MarioSabino

O grande ausente no artigo de Mourão

15.05.20

Hamilton Mourão, o vice-presidente da República que saiu da posse do novo ministro da Saúde com aquela blague deliciosa — “tudo sob controle, só não se sabe de quem” —, assina um artigo publicado no Estadão, nesta quinta-feira, intitulado Limites e Responsabilidades.

Eu me animei com o início do artigo:

A esta altura está claro que a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. A crise que ela causou nunca foi, nem poderia ser, questão afeta exclusivamente a um ministério, a um Poder, a um nível de administração ou a uma classe profissional. É política na medida em que afeta toda a sociedade e esta, enquanto politicamente organizada, só pode enfrentá-la pela ação do Estado.

Para esse mal nenhum país do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrentá-lo de acordo com a sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez.

A minha animação, contudo, foi murchando à medida que fui lendo o restante do artigo. Mourão diz que o mal que o país vem causando a si mesmo é culpa da imprensa, que acirra a polarização e não publica opiniões favoráveis ao governo na questão da pandemia; de governadores, magistrados e legisladores, que estariam usurpando as prerrogativas do Poder Executivo; de ex-presidentes da República, empenhados em exibir uma imagem negativa do país, “por se sentirem desprestigiados ou simplesmente inconformados com o governo democraticamente eleito em outubro de 2018”.

Vice-presidente só tem importância em dois momentos: quando decide romper com o presidente — como fez clandestinamente Café Filho com Getúlio Vargas, em 1954, depois do atentado a Carlos Lacerda —  e quando substitui o próprio presidente (João Goulart, Itamar Franco, Michel Temer). Obviamente, não seria de esperar que Mourão rompesse com Bolsonaro, ainda mais por meio de um artigo, e não há horizonte de renúncia presidencial ou impeachment no curto prazo. Mas ficou esquisito ele apontar o dedo para todo mundo, menos para o principal responsável pela falta de direção no Brasil durante uma pandemia cujos desdobramentos estão levando o país para um buraco mais fundo do que os das outras nações. O principal responsável é aquele senhor que está mais preocupado em salvar a pele da sua família investigada e tentar reeleger-se. Se há dedo a ser apontado, é para Jair Bolsonaro.

Concordo com Mourão que, neste pedaço de história que vivemos, há muita gente fazendo coisa errada. Assistimos a governadores e prefeitos oportunistas mais de olho na vitrine eleitoreira do que na eficiência das restrições impostas aos cidadãos. Assistimos a magistrados legislando, prática que vem se tornando cada vez mais comum. Assistimos a legisladores que aproveitam a dinheirama derramada na economia para atender a desejos paroquiais ou locupletar-se. Assistimos a uma imprensa que, na sua cobertura sobre a pandemia, por vezes beira o mundo cão. Todos esses erros, contudo, não apagam o fato de governadores, prefeitos, legisladores e imprensa atuarem corretamente em boa parte das vezes. Todos esses erros não fazem um único acerto de Jair Bolsonaro.

No seu artigo, Mourão cita O Federalista, a famosa coletânea de artigos dos pais da democracia americana. Ele destaca o trecho no qual John Jay diz que a “administração, os conselhos políticos e as decisões judiciais do governo nacional serão mais sensatos, sistemáticos e judiciosos do que os dos estados isoladamente” , para concluir que “simplesmente porque esse sistema permite somar esforços e concentrar os talentos de forma a solucionar os problemas de forma mais eficaz”. Mourão está certo. Somar esforços e concentrar talentos é papel do governo nacional. Na minha modesta posição de jornalista, canso de dizer que seremos derrotados pela covid-19, se não houver uma política única e coordenada para combater a doença, e que implementá-la seria papel do inquilino do Palácio do Planalto e seus ministros.

Há, contudo, um enorme, estridente e incontornável senão que impede o Brasil de fazer o que tem de ser feito: temos um presidente da República desagregador, em guerra permanente com todo mundo, inclusive com um vírus tratado como inimigo político, como eu já disse em outro artigo. Bolsonaro, não custa repetir pela enésima vez, ainda vende a falsa ideia de que a panaceia para a doença é um remédio fabricado por um dono de laboratório que é seu amigo, e ele sai por aí aglomerando pessoas a seu redor e cumprimentando admiradores depois de limpar o nariz com a mão, em clara provocação a quem preconiza o isolamento social. Por ele, não haveria quarentena (só a “vertical”, uma invenção do ponto de vista epidemiológico) ou confinamento, porque a preocupação com a doença é uma “neurose”. Se há desordem na maneira como foram decretadas as medidas de isolamento social, como disse Mourão, é porque Bolsonaro age como doente mental, convenhamos, e portador de afecção grave: sociopatia. O presidente se mostra irresponsável na vontade de abrir a economia a qualquer preço, não importa o crescimento exponencial do número de mortos que essa decisão acarretaria, e é incapaz de dirigir uma palavra sincera de conforto às vítimas da covid-19 ou de agradecimento aos médicos e enfermeiros que lutam nas piores condições, sem equipamentos apropriados, a fim de salvar vidas. Para se ter ideia da tragédia, segundo o Conselho Nacional de Enfermagem, já morreram 98 enfermeiros no país por causa da doença, mais do que nos Estados Unidos. De acordo com a contabilidade da Organização Mundial da Saúde, o dado representa 38% das baixas na categoria em todo o planeta, uma proporção escandalosa.

