Celso de Mello e Augusto Aras são os personagens cruciais da investigação sobre o presidente

Os senhores do inquérito

O papel e a influência que Celso de Mello e Augusto Aras terão na investigação em curso no Supremo para apurar as denúncias de Moro contra Bolsonaro
08.05.20

O depoimento do ex-ministro da Justiça Sergio Moro foi apenas o ponto de partida, o tiro para o alto que precede a largada, do inquérito em curso no Supremo Tribunal Federal que pode selar o destino do presidente Jair Bolsonaro. Nos meios político e jurídico, é consenso que uma investigação dessa natureza, capaz de implicar o mandatário do país e até, ao fim e ao cabo, apeá-lo do cargo, ainda depende de uma série de nuances e condicionantes para deslanchar. Por isso, a atuação de personagens centrais do inquérito será crucial para determinar o seu desenlace. Uma dessas figuras é o relator do caso, o ministro Celso de Mello. A cinco meses de deixar o tribunal, depois de 31 anos de casa, o decano entende que o epílogo de sua carreira pode ser marcado por um processo crucial para o futuro político do Brasil. Por encarar a tarefa como sua última grande missão, o ministro tem atuado com indisfarçável presteza desde a abertura da investigação, em 27 de abril.

Tomado no último sábado, em Curitiba, o depoimento de Moro deixou uma série de caminhos para que os investigadores possam apurar as acusações de interferência na Polícia Federal que pesam sobre o presidente da República. As trilhas são classificadas no depoimento como “elementos de provas”. Coube a Celso de Mello iluminá-los. Nos últimos dias, o decano lançou luz, em especial, sobre o quinto elemento elencado pelo ex-ministro: o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril durante a qual, segundo Sergio Moro, Bolsonaro teria ameaçado trocar o comando da PF no Rio de Janeiro, o diretor-geral e até demitir ele próprio, caso não tivesse acesso a relatórios de inteligência. A determinação de Celso para que o governo enviasse em 72 horas a “cópia dos registros audiovisuais” do encontro é o que mais tem preocupado o Planalto nos últimos dias.

Desde a decisão de Celso de Mello na terça-feira, 5, o staff presidencial se move para tentar não entregar o vídeo. A Secretaria de Comunicação da Presidência se negava a responder se tinha ou não o vídeo da reunião que, num primeiro momento, seria divulgado pelo presidente – ele chegou a dizer até que havia mandado legendar o material para depois torná-lo público como evidência de que estava certo na queda de braço com Moro. Recuou, no entanto, depois de ser alertado por ministros militares de que a gravação, ao ser exposta, poderia lhe causar sérios problemas. Bolsonaro não só puxou o freio de mão como acionou duas vezes e por dois dias consecutivos a Advocacia-Geral da União para que tentasse demover Celso de Mello da decisão de requerer as cópias. Internamente, chegou a haver um jogo de empurra sobre quem estaria com o cartão de memória da gravação: se Célio Faria Júnior, assessor-chefe da Presidência, ou Fabio Wajngarten, o chefe da Secom. Cartão que teria sido formatado, segundo O Antagonista.

Ao recorrer a Celso pela segunda vez na tarde desta quinta-feira, 7, a AGU pediu autorização para entregar trechos da gravação relativos “tão somente ao objeto do inquérito”. A alegação é de que as demais partes conteriam “assuntos sensíveis de estado”. No país da jabuticaba estaria inventada a “meia-prova”. Se levada adiante, a recusa em ceder ao STF os registros audiovisuais caracterizará obstrução de justiça. A situação pode se agravar para o governo se confirmadas as informações de que o Planalto não disporia de todo o teor do material porque parte da gravação teria sido apagada ou mesmo editada. “Configuraria o crime de fraude processual”, afirmou o jurista Miguel Reale Jr, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, à CNN Brasil.

