Saúde verde-oliva
Uma expressão que surgiu nas unidades do Exército na Amazônia se transformou em um cumprimento quase tão comum nos quartéis quanto prestar continência. Nos anos 1950, militares em atuação nas regiões de floresta começaram a usar a interjeição “selva!” para saudar os colegas e, desde então, a expressão é ouvida com frequência em encontros da caserna. Há pouco mais de três semanas, o cumprimento passou a ser corriqueiro em outro endereço: o terceiro andar do Bloco G da Esplanada dos Ministérios. A chegada do general Eduardo Pazuello ao comando da secretaria-executiva, segundo cargo mais importante na hierarquia do Ministério da Saúde, mudou os hábitos e rotinas na pasta. Com ele, foram nomeados ao menos oito militares para postos estratégicos. O ministro da Saúde, Nelson Teich, que tomou posse uma semana antes do general, não escolheu nem sequer seus auxiliares imediatos. Na prática, o presidente Jair Bolsonaro montou na Saúde uma estrutura organizada, estável, com disciplina e obediência militares, que deixou quase prescindível a figura do ministro. Isso ajuda a explicar a fritura imposta a Teich nos últimos dias.
Desde o início da semana, a militância bolsonarista nas redes sociais pede a demissão do ministro, em um movimento que conta com a silenciosa anuência do Palácio do Planalto. Na quarta-feira, 13, Bolsonaro não escondeu a insatisfação com o trabalho do médico carioca, pelas mesmíssimas razões que levaram à queda de Luiz Henrique Mandetta: a defesa do isolamento social e a resistência em ampliar o uso da cloroquina no Sistema Único de Saúde. Teich seguia no cargo até a quinta-feira, 14, apesar do constrangimento público alimentado por Bolsonaro. Mas o Planalto já sabia que substituição seria menos traumática desta vez. Ao contrário de Mandetta, o atual dono do cargo não desfruta de popularidade, nem conta com grande simpatia dos gestores locais. Além disso, a engrenagem militar que foi azeitada na Saúde está pronta para dar continuidade aos trabalhos, sem a necessidade de uma nova reviravolta nas equipes.
Os militares escalados para atuar no ministério de Teich foram acomodados em cargos relacionados a compras, planejamento, pagamento de pessoal e contratos administrativos – setores sem os quais a pasta praticamente não anda. O coronel da reserva Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes, por exemplo, que atuou na área de estudos técnicos e orçamentários do Comando do Exército depois que saiu da ativa, foi nomeado coordenador-geral de Planejamento. Outro coronel, Antônio Elcio Franco Filho, que foi secretário estadual de Saúde de Roraima, virou adjunto do secretário-executivo. As duas funções são essenciais para a coordenação de diversas ações tocadas pelo órgão. Além disso, o próprio Pazuello não precisaria ser alçado ao cargo principal do ministério para tomar as rédeas de atividades precípuas se assim achar conveniente. Um decreto de maio de 2019, que fixou a estrutura regimental do Ministério da Saúde, delegou à secretaria-executiva algumas das funções mais relevantes do órgão, como coordenar os sistemas federais de organização da saúde, o orçamento, o planejamento e a contabilidade, a administração de pessoal e de recursos de tecnologia. O número dois da pasta é responsável ainda pela capacitação de recursos humanos, o planejamento de programas e projetos, e pela articulação com o Conselho Nacional de Saúde.
O ministro e seu número dois até cultivavam uma relação amistosa. O general age de forma diplomática e conciliadora com o chefe, consultando-o sobre decisões relevantes. Mas militares abaixo dele, como alguns coronéis e tenentes-coronéis alçados a cargos-chave, têm sido alvo de reclamações por tentarem interferir no trabalho de técnicos e tirar a autonomia que as secretarias do órgão tinham até a gestão de Mandetta. Funcionários com mais tempo de casa também criticam a exoneração de servidores públicos com décadas de experiência no Sistema Único de Saúde. Eles acabaram substituídos por representantes do Exército, muitos até dotados de experiência com gestão pública, mas sem vivência na linha de frente do SUS.
“Tudo indica que o presidente quer colocar um fantoche no comando do ministério para, por meio dos militares, fazer o que ele quiser ali dentro. Acho gravíssima essa nomeação de generais e coronéis, que podem ajudar muito no combate à pandemia, mas lá do Ministério da Defesa”, afirma a sanitarista Ana Costa, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. “O que aconteceu foi a destituição de técnicos competentes e a nomeação massiva de militares sem nenhuma expertise para enfrentar uma pandemia. Isso é uma afronta à cultura sanitária do Brasil”, diz.
O processo de isolamento enfrentado pelo ministro já era indisfarçável. A situação ficou patente com a assinatura do decreto que transformou salões de beleza, barbearias e academias de ginástica em serviços essenciais durante a pandemia. Bolsonaro anunciou a medida à imprensa na segunda-feira, 11, poucos minutos antes da entrevista coletiva de Teich, que, questionado sobre a iniciativa, olhou com expressão de incredulidade para o general Pazuello, sentado ao seu lado. “Saiu hoje, é?”, perguntou o ministro, para em seguida tentar justificar a injustificável atitude do presidente. “Isso não é atribuição nossa, isso aí é uma decisão do presidente”, disse. O timing do anúncio de Bolsonaro foi a senha para excitar a militância bolsonarista nas redes. A partir dali, foi deflagrada uma sequência de ataques coordenados que pediam a demissão do ministro e a liberação irrestrita da cloroquina no tratamento da Covid-19.
Se ao que tudo indica Teich for realmente demitido, ou se pedir para sair diante da fritura, é real o risco de Bolsonaro radicalizar com a escalação de um substituto da chamada ala ideológica – seria uma forma de ele deixar a máquina funcionando na mão da turma de farda, mas ao mesmo tempo dar satisfação aos seus apoiadores (Atualização: o ministro pediu demissão na manhã desta sexta-feira, 15). Um dos cotados para a vaga é o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, um negacionista da gravidade da pandemia que coleciona previsões fracassadas sobre o progresso do coronavírus. Integrante do gabinete de crise, por escolha de Bolsonaro, a oncologista Nise Yamaguchi, defensora do uso da hidroxicloroquina nos estágios mais iniciais da doença, também é apontada como nome forte para o cargo. A possibilidade de o próprio Pazuello ser nomeado para o cargo também aumentou nos últimos dias, o que talvez seja o caminho menos traumático. Enquanto o ministro parece perder prestígio, nos próximos dias deve ser publicada a nomeação de outra leva de militares para o ministério, a começar pela chefia da área de comunicação, crucial no momento. O Bloco G da Esplanada dos Ministérios ganhará uma coloração definitiva em tons verde-oliva.
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