Karime Xavier/Folhapress"Não é adequado nem prudente contrapor a atenção à economia ao cuidado com a saúde das pessoas"

‘A prioridade deve ser a saúde’

Dom Odilo Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo, diz que não é prudente contrapor a economia aos cuidados com a saúde da população e critica a aliança de Jair Bolsonaro com os evangélicos
15.05.20

Aos 70 anos, dom Odilo Scherer é a principal voz da Igreja Católica no Brasil. No último sábado, 9, o cardeal foi surpreendido no final da manhã por uma ligação do papa Francisco em seu celular. O pontífice estava preocupado com a escalada das mortes pelo novo coronavírus no país, especialmente em São Paulo, onde o arcebispo comanda desde 2007 a terceira maior arquidiocese católica do mundo. Dom Odilo diz que o papa expressou solidariedade aos brasileiros e que ele, em resposta, fez um relato das ações adotadas pelas autoridades e do atual quadro da epidemia por aqui.

Nesta entrevista a Crusoé, o cardeal revela o que pensa sobre o embate político em torno da pandemia e expõe suas insatisfações com o governo de Jair Bolsonaro. Nascido no Rio Grande do Sul, em uma família de imigrantes alemães, dom Odilo é econômico nas palavras, mas não tergiversa nas respostas. Faz duras críticas à “polarização ideológica” reinante no Brasil e critica, por exemplo, a aliança do presidente com denominações evangélicas. “Acho arriscado quando um governante aposta suas fichas num grupo, por mais que este seja aguerrido, fechando-se aos demais, de maneira radical”, diz.

Dom Odilo afirma que o atual governo promoveu “pesados retrocessos na gestão ambiental”, um dos principais temas debatidos em Roma no ano passado, e disse que é preciso avançar mais na luta contra a corrupção porque ela “ainda não está debelada e se reinventa”. Apesar das críticas ao governo e em meio ao crescente movimento pedindo a saída de Bolsonaro, o arcebispo não defende o impeachment do presidente. “Acho que um processo de impeachment com motivação política não é bom para o Brasil neste momento complicado “. Eis a entrevista.

Que relato o sr. fez ao papa no telefonema do último fim de semana?
O papa manifestou sua preocupação em relação à expansão da pandemia no Brasil, mas o objetivo principal da ligação foi manifestar sua proximidade e solidariedade ao povo de São Paulo e do país, com palavras de encorajamento, suas orações e sua bênção. Relatei brevemente os dados disponíveis sobre a pandemia e os lugares de maior incidência. Falei também das medidas já tomadas para evitar o contágio, sobre o atendimento ao povo mais pobre e sobre a situação das estruturas sanitárias para atender os doentes.

Como o sr. tem visto o embate político entre governadores e o presidente da República sobre a melhor estratégia para o enfrentamento da pandemia? Concorda com as medidas de isolamento social ou defende uma flexibilização das ações para evitar mais desemprego?
Vejo com perplexidade e preocupação, uma vez que o combate à pandemia acabou se tornando um embate político. Melhor seria unir esforços para o combate ao insidioso inimigo comum, o novo coronavírus. Não é adequado nem prudente contrapor a atenção à economia ao cuidado com a saúde das pessoas. A economia existe em função das pessoas. A experiência de vários países que enfrentaram a crise da Covid-19 antes de nós mostra que o isolamento social parcial, ou até total, é uma medida adequada para enfrentar a crise. Neste momento, essa é a única estratégia de defesa que temos contra o ataque do vírus, uma vez que ainda não temos uma vacina, nem um medicamento eficaz para curar os doentes. A crise econômica é quase inevitável, como decorrência dessa pandemia. Mas depois de vencermos a pandemia, poderemos unir esforços também para levantar novamente a economia.

O que pode ser feito para amenizar o impacto da crise sobre a população mais pobre?
O auxílio emergencial do governo para ajudar a população mais pobre já foi uma medida importante, embora ainda seja insuficiente. É preciso estarmos atentos para que esse auxílio chegue, de fato, a todos os que precisam dele. Considero boas também as medidas de socorro a empresas, ameaçadas de fecharem, pois isso levaria inevitavelmente à perda de muitos empregos. Vejo que há muitas iniciativas espontâneas de solidariedade em todos os níveis da sociedade e isso é bom.

O que mais preocupa a Igreja neste momento?
A Igreja também tem suas preocupações com a crise, e não apenas por causa da restrição necessária às suas atividades religiosas durante este tempo. Ela promove um volume grande de ajuda social de todo tipo e também emprega muitas pessoas. A prolongada restrição às ações da Igreja a faz perder sua capacidade de ajudar as pessoas e também de sustentar os empregos em suas organizações.

Karime Xavier/FolhapressKarime Xavier/Folhapress“A expressão ‘terrivelmente evangélico’ é infeliz. Seria infeliz, da mesma forma, se fosse alguém “terrivelmente católico, espírita, muçulmano, ateu, agnóstico”
Já há impacto disso na prática? A Igreja já teve que reduzir seu trabalho social e demitir funcionários?
É inegável que as bem necessárias medidas de isolamento social já têm reflexos na economia. Mesmo assim, é preciso continuar priorizando o cuidado com a saúde. Para as organizações da Igreja, não é diferente. Sem a presença do povo nas celebrações e com os templos fechados, as doações e ofertas dos fiéis caem e a Igreja consegue fazer menos pelos necessitados e também pela missão que lhe é própria.