Reale Jr: apagar ou deletar vídeo requerido pelo STF é fraude processual
Não será fácil dobrar Celso de Mello. E o ministro tem pressa. Nos últimos dias, ele deixou claro seu estado de ânimo em relação à investigação. Além de dar 72 horas para a entrega do vídeo que atormenta o Planalto, foi ele quem determinou o prazo de cinco dias para a PF tomar o depoimento de Moro e autorizou de maneira célere os depoimentos de dez pessoas citadas ou relacionadas à acusação feita pelo ex-juiz ao deixar o Ministério da Justiça, entre eles delegados da PF, o atual diretor da ABIN, Alexandre Ramagem, nome do coração de Bolsonaro para assumir a direção da PF, e ministros como os da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, do GSI, Augusto Heleno, da Casa Civil, Braga Netto, além da deputada Carla Zambelli, do PSL de São Paulo. Os depoimentos terão de ser tomados em no máximo 20 dias – sob risco de condução coercitiva de quem faltar.

O ritmo imposto pelo decano se justifica. Celso de Mello, um dos maiores críticos de Bolsonaro dentro da corte – em março, por exemplo, ele declarou que o presidente da República não estava “à altura do cargo” por ter divulgado e avalizado protestos contra o Congresso e o Supremo –, já revelou a interlocutores a intenção de encerrar sua passagem pelo STF em novembro conduzindo o caso até o fim. “Não me parece um inquérito complexo, os fatos são determinados, acredito que será possível, sim, terminar a investigação em no máximo 90 dias”, aposta o ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso, que atuou ao lado do decano durante os 15 anos de sua permanência no Supremo. Se porventura não houver tempo, uma vez que os desdobramentos do inquérito também dependem de diretivas da PF e da PGR – o Supremo já trabalha com planos A, B e C para evitar que a investigação vá parar nas mãos de um ministro indicado por Bolsonaro. Por isso, conforme apurou Crusoé, as chances de um ministro alinhado com o presidente assumir o caso são praticamente nulas. Na avaliação de magistrados, seria o pior dos mundos para a corte. Abriria um imenso portal para toda a sorte de interferência do Palácio do Planalto e fatalmente contaminaria o processo, condenando-o ao irremediável arquivamento. “Seria péssimo se o procedimento ficasse aguardando o indicado pelo presidente para ter sequência normal. Teria-se sob suspeição o próprio relator, o novo ministro indicado pelo presidente. Aposentado o ministro, o inquérito estará tramitando com diligências sendo implementadas”, reconheceu o ministro Marco Aurélio nesta semana, em entrevista ao blog do jornalista Josias de Souza.

O antídoto mais eficaz contra a ingerência do Palácio do Planalto, no entender de integrantes da corte, é a manutenção de Celso de Mello como relator do inquérito. Se não for possível, entrariam em ação os planos alternativos. Um deles é transferir o processo de Celso para um integrante que já atua no tribunal e não para um neófito. Isso ocorreu, por exemplo, quando o então ministro Joaquim Barbosa anunciou sua aposentadoria e todo o seu acervo processual ficou sob a caneta do ministro Luís Roberto Barroso, em vez de Edson Fachin, que havia entrado em seu lugar. Outra possibilidade já aventada internamente seria simplesmente promover a substituição de relatores a partir da mudança na presidência da corte, que ocorrerá em setembro deste ano. Em vez de herdar os processos de Luiz Fux, futuro presidente do tribunal, Dias Toffoli assumiria, dois meses depois, tudo o que hoje se encontra sob o guarda-chuva de Celso, incluindo o inquérito destinado a apurar as acusações de Moro contra Bolsonaro. Também há jurisprudência no tribunal para decisões dessa natureza.

A terceira hipótese – e a mais palatável – é definir um eventual substituto de Celso de Mello por sorteio, como aconteceu após a morte do então relator da Lava Jato Teori Zavascki, num acidente aéreo em janeiro de 2017. Na ocasião, para evitar que o seu substituto imediato tivesse de assumir a vaga já com essa batata quente na mão, o STF sorteou Edson Fachin como novo relator da operação. “Que o computador me poupe de ser relator desse inquérito”, brincou Marco Aurélio, um dos ministros favoráveis ao sistema de sorteio para definir um eventual sucessor de Celso de Mello no inquérito contra Bolsonaro.

