Reprodução/redes sociaisAraújo: para controlar a informação no Itamaraty, ele suspendeu o boletim com notícias nacionais

O efeito Ernesto

Como o estilo exótico e tresloucado do chanceler brasileiro tem se refletido no dia a dia do Itamaraty e por que seu radicalismo pode ser fatal para os interesses do país no exterior
22.05.20

Nos governos do PT, a diplomacia submeteu-se aos interesses do partido. O Brasil apoiou a escalada do autoritarismo na Venezuela e consentiu com a malandragem do boliviano Evo Morales, que em 2006 tomou as refinarias da Petrobras. O antiamericanismo e o protecionismo atrasaram a abertura econômica. Com Michel Temer, a política externa voltou a buscar, de alguma forma, acordos comerciais. Sob Jair Bolsonaro, o ingresso na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tornou-se uma das principais metas. Um acordo entre o Mercosul e a União Europeia foi anunciado, após vinte longos anos de negociações.

Essa é uma necessária e bem-vinda correção de rumo, mas o processo tem sido ofuscado por uma sucessão de erros que acabaram paralisando o Itamaraty e vêm gerando resultados contrários aos interesses nacionais. Com a chegada de Ernesto Araújo ao cargo de ministro de Relações Exteriores, um clima de perseguição e de intimidação se instalou dentro do órgão. Se nos anos petistas era preciso ostentar simpatias pela esquerda para ganhar uma promoção na carreira diplomática, com Araújo a cartilha passou a ser um ideário difuso que mistura aversão ao multilateralismo, apoio irrestrito ao presidente americano Donald Trump e às linhas tortas da cartilha de Olavo de Carvalho. A ideologia continuou imperando, mas com sinal trocado.

Há, contudo, mais diferenças. Na comparação com seus antecessores, a gestão Araújo parece ser mais impiedosa ao punir aqueles que oferecem alguma resistência. Desde o ano passado, veteranos perderam seus cargos e foram encostados. Nesta semana, ocorreu uma segunda importante dança das cadeiras. Nela, alguns embaixadores se resignaram a cargos menores, como o de cônsul ou de secretário em organismos internacionais. Apesar de terem competência para exercer funções mais políticas, no timão de uma embaixada, eles preferiram assumir cargos mais baixos enquanto a tensão segue elevada. Quem segue no comando de uma embaixada, por sua vez, parou de tomar iniciativas, como buscar parcerias comerciais ou realizar eventos culturais.

“Eles sabem que tudo aquilo que gostariam de fazer não vai acontecer. Ninguém vai ouvi-los ou seguir suas ordens. Então todos se calaram e passaram a somente a cumprir instruções”, diz um embaixador. Chefes de postos passaram a evitar interações com colegas de outros países para não ter de dar explicações sobre um tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro ou do ministro da Educação, Abraham Weintraub, por exemplo. Com o fechamento das fronteiras por causa da pandemia do coronavírus, muitos diplomatas depositaram na repatriação de brasileiros o principal sentido para o próprio trabalho. Assim, podem se esquecer temporariamente de suas outras atribuições.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO busto de Rio Branco com a bandeira, em foto postada por Araújo nas redes
Um ferrenho controle da informação foi instaurado. Qualquer relatório ou e-mail que mencione uma crítica ao presidente Jair Bolsonaro ou a Araújo passou a ser considerado um gesto de traição. Acabrunhados, funcionários lotados no exterior deixaram de enviar telegramas citando notícias críticas que saem em jornais estrangeiros. Dessa forma, eles também não são cobrados a pedir uma retratação ou enviar uma carta aos editores dando explicações ou solicitando uma reparação ao veículo – algo que o embaixador brasileiro em Paris, Luiz Fernando Serra, um dos raros diplomatas que põem a cara para defender o governo, fez nesta semana em carta ao Le Monde, reclamando de um editorial com pesadas críticas a Bolsonaro.