O sr. acredita que podemos chegar em uma situação de caos social se a situação se agravar no Brasil?
Penso que isso não está excluído, mas, neste momento, ainda é uma possibilidade remota. Vai depender muito da sabedoria e da prudência dos governantes. As medidas de socorro emergencial já tomadas foram importantes para aliviar o sofrimento da população mais carente. E vejo muita solidariedade no meio do povo. Com cuidado e paciência, vamos superar a crise sanitária para, depois, superarmos também as outras crises desencadeadas: a econômica e a política.

Como o sr. vê a relação do governo Bolsonaro com as lideranças evangélicas, que têm defendido, inclusive, a flexibilização da quarentena?
Foi uma escolha do presidente, coerente com o que ele pensa. Acho arriscado quando um governante aposta suas fichas num grupo, por mais que este seja aguerrido, fechando-se aos demais, de maneira radical. O presidente precisa governar para todos. A pressão excessiva para a flexibilização do isolamento social vai contra as medidas tomadas pelos governantes de outros países com população igualmente grande. Seria melhor aprender as lições de experiências já adquiridas.

Bolsonaro tem dado espaço a evangélicos no governo e dito que vai indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para a próxima vaga no Supremo Tribunal Federal. É um critério válido?
A expressão “terrivelmente evangélico” é infeliz. Seria infeliz, da mesma forma, se fosse alguém “terrivelmente católico, espírita, muçulmano, ateu, agnóstico”… Esse não deveria ser um critério para ocupar uma vaga no STF. Critérios decisivos deveriam ser a retidão pessoal, a experiência e a competência já demonstradas no campo jurídico pelo candidato a ser escolhido.

Karime Xavier/FolhapressKarime Xavier/Folhapress“No clero e entre os bispos, as posições extremadas são mais sutis e bem mais raras”
Como a polarização política tem se refletido dentro da Igreja Católica no Brasil?
A Igreja Católica é formada por pessoas que também possuem opinião política própria. Por isso, as polarizações existentes na sociedade, de modo geral, também se fazem presentes entre os cidadãos católicos. Já no clero e entre os bispos, as posições extremadas, se existem, são mais sutis e bem mais raras.

Quais saídas o sr. enxerga para a polarização política no país?
A saída é maior objetividade em torno dos problemas e necessidades reais do Brasil neste momento e do atendimento às necessidades e angústias da população. Por outro lado, diálogo sereno em vez de polarização ideológica ou arroubos autoritários.

O que há de concreto na disputa entre as alas progressista e conservadora da Igreja que vemos no noticiário sobre o Vaticano?
Em torno desse assunto há muito clichê e preconceito. No meio dos representantes da Igreja, que são os bispos, existem várias posições, e não apenas progressistas e moderadas. Posições mais radicais são bem raras, embora possam chamar mais atenção sobre si mesmas. Não entendo que as diversas posições estejam necessariamente “em disputa”. Disputa para o quê? Posições diversas são legítimas e complementares na Igreja e não devem ser vistas como excludentes.

Em fevereiro, o papa recebeu o ex-presidente Lula. Essa visita, em um momento de acentuada polarização política no Brasil, não trouxe problemas para a Igreja?
Foi uma visita privada e não se revestiu de oficialidade. Na ocasião, o assunto foi explorado de maneira sensacionalista e mexeu um pouco com os ânimos mais exaltados, mas já passou. Não podemos ter a pretensão de controlar ou aprovar a agenda pessoal do papa. Ele recebe quem ele achar que deve receber e dialoga com todos.

Tem ganhado força um movimento pela renúncia ou pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Qual a opinião do sr. sobre uma possível interrupção do mandato do presidente da República?
A lei deve ser observada, se houver algum argumento legal para promover um processo de impeachment. Neste momento, porém, me parece que os motivos seriam, sobretudo, políticos. Acho que um processo de impeachment com motivação política não é bom para o Brasil neste momento complicado de sua história. Passaram-se apenas poucos anos desde que houve o impeachment da presidente Dilma. Acho que a credibilidade da política brasileira teria muito mais a ganhar se houvesse um entendimento sério das forças políticas para a governabilidade do Brasil. A grandeza dos políticos deve aparecer através do seu esforço concertado para promover o que o país mais precisa, não pela afirmação de paixões ideológicas e partidárias.

Nos últimos anos, o Brasil desnudou uma corrupção sistêmica, envolvendo agentes públicos e empresários. Qual a avaliação do sr. sobre o trabalho alcançado pela Lava Jato até agora?
Ao meu ver, o trabalho já feito foi bom, mas ficou a meio caminho. É preciso avançar nessa luta, pois a corrupção ainda não está debelada e ela se reinventa, como estamos assistindo agora, em pleno combate à pandemia do coronavírus.

Como a Igreja tem visto a gestão ambiental no Brasil?
Infelizmente, constatamos pesados retrocessos na gestão ambiental no atual governo. E isso é preocupante e muito ruim para o presente e o futuro do Brasil. Sobre o cuidado do ambiente, nossa “casa comum”, temos a palavra iluminada do papa Francisco a nos orientar, na encíclica Laudato si.

O Sínodo da Amazônia em 2019 havia proposto ao Vaticano a ordenação de padres casados para atuarem em regiões afastadas no norte do Brasil, mas a medida foi rejeitada pelo papa. A questão pode ser novamente discutida no futuro?
O papa Francisco não “rejeitou” a proposta da assembleia do Sínodo, mas considerou que, neste momento, não era oportuno acolhê-la. Não é uma questão fechada e poderá voltar a ser proposta no futuro. No presente, Francisco indicou vários outros caminhos para que a Igreja Católica possa cumprir de maneira adequada a sua missão na Amazônia.

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