LeandroNarloch

A ‘ameaça existencial’ era outra

15.05.20

Peço ao leitor que volte a janeiro deste ano. Não parece, mas só passaram quatro meses. Em janeiro, ainda desfrutávamos uma sensação ingênua de segurança, um otimismo com o ano que começava. Tomávamos como garantida a possibilidade de ir a festas ou restaurantes. E ainda achávamos que o aquecimento global era a nossa maior “ameaça existencial”, como a imprensa estrangeira repetia toda semana.

De fato, sofríamos uma ameaça terrível, mas era outra.

Os intelectuais, os planejadores benevolentes, os representantes chiques da sociedade civil e os líderes políticos passaram os últimos quinze anos discutindo a mudança climática. Gastaram milhões só com passagens e estadias de suas comitivas em conferências do clima. Anunciavam medidas para evitar possíveis tragédias que o aquecimento global causaria em questão de décadas. Sem perceber que uma epidemia os empurraria para o abismo em questão de semanas.

Janeiro de 2020 – o equívoco atingiu o pico em Davos, durante a reunião do Fórum Econômico Mundial, entre 20 e 24 daquele mês. O historiador britânico Niall Ferguson participou do evento logo depois de voltar de viagens a Singapura, Taiwan e Hong Kong, onde a epidemia já recebia a devida atenção. “Foi uma ocasião surreal”, disse ele numa entrevista. “O único tema dos debates era aquecimento global e Greta Thunberg. Quando eu alertava sobre o coronavírus, as pessoas me olhavam estranho, me achando mais excêntrico que o habitual.”

O Fórum Econômico recebeu até mesmo representantes de Wuhan, a cidade chinesa onde a epidemia começou, que participaram de conversas sobre… mudança climática.

No dia 15 de janeiro, o Fórum de Davos publicou seu Relatório Global de Riscos. Listou o que considerava as cinco maiores ameaças da próxima década: (1) desastres naturais, (2) mudança climática, (3) impactos humanos no meio ambiente, (4) perda de biodiversidade e (5) terremotos ou tsunamis. Nenhuma linha sobre vírus ou epidemias.

Para ser justo com os autores, é preciso admitir que não parecia haver tanto motivo para preocupação. A primeira epidemia de coronavírus começou em 2002 e terminou no ano seguinte com oitocentas mortes. A segunda, entre 2012 e 2014, se restringiu ao Oriente Médio e matou menos de cem pessoas.

Ainda assim, não dá para dizer faltaram avisos. Bill Gates foi um dos que alertaram. Em palestra de 2015, ele foi preciso: “o maior risco de uma catástrofe global tem esta aparência”, disse ele diante da imagem de um coronavírus. “Se alguma coisa vai matar mais de 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, o mais provável é que seja um vírus altamente infeccioso.”

Imagine se tivéssemos dedicado à prevenção de epidemias só 10% do tempo e do dinheiro gastos com aquecimento global. Se os governos tivessem investido em hospitais o que gastaram em comitivas de conferências climáticas ou em projetos de mudança da matriz energética. Talvez não fosse o suficiente para evitar a pandemia, mas sim, é claro que estaríamos numa situação melhor.

Passamos anos espiando pela janela assustados, tentando flagrar o momento em que a ameaça existencial surgiria do outro lado da rua. Ela nos surpreendeu em forma de vírus já dentro de casa.

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