No início de março, o Itamaraty deixou de enviar em seu boletim diário para os funcionários um compilado com as notícias da imprensa brasileira. O material, com dezenas de páginas, continha apenas transcrições de reportagens publicadas no Brasil sobre política externa ou sobre a agenda internacional. Na sexta-feira, 15, o ministro João Alfredo dos Anjos Júnior deixou o posto de diretor da Comunicação Social da chancelaria. Ele teria perdido o cargo por não conseguir aplacar as matérias negativas — como se pudesse fazer isso.

A sanha de controle estendeu-se até a Fundação Alexandre de Gusmão, a Funag, que foi criada em 1971 para ser um fórum de debates dentro do Itamaraty e uma ponte com as universidades. Mesmo nos anos petistas, a fundação teve liberdade para convidar pessoas de diferentes linhas, mas com larga experiência, para debater temas da política externa. Com Araújo, a lista de convidados passou a incluir sobretudo pessoas simpáticas ao governo ou recomendadas por Olavo de Carvalho, incluindo blogueiros e youtubers. “Seria como se, no governo do PT, a Funag só chamasse gente da CUT e do MST para debater”, diz um especialista em relações internacionais.

A intervenção de Araújo no Itamaraty compromete a tomada de decisões. Como as áreas técnicas deixaram de ser consultadas, tropeços aconteceram. Há quase 12 mil brasileiros vivendo na Venezuela. Em março, sem que as relações diplomáticas fossem oficialmente rompidas, a embaixada, o consulado-geral e três vice-consulados na Venezuela foram fechados. No mês seguinte, um avião Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira foi até o país para trazer todos os diplomatas, adidos militares, oficiais de chancelaria e seus familiares. Desde então, para renovar um passaporte ou fazer uma justificativa eleitoral, os brasileiros que vivem na Venezuela precisam ir para a Colômbia ou para um país qualquer do Caribe.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO chanceler com Bolsonaro em ato na rampa do Palácio do Planalto
Se alguém tem o passaporte roubado ou extraviado, precisa pedir a um cônsul honorário um salvo-conduto para cruzar a fronteira. Quem é preso por qualquer motivo não conta mais com a assessoria jurídica do consulado. Tampouco há planos para retirar do país de Nicolás Maduro os brasileiros que querem voltar. “A decisão de retirar todo o corpo diplomático só acontece em momentos muito críticos, como uma guerra. O Brasil não pode deixar esses brasileiros totalmente sem assistência”, diz o diplomata Paulo Roberto Almeida, um dos encostados no Itamaraty e o único dos entrevistados que aceitou que seu nome fosse citado neste texto.

Nas últimas semanas, Araújo tem radicalizado em suas atitudes e nas mensagens que posta no Twitter. Após o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e um grupo de ex-ministros de Relações Exteriores e embaixadores divulgarem uma carta pedindo a “reconstrução” da política externa brasileira, Araújo contra-atacou com fúria e disse que eles pertenciam a uma bolha maligna. “As linhas de batalha estão traçadas: agora é Brasil x Bolha”, escreveu o chanceler. “O Itamaraty joga no time do Brasil, ajuda a furar essa bolha maligna que nos oprime e despreza.” No domingo, 17, Araújo estava entre os onze ministros que participaram de um ato na frente do Palácio do Planalto, em apoio ao presidente Jair Bolsonaro.

A explicação para a subida de tom pode estar no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. O conteúdo já foi analisado por Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, que olhou as imagens para averiguar se a gravação reforça a denúncia de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. Segundo relatos, durante o encontro gravado, Araújo teceu duras críticas à China – capazes, inclusive, de piorar ainda mais a já complicada relação diplomática entre os dois países. Como Crusoé publicou em seu Diário nesta semana, há entre integrantes do governo a percepção de que a divulgação da gravação possa até comprometer a permanência de Araújo no cargo. No Itamaraty, o interesse pelo vídeo não cabe nos gabinetes.

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