Presidência da República

Procura-se um responsável

O Brasil se aproxima do ápice da epidemia de coronavírus sem uma política clara para o combate a doença, sem planejamento e, pior, sem alguém que assuma a responsabilidade de conduzir a crise
22.05.20

Num momento crucial do combate ao novo coronavírus no Brasil, em que nos aproximamos do pico do contágio da doença e passamos a ocupar o terceiro lugar no ranking mundial do número de casos de Covid-19, a saúde do país está à deriva. Não bastassem a falta de políticas destinadas a enfrentar o vírus, a ausência absoluta de planejamento, a incapacidade de testarmos a população em número suficiente e a politização de um medicamento transformado em panaceia pelo próprio presidente da República, o Brasil ainda carece de alguém responsável por assumir as rédeas da crise. É como se as autoridades estivessem contaminadas pelo vírus da desídia. Nesta sexta-feira 22, a vacância do cargo de ministro da Saúde completou uma semana. A pasta é comandada por um interino, o general Eduardo Pazuello, que se esquiva de participar das entrevistas coletivas diárias do ministério. Está mais preocupado em abarrotar o órgão que comanda provisoriamente de militares amigos – um deles, Giovani Camarão, futuro coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde, publicou recentemente uma foto nas redes sociais em que aparece sem máscara numa festa para ao menos 17 pessoas, aparentemente pouco se lixando para as recomendações de órgãos internacionais pelo isolamento social. É a triste materialização do “e daí?”, pronunciado por Jair Bolsonaro, quando questionado em entrevista recente sobre as pilhas de cadáveres espalhados pelo país.

Embora os militares dominem postos estratégicos do ministério, ninguém quer dar a cara para bater quando se trata de assuntos delicados. A saída encontrada pelo governo para flexibilizar o uso da cloroquina é emblemática nesse sentido. No início da semana, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o governo lançaria um novo protocolo clínico para permitir o uso do medicamento já a partir dos sintomas iniciais da doença, mas o que veio a público, na quarta-feira, 20, foi um arremedo de protocolo, um documento incompleto com orientações pedestres para a prescrição do medicamento. Em meio ao clima de “não é comigo”, obviamente que ninguém quis chancelar o voluntarismo político do mandatário do país. Por isso, o texto que liberou a cloroquina era apócrifo – não estava subscrito por nenhum técnico ou autoridade da Saúde. Mais um sinal de que estamos em voo cego, e sem piloto.

As novas orientações para tratamento da Covid-19 divergiam de todos os protocolos já elaborados pela pasta. Até então, os documentos levavam sempre, sem exceção, a rubrica de diretores do Ministério da Saúde e o expediente elencando os nomes dos especialistas que porventura tivessem participado da elaboração. No caso da nova diretriz para o tratamento do coronavírus, que indicou o uso da cloroquina a partir do aparecimento de sintomas leves, não havia nem sequer menção ao nome dos colaboradores do documento. Para efeito de comparação, o protocolo de tratamento da retocolite ulcerativa, publicado pelo Ministério da Saúde no Diário Oficial da União, em 26 de março, é assinado pelos então secretários de Atenção Especializada à Saúde, Francisco de Assis Figueiredo, e de Ciência e Tecnologia, Denizar Vianna.

Somente após a enxurrada de críticas à falta de responsáveis pelo novo protocolo de uso da cloroquina, o Ministério da Saúde, orientado pelo Palácio do Planalto, correu para incluir no documento os nomes dos sete secretários da pasta que teriam, em tese, participado da elaboração do texto. Isso ocorreu nesta quinta-feira, 21. De acordo com servidores do ministério, houve toda a sorte de pressões para a inclusão do nome dos signatários. Como ninguém queria assumir a bronca, a lista de responsáveis foi produzida a fórceps. Na nota oficial em que justificou a mudança, o ministério afirmou que a recomendação foi discutida pelo corpo técnico e destacou que, “para deixar clara a participação e o envolvimento de todas as secretarias, os titulares das pastas assinaram o documento ainda na quarta-feira”. Deram um cavalo de pau, mas o próprio Pazuello não quis deixar rastro de autoria no protocolo.

José Dias/PRJosé Dias/PRO interino Eduardo Pazuello não quis deixar digitais no protocolo da cloroquina
Outro atestado da falta de liderança no Ministério da Saúde foi a escalação feita pelo governo para a defesa do medicamento. Na quarta-feira, 20, poucas horas após a mudança de protocolo, Pazuello recusou-se a aparecer na entrevista à imprensa para explicar a medida. Coube à até então incógnita secretária de Gestão do Trabalho e Educação, Mayra Pinheiro, explicar por que o governo flexibilizara as regras de prescrição do medicamento. Com uma máscara estampada com a bandeira do Brasil, a pediatra filiada ao Partido Novo e cotada para a disputa municipal em Fortaleza tentou justificar a ampliação do uso do remédio. “Foi um clamor da sociedade”, disse ela, como se um conceito equivocado de democracia justificasse a decisão.

Prescrever medicamentos é um dos afazeres mais triviais, e, ao mesmo tempo, mais labirínticos da medicina. Os profissionais devem avaliar o paciente, fechar um diagnóstico, definir o objetivo terapêutico, avaliar critérios como eficácia, custo e segurança dos remédios e pesquisar protocolos clínicos. Só ao fim desse périplo o médico faz a prescrição de forma clara e legível, com esclarecimentos sobre riscos e efeitos colaterais. Na última terça-feira, 19, quando o país ultrapassava a barreira das mil mortes contabilizadas num período de 24 horas, Bolsonaro acrescentou mais um elemento ao rol de critérios a serem avaliados antes da escolha de medicamentos: a ideologia política do paciente. Em tom de brincadeira, o chefe do Planalto declarou em uma transmissão ao vivo que “quem é de direita toma cloroquina e quem é de esquerda toma tubaína”. A blague repercutiu mal. Ali, no entanto, já estava mais do que claro que o presidente havia aproveitado o vácuo de liderança no Ministério da Saúde para impor sua vontade. “O Brasil continua (des)governado na área de saúde. Tudo isso, somado, gera um sentimento de insegurança, de desesperança, de medo, ingredientes suficientes para criar uma ambiência caótica, propícia a propostas não apenas populistas mas de retrocesso institucional, como tem sido a tônica nos últimos tempos”, lamentou o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schietti. “Estamos à mercê das iniciativas nem sempre coordenadas dos governos regionais e municipais, carentes de uma voz nacional que exerça o papel que se espera de um líder democraticamente eleito e, portanto, responsável pelo bem-estar e saúde de toda a população, inclusive da que não o apoiou ou apoia”, acrescentou o magistrado, ao decidir sobre um processo que questionava o isolamento.

O quadro é de fato aterrador. Com 20.047 mil mortes e 310 mil pessoas infectadas, o Brasil é hoje o terceiro país com mais casos de coronavírus no mundo, segundo cálculos da universidade americana Johns Hopkins. À frente, estão apenas a Rússia e os Estados Unidos. No entanto, o crescimento exponencial de contaminados e mortos – mesmo com a subnotificação – nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, aponta que caminhamos de maneira célere para virar o epicentro mundial da pandemia. O número insuficiente de testes – ocupamos a 60ª posição no mundo em número de exames por cada 1 mil habitantes – e a baixa taxa de isolamento social são alguns dos fatores que contribuem para a disseminação descontrolada do vírus. “O avanço do vírus ao interior é inevitável”, reconheceu Pazuello na quinta-feira. Protestos contra a quarentena nas últimas semanas em São Paulo, em Brasília e no Rio, fruto da falta da consciência de parte da população e dos estímulos emanados pelo próprio Palácio do Planalto, que deveria dar o exemplo, evidenciam que a situação pode se agravar drasticamente. Na terça-feira, 19, o próprio presidente norte-americano, Donald Trump, cogitou proibir voos provenientes da América Latina de entrarem nos EUA, e elencou como o principal motivo o aumento no número de casos de coronavírus no Brasil. “Eu me preocupo com tudo, eu não quero pessoas vindo para cá e infectando nosso povo”, disse.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAtos pela flexibilização do isolamento: falta de consciência
Apesar da inequívoca necessidade de alguém que avoque para si a responsabilidade de conduzir a travessia de uma crise sanitária sem precedentes na história, o que se descortina no horizonte também não é nada animador. Desde que Nelson Teich anunciou com discrição sua demissão do cargo, pipocou em Brasília o lobby de interessados em assumir o ministério. O caricato Dr. Rey, cirurgião plástico que mora nos Estados Unidos e apresenta reality shows, gravou um vídeo se oferecendo para comandar o combate à pandemia. “Em um mês e três semanas, derrotarei esse vírus”, prometeu a celebridade, sem, obviamente, ser levado a sério. Outros candidatos igualmente risíveis, entretanto, receberam apoio entusiasmado de parlamentares. O médico Ítalo Marsili é um deles. Aluno de Olavo de Carvalho, Marsili ostenta 1 milhão de seguidores no Instagram, onde virou uma espécie de consultor de autoajuda. Em seus vídeos, entre gritos e baforadas de charuto, ele coleciona despautérios como comparações do isolamento com o nazismo e xingamentos a professores. “O sujeito que menos estudou na vida escolhe fazer pedagogia. Pedagogo é o quê? Burro. Professor no Brasil não sabe ensinar porque é burro”, afirmou Ítalo em uma das gravações. Em outro vídeo, o médico criticou o voto feminino e afirmou que, para convencer uma eleitora a votar, basta “seduzi-la”. Apesar de ter mais credenciais para protagonizar uma comédia mambembe do que para ser ministro, Ítalo Marsili circulou pela cidade com o status de “cotado para o ministério”. Foi ciceroneado por deputados e teve o apoio de bolsonaristas. Já a oncologista Nise Yamaguchi, defensora do uso da cloroquina, fez tanta campanha para virar ministra que assessores palacianos afirmaram que a médica estaria “forçando a barra”. Aliados do presidente não escondem ainda o carinho pelo nome do deputado Osmar Terra, do MDB, o mais notório entre os críticos do isolamento social.

Enquanto figuras caricatas e sem credibilidade se oferecem publicamente para ocupar o cargo e fazem lobby nos corredores de Brasília, o interino Eduardo Pazuello dá continuidade ao processo de militarização da cúpula da saúde. Ao todo, já são 21 representantes das Forças Armadas em cargos de comando, principalmente nas áreas de administração, orçamento e finanças. Uma das poucas exceções com formação na área médica é a primeiro-tenente Laura Tiriba Appi. A jovem concluiu a residência em infectologia há apenas três anos e, em 2018, foi aprovada no concurso do Exército. Apesar da diminuta experiência, caiu nas graças do ministro e teve uma ascensão meteórica: na quarta-feira, 20, poucas horas depois de ser nomeada assessora especial, o governo publicou uma edição extra do Diário Oficial da União para promovê-la a diretora de programa. Laura é a única infectologista na equipe de militares montada por Pazuello.

A despeito da inação de grande parte das autoridades para criar um plano coeso e factível para, ao mesmo tempo, combater o vírus e buscar a retomada econômica, há ideias boas no país sendo implementadas. A secretária de Planejamento do Rio Grande do Sul, Leany Lemos, uma cientista política com pós-doutorado nas universidades de Oxford e Princeton, criou um plano de distanciamento controlado, que começou a ser colocado em prática no estado no dia 11 de maio. O projeto é baseado em segmentações por região e por atividade econômica e prevê quatro níveis de restrições, representados por bandeiras de diferentes cores. O processo de organização do modelo é baseado em dados coletados frequentemente. “O governador Eduardo Leite criou um comitê no começo da crise, com mais de 150 colaboradores. A partir de pesquisas amostrais, acompanhamos a prevalência da doença”, contou Leany a Crusoé. O governo estima, segundo ela, um número de infectados no estado dez vezes superior às estatísticas, por conta da subnotificação. “A gente criou esse modelo de bandeiras e protocolos, baseado em sistemas de alerta: quanto maior o risco de uma atividade, maiores as restrições. Definimos alguns protocolos gerais e outros variáveis e, para isso, levamos em conta o peso da atividade econômica no PIB e o grau de segurança dessa atividade”, explica Leany. Segundo ela, o que está ocorrendo no estado “não é abertura, não é retomada, trata-se de um sistema de convivência com a pandemia”. “O modelo tem que ser flexível e ajustável”, afirma. É um exemplo que já poderia estar sendo observado, embora o Palácio do Planalto tivesse preferido apostar no choque com os governos estaduais. Na quinta-feira, porém, Bolsonaro deu sinais de que pode distensionar as relações federativas, estremecidas desde o início da crise. A reunião do presidente com 27 governadores foi amistosa, repleta de discursos em defesa da união de todas as esferas de governo na luta contra a doença. Um alento. A ver se o espírito de cooperação vai durar e render uma política nacional articulada para derrotar a Covid-19.

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