Até quando vai a pandemia?
Diversos laboratórios tentaram desenvolver uma vacina para barrar as mortes provocadas pela gripe espanhola, em 1918. Havia pouca colaboração entre eles e, de vez em quando, surgiam discussões sobre qual era exatamente o agente a ser combatido. Nenhuma tentativa prosperou. “Nunca mais me diga que a ciência médica está a ponto de vencer essa doença”, disse para um colega o médico Victor Vaughan, reitor da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Aterrorizada com as mortes, a sociedade quase bania os infectados. Famílias isoladas morreram de fome porque ninguém lhes entregava comida. Enfermeiras se recusavam a atender chamados de urgência. “Se a atual taxa de aceleração continuar por mais algumas semanas, a civilização poderá desaparecer facilmente da face da Terra”, disse Vaughan na ocasião.
Em outubro de 1918, os números começaram a adquirir proporções administráveis na Costa Leste dos Estados Unidos. Nos dois anos seguintes, a gripe retornou em novas ondas pelo mundo. Entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas perderam suas vidas. O fim não foi decretado por um governante ou por alguma organização internacional. Na prática, a gripe espanhola acabou quando as mortes caíram para quase zero nos diversos lugares por onde ela grassou.
“Em cada comunidade, a gripe espanhola durou entre seis e dez semanas. Depois, desapareceu. Em geral, a normalidade relativa voltou muito rapidamente”, diz o historiador John Barry, autor do livro A Grande Gripe. As pessoas que foram infectadas mais tarde contraíram uma forma mais branda da doença. Isso porque o vírus da influenza, seu causador, tornou-se menos agressivo ao passar por várias mutações.
Para a pandemia do novo coronavírus, não será possível pontuar um término tão rápido e claro. O vírus muda mais lentamente que o da influenza, o que faz com que ele preserve seu potencial letal. Uma vacina não estará disponível antes de um ano e meio. Além disso, a restrição à circulação de pessoas, ao mesmo tempo que evitou milhões de mortes, também impediu que a população se tornasse resistente ao vírus. Qualquer medida governamental descuidada para afrouxar o isolamento pode redundar em um aumento vertiginoso dos óbitos em algumas semanas.
Em todos esses países, a pandemia de Covid-19 caminha para ter um “fim social” antes de ter um “fim médico”. Sem que se encontre uma vacina, um remédio ou que o número de mortes caia naturalmente — fatores que poderiam levar à decretação do fim da epidemia do ponto de vista médico —, os países que já atravessaram o pico da doença vão aos poucos retornando à normalidade, mesmo que relativa. Como o vírus não dá nenhum sinal de que irá desaparecer, a alternativa é virar a página estabelecendo o “fim social” da epidemia. Para dar esse passo, porém, é preciso em primeiro lugar vencer a fase aguda da propagação. Ou seja, uma queda expressiva no número de novas infecções e de mortes por Covid-19. Nos países em que as estatísticas mostram que a situação parece fora de controle, como o Brasil, a virada parece distante.
As lições dos outros países tendem a ser bastante úteis para quem, como nós, está no meio do caminho. Uma delas é crucial: será preciso aprender a lidar com a ameaça do vírus por muito tempo. As pessoas terão de se adaptar a um “novo normal”. Assim como nossos antepassados aprenderam no século 19 que lavar as mãos ajudava a evitar doenças, talvez o uso de máscaras passe a ser uma prática necessária para algumas circunstâncias. “A máscara se tornará uma peça do nosso vestuário e poderemos ter até marcas de roupas produzindo seus modelos”, diz o infectologista José David Urbaez, da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Nossos netos provavelmente vão se surpreender quando descobrirem que nós cumprimentávamos os outros com apertos de mão.”
Hoje, uma tosse dentro de um supermercado, por exemplo, é imediatamente notada por todos em volta. Com o tempo, o esperado é que o nível de alerta seja reduzido. As pessoas terão mais confiança nas medidas que foram tomadas por elas próprias, pelo comércio e pelos governos.
A distância entre o “fim social” e o “fim médico” nas últimas pandemias não foi tão grande como parece que será agora, com o novo coronavírus. Depois de causar a gripe espanhola, o vírus da influenza voltou a causar epidemias de proporções globais em 1957, 1968 e 2009. Em todas elas, o desenvolvimento dos leitos de cuidados intensivos, após a II Guerra, diminuiu o número de mortos. Na pandemia de 1968, que ficou conhecida como gripe de Hong Kong, pesquisadores conseguiram desenvolver uma vacina depois que a pandemia atingiu seu pico. O total de óbitos, ainda assim, foi alto: entre 1 milhão e 4 milhões no mundo.
O novo coronavírus é bem mais truculento que o vírus da influenza e, por isso, torna os prazos menos previsíveis. Em apenas cinco meses, ele já ceifou mais de 300 mil vidas. A primeira epidemia de um coronavírus foi a da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês). A doença surgiu no final de 2002 na província de Guangdong, na China. Era caracterizada por febre persistente, dor de cabeça e uma tosse seca, levando a uma grande dificuldade para respirar. Em março de 2003, quando já infectava milhares de pessoas em Hong Kong, a SARS foi considerada uma ameaça mundial pela OMS. Como o seu coronavírus era extremamente agressivo, muitos infectados morreram antes de comprometer outras pessoas. Isso limitou muito a sua capacidade de fazer novas vítimas. Cerca de vinte países registraram casos, mas a maior parte dos 800 mortos eram da China e de Hong Kong. Muitos eram profissionais de saúde, que foram infectados quando a doença ainda não tinha sido identificada. Em junho, o contágio já tinha sido controlado. Hoje, a SARS não existe mais, de tão implacável que foi com suas vítimas.
A segunda epidemia de coronavírus foi a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, na sigla em inglês). Ela foi identificada pela primeira vez na Arábia Saudita, em 2012. Também provocava tosse, febre e dificuldade de respiração. O vírus, contudo, não passava de uma pessoa para outra com facilidade. Até janeiro deste ano, a MERS causou 2,5 mil mortes, a maioria delas na Arábia Saudita, onde surgiu.
Nas duas epidemias anteriores de coronavírus, não foram desenvolvidas vacinas e os antivirais que foram testados não surtiram efeito. Por causa disso, o novo coronavírus, quando surgiu em dezembro em Wuhan, na China, encontrou um mundo completamente indefeso: sem vacinas, sem remédios e com pessoas que não dispõem de anticorpos para enfrentá-lo. O novo coronavírus também tem uma habilidade muito maior que as dos seus antecessores para se alastrar. Seu período de incubação, de vários dias, faz com que possa afetar grandes populações sem que suas vítimas apresentem sintomas. Com tais predicados, em três meses, ele alcançou mais de duzentos países.
Para que o “fim médico” da Covid-19 ocorra, será necessário criar uma condição imunológica capaz de neutralizar o seu agente — a propalada imunidade de rebanho. “Uma pandemia só pode acabar quando o vírus parar de circular. Para isso, é preciso que haja poucas pessoas que possam ser contaminadas”, diz o infectologista australiano Peter Doherty, da Universidade de Melbourne, na Austrália, vencedor do Nobel em 1996. Considerando que uma pessoa contamina outras 2,5, em média, então será necessário que 60% da população tenha sido infectada para conter a circulação do vírus. Doherty é mais drástico: “Se, como eu acredito, o vírus passa para outros 4,5, então será necessário chegar a 90% da população.” O percurso até lá deverá ser longo, se é que terá um fim. Na Espanha, apenas 5% da população foi contaminada. Na Itália, 4,4%. No Reino Unido, 3,8%. Na Alemanha, 0,7%. No Brasil, um estudo feito pela Universidade Federal de Pelotas encontrou uma prevalência de 0,22% no Rio Grande do Sul. A imunidade de rebanho encontra um obstáculo no fato de a Covid-19 levar muita gente para o hospital ao mesmo tempo e por muito tempo. Ela ataca principalmente os sistemas de saúde, provocando o seu colapso. Sem uma vacina ou sem remédios específicos, os países não contarão com outra opção além de aprender a conviver com o novo coronavírus. “É importante colocar isso sobre a mesa. Esse vírus pode se tornar mais um vírus endêmico. E pode nunca desaparecer. O HIV nunca desapareceu. Encontramos as terapias e as pessoas não têm mais o mesmo medo. Precisamos ser realistas”, disse Mike Ryan, especialista em emergências da Organização Mundial da Saúde, durante entrevista coletiva nesta semana. Ele está certo. No curto prazo, pelo menos, a pandemia terá apenas um “fim social”.
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