STFSTFMarco Aurélio não quer que indicado por Bolsonaro ao STF herde inquérito
O ministro Marco Aurélio ecoa o sentimento de uma ala do STF que, apesar de não admitir que um ministro escolhido por Bolsonaro assuma o caso, também não quer avocar para si a responsabilidade de eventualmente ter de tocar a investigação. Por duas razões: primeiro porque a corte vive mais um momento de dissensão. Alguns togados, por exemplo, consideraram que o ministro Alexandre de Moraes transpôs a linha vermelha ao suspender a nomeação de Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro e atual todo-poderoso da Abin, para a direção-geral da PF. Um dos que demonstraram insatisfação com a decisão de Moraes foi o próprio presidente Dias Toffoli. Outra corrente do STF, porém, abraçou Moraes quando ele virou alvo dos petardos do presidente e achou que Toffoli, ao se opor a ele no caso Ramagem, contribuiu para dividir ainda mais o tribunal. Outro motivo para não querer herdar o inquérito contra Bolsonaro é o fato de os ministros já apostarem de antemão que o procurador-geral da República, Augusto Aras, não estará “jogando junto”, o que seria um complicador.

Aras é outro personagem fundamental para o desenrolar do inquérito. É atribuição do procurador-geral da República pedir diligências, como oitiva de testemunhas, depoimento de réus, quebras de sigilo ou mesmo perícias. Aras, portanto, poderá tentar estender a apuração pelo tempo que achar necessário para o deslinde dos fatos, sem nenhum compromisso com a conclusão do inquérito até novembro, ou seja, até a aposentadoria do ministro relator. “O dono do inquérito é o procurador-geral da República”, diz o criminalista Davi Tangerino, professor de direito penal da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

Em um caso de tamanha repercussão e relevância, Aras, no entanto, pode ser cobrado se ficarem claras eventuais omissões ou uma lentidão deliberada. Essa, portanto, é uma novela cujos próximos capítulos já podem ser imaginados: de todos os lados interessados, haverá polêmica em torno das decisões tanto do ministro-relator quanto do procurador-geral. Há no Ministério Público Federal quem diga que Aras pode até não parecer inclinado a levar Bolsonaro ao banco dos réus – caberá a ele decidir se denuncia o presidente ou se arquiva as investigações, com base nas apurações feitas pela Polícia Federal –, mas por outro lado ele dá sinais de que não está disposto a incinerar sua biografia para proteger o presidente. O pedido de abertura de inquérito teria sido uma das demonstrações nesse sentido – apesar de, para não desagradar tanto o presidente, ter incluído Moro no pacote ao elencar no bojo do inquérito delitos claramente destinados a tentar enquadrar o ex-juiz, como prevaricação, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Por ora, o PGR diz ser prematuro tirar qualquer conclusão sobre o inquérito. Se, no entanto, os depoimentos de testemunhas, perícias e outras provas produzidas pela Polícia Federal apontarem de forma explícita e inequívoca a ingerência de Bolsonaro na corporação, Aras pode se ver obrigado a denunciá-lo.

Ainda que, ao fim da apuração, não venha uma denúncia por parte do procurador-geral da República, o inquérito tende a virar um embaraço para Bolsonaro do ponto de vista político, com potencial repercussão no Congresso, que é onde o jogo do impeachment é jogado. Cada nova revelação no curso da investigação tende a se transformar em um novo desgaste para o presidente. Daí a importância também de Moro. Não se espera, por exemplo, que o ex-juiz vá submergir depois de ter prestado depoimento por quase oito horas no sábado, 2, à Polícia Federal. Além do caminho das provas e das dinamites deixadas para explodir mais adiante – por exemplo, as mensagens ainda inéditas enviadas a Moro por Bolsonaro que tratariam de um inquérito em curso no Supremo Tribunal Federal –, o ex-ministro não costuma jogar parado. É figura pública, dono de grande popularidade, conhece de perto o Código Penal e sempre terá canais para além do inquérito se quiser fustigar o presidente, seja com novas revelações ou mesmo anexando novas provas. Uma amostra disso é que, na tarde de quinta-feira 7, enquanto o governo tentava, com seus advogados oficiais, pressionar para que Celso de Mello desistisse de requerer o inteiro teor das gravações da reunião ministerial de 22 de abril, Moro foi ligeiro e pediu ao decano que mantivesse a ordem para que a Presidência entregasse ao STF a íntegra do vídeo. A peleja só está começando.

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