Bolsonaro age como maluco, e quem se comporta como maluco o tempo todo acaba maluco. O seu hospício, infelizmente, é o Palácio do Planalto, e a maluquice tem muito método. Ele acaba de editar, por exemplo, uma Medida Provisória que exime de responsabilidade agentes públicos que cometerem erros durante o enfrentamento da pandemia, tanto no plano sanitário, como no econômico. É indecente porque o torna inimputável, assim como os corruptos que acertam a compra de materiais e equipamentos por preços superfaturados. Bolsonaro poderá tocar harpa enquanto o Brasil vai sendo infectado pelo coronavírus, sem medo de ser processado, porque a MP diz que um agente público não poderá ser punido por “mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso”. Não existe vacina para Covid-19, mas Bolsonaro inventou a vacina para os efeitos da sua própria loucura. Um dos efeitos é acabar estendendo por muito mais tempo do que necessário as quarentenas e confinamentos desordenados que não detêm suficientemente a propagação da doença e estendem a paralisia econômica. Perdemos de ambos os lados, enquanto o presidente sabota as medidas restritivas que deveria comandar, em ordem unida.

Mourão termina o seu artigo, que causou grande repercussão, cheio de boas intenções (a tentativa petista de fazê-lo parecer golpista é uma tolice). Ele diz o seguinte:

Enquanto os países mais importantes do mundo se organizam para enfrentar a pandemia em todas as frentes, de saúde a produção e consumo, aqui, no Brasil, continuamos entregues a estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo.

Há tempo para reverter o desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades legalmente constituídas.

Não existe “estatística seletiva”, prezado Mourão, porque dispomos de números ainda menos confiáveis sobre a pandemia do que o habitual sobre qualquer coisa. Nesta semana, o Institut for Health Metrics and Evaluation (IHME), ligado à Universidade de Washington, fez uma projeção sobre o Brasil — note-se que se trata de uma entidade que ajuda a balizar a política sanitária americana, não a cubana ou venezuelana. O instituto estima que o Brasil atingirá o pico de casos de Covid-19 em 2 de junho, com um total máximo de 203.985 registros. Depois de 2 de junho, a epidemia começaria a desacelerar no país, baixando para 103.343 casos em 4 de agosto, última data da projeção. O pico de mortes seria em 27 de junho, com 1.024 óbitos em 24 horas. Em 4 de agosto, seriam contabilizados 757 óbitos. Essa estimativa é baseada nos dados fornecidos pelo Ministério da Saúde do Brasil.

Como os números brasileiros são inconfiáveis, já que as subnotificações abundam mais do que em outras latitudes, o IHME tem uma segunda projeção: em 2 de junho, poderemos ter 618.152 casos, e o pico de mortes, em 27 de junho, chegaria a 2.646 óbitos. Nesse cenário mais sombrio, em 4 de agosto, teríamos 194.307 casos, com até 1.584 mortes nas 24 horas precedentes. Na estimativa baseada na informações oficiais, o Brasil atingiria, em 4 de agosto, um total de 88.305 mortes por Covid-19. Na projeção mais pessimista, os óbitos alcançariam 193.786. Na comparação com outros países analisados pelo IHME, enquanto eles talvez quase zerem as mortes pela doença no início do segundo semestre, nós possivelmente permaneceremos no mesmo patamar de agora, destes meados de maio. Sei que há gente com modelos matemáticos mais róseos, e que modelos matemáticos não dão conta inteiramente da variação das circunstâncias de propagação de um vírus. Mas tendo a crer que o IHME americano tem um pé bem plantado na realidade que observamos no Brasil. Espero que o instituto esteja errado na contabilidade mais pessimista, vou comemorar se estiver.

Quanto à corrupção apontada por Mourão, basta deixar a Polícia Federal trabalhar direito, sem seletividade (aqui a palavra cabe), o que deixou de ser uma garantia com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, e sem MPs malandras que garantam a impunidade, feitas sob medida para o Centrão.  Em relação ao oportunismo, ele aumenta na mesma proporção da discórdia. A discórdia é também uma grande oportunidade para os aproveitadores. E quem semeia a discórdia é ele, Jair Bolsonaro, o grande ausente no artigo assinado por seu vice. Sem um presidente que agregue, lidere de verdade, leve a sério a ciência e esteja disposto a sacrificar o interesse pessoal em prol da sociedade, não haverá tempo para reverter o desastre.

Além de John Jay, Mourão citou James Madison, outro autor de O Federalista. O vice-presidente gostou da parte na qual o fundador da democracia americana que viria a ser o quarto presidente dos Estados Unidos diz que um sistema político deve ter “como fundamentos básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles ao mesmo tempo”. Também gosto. Mourão deve saber que se trata do mesmo Madison que afirmou que “nenhuma nação poderia preservar sua liberdade em meio à guerra contínua”. Acho a segunda frase mais apropriada para o atual momento, porque não se pode exercer a liberdade quando falta saúde. Proteger a saúde de um país é também preservar a sua liberdade.Talvez o vice-presidente possa tentar explicar esse ponto da guerra contínua a Bolsonaro. Se o presidente não entender, tudo permanecerá sob controle, só não se sabe de quem.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO