Carlos Fernandodos santos lima

Corrupção, governabilidade e o Centrão

15.05.20

Quantos, como eu, foram ao comício das Diretas Já cheios de esperança na redemocratização do país e viram um palanque formado por políticos que inspiravam respeito e fé em um Brasil melhor? Ali estavam representantes das mais diversas correntes políticas e ideológicas irmanados em uma grande causa, a redemocratização. De um lado o grande Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Thales Ramalho, Teotônio Vilela e Franco Montoro, mas também Leonel Brizola, Miguel Arraes e até mesmo Lula. Olhávamos, enfim, líderes que iluminavam um novo caminho para os brasileiros após os anos de chumbo.

Essas pessoas representavam algo importante em nossa política e que se foi perdendo pouco a pouco na Nova República. Pode até ser que nunca tenham sido realmente tudo que imaginávamos. Com certeza, Lula provou-se indigno dessa admiração. A maior parte deles teve a sorte de não se tornarem presidentes da República, de não alcançarem o poder maior no país. Assim, puderam ser mitos da nossa história política sem o ônus que a realidade impõe.

Lentamente, porém, essas grandes lideranças foram sendo substituídas por outro tipo de político. As esperanças em uma nova república, livre do clientelismo, da apropriação privada dos bens públicos e do nepotismo, realmente democrática, foram paulatinamente se deteriorando. Esses grandes políticos foram dando espaço para anões, mas anões muito prestativos, fazedores de dinheiro, que adquiriram o controle da máquina partidária.

O próprio Ulysses dizia: “Adoro as campanhas políticas. Dão-me transporte, de comer e de beber, o melhor quarto da casa, aplausos, votos, e ainda me chamam de estadista”. O Senhor Diretas não se importava, como a maior parte desses políticos, com quem lhe dava transporte, comida, bebida, hospedagem, pois “quem cuida de coisas pequenas, acaba anão” nas suas próprias palavras. Assim, foram recebendo aplausos, votos e homenagens e perdendo para os anões o que realmente importava, o destino da política brasileira.

Junte-se a isso os equívocos da nossa Constituição Federal de 1988. O fato de ter sido promulgada após os excessos dos governos militares e um longo período de bipartidarismo fez com que nosso arcabouço constitucional ficasse desequilibrado, com um excesso de liberdade na criação de partidos que não se conformava com a necessidade de estabilidade dos governos. Assim, permitiu-se a pulverização partidária e a ausência de transparência e de democracia interna nos partidos políticos. Estes passaram a representar interesses regionais, pessoais ou fisiológicos e não propostas políticas para atingir os objetivos defendidos pela Constituição. Eram partidos sem ideologia ou planos de ação, cujo maior interesse era o de receber fundos eleitorais, vender espaço na televisão e alugar apoio para o governante de plantão. Enfim, criou-se o Centrão como uma falsa solução de governabilidade na ausência de partidos fortes.

Esse fenômeno conhecido como democracia de coalizão vem dominando a política brasileira desde o governo Sarney. Todos os presidentes, em maior ou menos grau conforme o momento político e popularidade, cederam espaço para esse grupo amorfo de deputados e senadores. Suas demandas inicialmente eram o que os americanos chamam “pork barrel”, pequenas alocações de recursos públicos em obras cujo principal interesse era exclusivamente o do curral eleitoral daquele político.

Entretanto, a ganância desses políticos foi crescendo conforme os grandes líderes do passado foram desaparecendo e dando lugar aos caciques partidários, aqueles anões que faziam dinheiro para que os grandes próceres da Nova República tivessem transporte, comida, bebida e hospedagem. Por isso, em vez de Ulysses, passamos a conviver com Renans; em vez de um Teotônio, fomos obrigados a engolir Cunhas. E esses homúnculos determinaram nos últimos 20 anos um processo gradativo de dominação do aparelho estatal para exercício puro de poder pessoal ou para fazer simplesmente dinheiro.

Ter acesso a dinheiro público, mesmo que ilícito, passou a ser o objetivo da maioria dos políticos. Assim, estabeleceu-se nas últimas duas décadas um vale tudo entre políticos e partidos, cada um interessado em algum esquema em qualquer esfera da federação, municípios, estados ou União, ou em qualquer órgão público ou estatal, em uma competição cujo único perdedor é o pagador de impostos. E o dinheiro fácil se transformou em campanhas eleitorais cada vez mais caras e a custos cada vez maiores para a manutenção da “nomenklatura” partidária.

A isso chamam política. Mas a isso a lei chama corrupção. Por essa divergência conceitual, políticos ficam indignados quando pegos em investigações, quando denunciados, processados e condenados por esse toma lá, dá cá. Alguns como Lula dizem que se está criminalizando a política, como se fosse a única forma de se governar. Não podemos aceitar isso em hipótese alguma. A política existe nos limites da nossa Constituição Federal, e nenhuma interpretação desta pode chegar à conclusão de que o crime esteja permitido para a classe política.

Agora, repetindo o mesmo movimento de outros presidentes, vemos Bolsonaro voltar-se para o Centrão em busca de governabilidade. Esse presidente oriundo do baixo clero e membro de um dos partidos mais fisiológicos, que fez discursos como apolítico e radicalmente contra a corrupção, volta ao ninho materno. E novamente temos o mesmo leilão de cargos públicos e controle de verbas. O Centrão volta ao poder como garantidor da continuidade de um presidente fraco, como tantos outros no passado.

A lição de tudo isso é que não podemos ficar somente nas mentiras populistas do atual presidente ou nos discursos grandiloquentes dos antigos políticos. O mesmo Ulysses que disse no dia da promulgação da Constituição “não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública” esqueceu-se de olhar para o dia a dia da política onde se escondia a corrupção.

Assim, a luta contra a corrupção e contra o atual modo de fazer política está em voltarmos a nos importar com a política, como aqueles jovens que foram para as praças nos comícios das Diretas, participando de propostas de aperfeiçoamento do processo político, fiscalizando o destino das verbas e o andamento das obras, participando de partidos, exigindo democracia e transparência e cobrando as autoridades públicas. A mudança levará tempo, mas essas pequenas coisas não nos fazem anões, mas cidadãos.

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