilha é perigosa e não tem coleiras que a prendam. Outro conselho: lembre-se sempre de que inimigos jamais serão amigos. Mas amigos podem virar inimigos.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO