Adriano Machado/CrusoéSob ataque, o ex-ministro cogita passar um período no exterior, mas quer seguir "contribuindo para o debate público"

Moro ataca

O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública conta detalhes da novela que resultou em seu pedido de demissão, revela um estranho pedido para que policiais federais fossem cedidos ao Planalto no início do governo e relaciona a sabotagem de seu projeto anticrime à necessidade do presidente de proteger seu filho investigado
29.05.20

Na primeira entrevista de Sergio Moro a Crusoé, na edição de número 1, o então juiz da Lava Jato tinha acabado de mandar Lula para a prisão. Estava sob fogo cerrado do petismo e de seus satélites. Pensava em passar um tempo com a família no exterior. Muita coisa aconteceu desde então. Moro largou a toga, enfiou-se no figurino de ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro e, produzindo um barulho quase igual àquele que fez ao colocar o líder petista na cadeia, deixou o posto acusando o próprio chefe, o presidente, de agir contra os princípios da República ao tentar interferir politicamente na Polícia Federal. Dois anos depois, o agora ex-juiz e ex-ministro está sob fogo cerrado do bolsonarismo. E, como lá atrás, pensa de novo em passar uma temporada no exterior com a família.

Na viagem de um extremo a outro, sob ataque dos dois polos que há algum tempo dominam a empobrecida cena política nacional, Moro mudou. Se antes era contido ao falar de si mesmo, agora ele já parece bem afeito a um papel que, como juiz, não podia desempenhar. O Moro político discorre sem muita cerimônia, por exemplo, sobre sua popularidade e sua imagem pública. Só não admite que pretenda ser candidato a presidente nas próximas eleições, mas o discurso é de quem caminha para a urna. Na manhã da última quarta-feira, de seu apartamento em Curitiba, ele falou a Crusoé. A seu modo, um tanto polido e sem expressar grandes emoções, revelou passagens ainda desconhecidas de sua aventura no governo e, especialmente, de sua barulhenta saída.

Moro afirma que, com o passar do tempo, se sentia cada vez mais desconfortável sob as ordens de Jair Bolsonaro, um presidente que, diz, não tem muita noção de limites e não entende que seu poder não é soberano. O desconforto começou ainda nas primeiras tentativas de interferência na Polícia Federal e foi aumentando à medida que o Planalto exibia sua indiferença à agenda anticorrupção. Ao despachar o projeto anticrime votado pelo Congresso, por exemplo, Bolsonaro avalizou decisões dos parlamentares que esvaziavam a proposta original, como restrições às prisões preventivas e aos acordos de delação premiada. Nas respostas a seguir, Moro relaciona a postura do ex-chefe à necessidade de proteger o senador Flávio Bolsonaro, seu filho 01, já investigado àquela altura. “Isso aconteceu em dezembro de 2019, mesmo mês em que foram feitas buscas relacionadas ao filho do presidente”, diz.

Ele também conta ter ouvido de conselheiros presidenciais que as propostas para tornar lei a execução imediata da pena para condenados em segunda instância, uma antiga querela jurídica que definiu a prisão e depois a soltura de Lula, era um assunto com o qual Bolsonaro não gostaria de se envolver. E diz mais: “O que se dizia no Planalto era que a soltura do Lula era bom politicamente para o presidente”. Ao falar das razões de seu pedido de demissão, Moro se cerca de cautela porque o assunto é objeto de uma investigação em curso no Supremo Tribunal Federal, mas até quando não responde, ou quando dá meias respostas, ele confere contornos ainda mais graves ao plano do presidente de ter na direção-geral e na superintendência fluminense da Polícia Federal delegados da sua confiança: fica evidente que Bolsonaro queria usar a corporação para fins políticos. Moro ainda faz uma revelação quando indagado sobre a propalada “Abin paralela”, uma suposta estrutura de inteligência que Carlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente, teria maquinado ainda no início do governo para espionar adversários. Ele diz ter recebido “solicitações informais” para que o Ministério da Justiça cedesse, àquela altura, “um número até significativo” de policiais federais para servir diretamente ao Planalto. O que os policiais fariam nunca foi dito. “Felizmente isso foi abortado”, afirma. A seguir, por tópicos, os principais trechos da entrevista.

‘Pensar em candidatura agora é inapropriado’

O sr. é candidato a presidente?
Essas especulações me acompanham desde a época de juiz, e só me prejudicam. Nós estamos agora no meio de uma pandemia muita séria. Quando saí do governo, fiz questão de destacar que lamentava ter que fazer aquilo durante a pandemia. Pensar nisso (em candidatura) é um negócio absolutamente inapropriado no momento. A prioridade do país agora tem que ser, realmente, o combate ao coronavírus.

Mas é uma possibilidade que o sr. considera? Ou é algo que o sr. descarta?
É uma questão que nem passa pela minha cabeça no momento. Eu preciso me reinventar, de certa maneira também preciso me proteger em vários aspectos. É uma ilusão pensar nesse tipo de situação.

Há quem entenda que foi uma jogada política de sua parte se descolar do presidente de forma chamativa. Foi um gesto calculado?
Não. Foi um gesto baseado no princípio que eu sempre segui, que é fazer a coisa certa. Seria muito mais confortável permanecer no governo e a situação seria muito mais tranquila se eu saísse sem que houvesse rompimento. Nunca foi minha intenção prejudicar o governo. Mas eu vi uma interferência política na Polícia Federal para a utilização dela para motivos que eu não reputei apropriados e entendi que era meu dever expor aquela situação, com o objetivo principal de proteger a Polícia Federal dessa iniciativa. E o resultado foi positivo. Mesmo no caso da superintendência do Rio de Janeiro, em que pese ter havido a substituição do superintendente, na minha opinião houve um recuo do presidente porque não foi indicado quem era o nome da preferência do presidente. Minha ideia foi proteger a Polícia Federal. Não porque é a Polícia Federal, mas porque é uma instituição de estado, importante. Este governo tem dificuldade de separar a atuação do órgão como órgão de estado das vontades do governante. Isso enfraquece o estado de direito. Na minha decisão, não teve nada de político nem cálculo oportunista. Pelo contrário, eu estou sujeito a retaliações, estou sujeito a ataques, como tenho sido atacado nas redes sociais. E do ponto de vista da minha popularidade, vejo que hoje, entre boa parte daqueles seguidores mais fervorosos que são tão ligados ao presidente que não admitem crítica, eu na verdade tive perda.

A demissão não foi bom negócio do ponto de vista da sua popularidade, então.
Acredito que não, porque fiquei sujeito a essa rede de fake news, com fake news sendo distribuídas em massa. E naquele segmento um pouco acrítico em relação a algumas propostas do presidente, houve perda.

‘As razões externadas pelo presidente são perturbadoras’

Em que momento o sr. percebeu que não seria possível amplificar a Lava Jato a partir do cargo de ministro do governo Bolsonaro?
Essa foi uma percepção progressiva durante 2019 e 2020. Alguns questionam por que eu não saí antes do governo, mas eu tinha alguns projetos que considerava importantes, como a manutenção da prisão em segunda instância, em que houve a revisão do entendimento pelo Supremo, e depois houve proposta de lei e de emenda constitucional, eu fui no Congresso, defendi, estava acompanhando. Acho que eu era e espero ainda ser uma voz importante para ver se essa proposta consegue ir adiante. Eu tinha também o projeto anticrime, que lamentavelmente não teve apoio do Planalto. Quando foi aprovado, houve certa descaracterização. Eu propus vetos, mas o presidente acolheu pouquíssimos deles. Diga-se, havia até um acordo para a manutenção de mais vetos. Depois veio a interferência na Polícia Federal. Me perguntam se valia tanto a pena manter o Valeixo, mas não era uma questão de quem está lá. A questão era por que a troca e por que o presidente precisava de uma pessoa de confiança, de relacionamento direto dele tanto na direção-geral quanto no Rio de Janeiro. As razões que foram externadas pelo presidente são perturbadoras. Não dá para submeter a Polícia Federal a esse tipo de vontade.

O que era mais perturbador na vontade do presidente?
Todos puderam ver no vídeo e nas mensagens que são públicas, além das coisas que ele me falou pessoalmente, e que eu já declinei em parte do pronunciamento. Alguns dizem que o vídeo não é claro o suficiente, mas é claro no sentido de que o presidente fala da insatisfação dele com os serviços de inteligência e com os relatórios de inteligência. Só que aí o raciocínio, que talvez envolva uma certa sutileza, é o seguinte: ele já tem acesso a todos os relatórios de inteligência aos quais ele pode ter acesso, e nunca houve uma reclamação específica da parte dele, dizendo: “Moro, eu quero esse relatório de inteligência sobre segurança na Copa América ou sobre risco de terrorismo no Brasil”. Nunca houve um pedido dessa espécie. Então, será que ao se dizer insatisfeito ele está falando de relatórios de inteligência aos quais ele realmente tem direito de acesso ou ele está falando de outra coisa? E se o problema é relatório de inteligência, por que precisa trocar em dois dias o diretor da Polícia Federal e o superintendente do Rio de Janeiro? Depois se construiu uma versão de que ele estava falando de segurança. Só que isso não se sustenta, porque não havia nenhuma insatisfação com a segurança física dele e, por outro lado, a versão nem é convergente com o fatos posteriores, em que há mudanças na polícia e a minha demissão, e não a demissão do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (responsável pela segurança do presidente e de seus familiares). Sempre vai ter quem queira virar o rosto para o outro lado. Mas as pessoas são inteligentes o suficiente para tirar suas conclusões.

Em que momento o sr. considerou que Jair Bolsonaro ultrapassou a linha amarela pela primeira vez?
Acho que isso vem num crescente. Não tem um momento específico. Na parte que me toca, o ponto de não retorno foi a demissão imotivada do diretor-geral da Polícia Federal com propósitos que não são aceitáveis. Ali eu não podia ficar. Era mais apropriado sair e externar as razões porque isso poderia ser mais eficaz do que a minha permanência.

‘Revelei aquilo que eu podia provar’

O sr. acabou de dizer que declinou em parte suas conversas com o presidente. Há conversas cujo teor ainda não foi revelado?
Eu revelei aquilo que eu entedia que eu podia provar.

Significa que pode haver outras até mais graves que, por não ser possível provar, o sr. não revelou?
Sobre o que há no inquérito, prefiro deixar isso para o processo judicial. Eu falei aquilo que eu entendia que podia falar.

Há trocas de mensagens inéditas ainda?
As mensagens que eu tinha com o presidente, e não eram muitas porque periodicamente nós apagávamos, e eu mesmo não guardava mensagens por muito tempo, eu passei aos investigadores e estão no processo.

‘Me sentia desconfortável em vários aspectos’

O sr. se arrepende de deixado a toga para virar ministro de Bolsonaro?
Quando assumi, foi com o compromisso específico de consolidar os avanços anticorrupção e avançar no combate ao crime organizado e à criminalidade violenta. Acho que permaneci fiel a esse compromisso até o final, inclusive quando da minha saída. Enquanto estive lá, houve avanços. Teve uma queda expressiva da criminalidade durante o primeiro ano de gestão. É claro que não é mérito exclusivo do governo federal, mas tivemos uma redução de cerca de 20% no número de assassinatos. Também tivemos avanços importantes no combate ao crime organizado. No campo do combate à corrupção, a Polícia Federal sempre teve atuação republicana, mas de fato os avanços nessa agenda se mostraram mais difíceis. Entre os motivos estava a falta de apoio do Palácio do Planalto. Poderia ser feito mais? Poderia. Eu fui ao máximo do que eu poderia fazer.

Em algum momento achou que foi um erro entrar para o governo?
Não foi pelas circunstâncias do momento. O próprio presidente assumiu um compromisso, me prometeu carta branca, o que ele descumpriu. Quando entrei, muita gente dizia: “Que bom que você entrou, porque vai ser uma voz de racionalidade ali dentro, um anteparo contra arbitrariedades”. Eu via também dessa forma, e não só na questão do combate à corrupção. Sou um homem da lei, um juiz com formação de 22 anos. O estado de direito é fundamental na minha formação, e eu também me via nesse papel de resguardar (o governo) de alguns arroubos. Quando entrei, isso estava plenamente justificado e me deixava confortável.

O sr. pensou em sair antes?
Sim. Desde que começou a haver avanço para cima da Polícia Federal. Mas a minha percepção era a de que ali dentro eu era um anteparo contra essa interferência. Ainda que ao custo de credibilidade e de um desgaste pessoal muito grande, a minha presença ali era importante. Até a data da minha saída eu tinha conseguido impedir a interferência. Não posso mentir. Eu me sentia desconfortável em vários aspectos do governo: pela agressividade contra a imprensa, pelo estímulo à violência, ao ódio e, mais recentemente, pela atuação, ou pela não atuação, ou pela descoordenação completa do governo federal em relação ao combate ao coronavírus. Eu sempre defendi o isolamento. É claro que a gente sabe que isso tem um custo muito grande, sabe que as pessoas não gostam e que isso precisa ser acompanhado de medidas de alívio econômico, mas faltava e ainda falta um plano nacional. Não adianta brigar com governador e prefeito pura e simplesmente. Tem que oferecer algo em troca. Embora não seja da minha área, eu falei isso para o presidente da República mais de uma vez. Falei: “Olha presidente, o governo precisa ter um plano para apresentar para os prefeitos e governadores, que a partir daí poderão flexibilizar ou intensificar as medidas segundo as realidades locais”. Mas a proposta do governo federal é negacionista. Até hoje não temos nenhuma propaganda oficial na TV, nem que seja para dizer “tomem cuidado”. O governo pode até ser contra o distanciamento social, mas não tem nem o mínimo para dizer “lavem as mãos” ou “usem máscaras”.

O sr. disse que pensou em sair antes, nas tentativas anteriores de interferência na PF. As primeiras foram em agosto do ano passado.
Eu pensei várias vezes. Em agosto de 2019, o presidente fez aquelas declarações, elencou um motivo que não era verdadeiro (para trocar o superintendente do Rio), o da falta de produtividade, mas nós conseguimos contornar isso com a indicação de um substituto que era uma indicação técnica da própria diretoria da Polícia Federal. As pessoas não entendem, dizem: “Ah, o presidente não pode trocar o diretor ou um superintendente?”. Em certa medida, não pode. Porque a Polícia Federal é um aparato estatal que tem que atuar com neutralidade, e serve também como controle do poder, investiga às vezes crimes praticados pelos próprios governantes. Por isso, não pode estar ao bel-prazer do governante do momento. Qualquer substituição tem que ser muito bem avaliada, técnica, motivada, e os motivos expostos pelo presidente não eram adequados para justificar as alterações. Em março deste ano, como relatei, veio o presidente de novo pedir a superintendência do Rio. A minha avaliação foi que não tinha como justificar a troca. E quando foram externados os motivos, vi que não tinha como aceitar.

O sr. se decepcionou com os seus colegas de ministério que horas após sua saída se postaram ao lado do presidente naquele longo pronunciamento em que ele rebateu suas denúncias? Um dos que estavam lá era o ministro Paulo Guedes, que costurou sua ida para o governo.
Aí são razões muito pessoais. Ou você sai do governo ou fica no governo e apoia o presidente. Nesse período, tive um convívio cordial com boa parte dos ministros, e acho que boa parte deles compõe um quadro respeitável. Tenho apreço pelo Paulo Guedes, e entendo a circunstância de, estando no governo, ele ter que apoiar as políticas e as ideias do presidente, que eram uma fonte de desgaste pra mim. Tenho certeza de que é uma fonte de desgaste para vários ministros que ainda permanecem lá.

O ‘direcionamento político’

Afinal, o presidente queria os órgãos de inteligência trabalhando em favor dos interesses políticos dele?
Isso tem que ser avaliado pelas autoridades dentro do inquérito. Eu apresentei os fatos, esclareci todos esses pontos. Existe ali uma gama de elementos suficiente para tirar as conclusões necessárias.

O presidente entendia que precisava reagir a ações do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que no entender dele estaria usando a estrutura da polícia local para atacá-lo. O que ele queria que fosse feito exatamente pela Polícia Federal?
Isso ele falou publicamente, desde a época daquele episódio do porteiro do caso da Marielle (Franco, vereadora do Rio assassinada em março de 2018). Não estou dizendo aqui que teve algum envolvimento do governador no depoimento, mas as declarações não batiam com o que a Polícia Federal havia apurado. Provoquei a Procuradoria-Geral da República, que pediu que fosse feita uma apuração, depois o porteiro se retratou e também a perícia avaliou que não era bem aquilo. Mas o presidente falava que o governador estaria por atrás disso. A Polícia Federal tem que realizar seu trabalho de investigação com liberdade, autonomia e de maneira republicana. Onde houve crimes, desvios, tem que realizar o trabalho dela. Mas tem que realizar o trabalho sem qualquer pressão ou interferência.

O presidente pretendia usar a estrutura da Polícia Federal para neutralizar as ações do governador?
Eu prestei declarações no inquérito sobre esses fatos.

Havia essa intenção?
A Polícia Federal tem que realizar suas investigações de maneira neutra, aplicando a lei, identificando os ilícitos. Se algum agente público cometer ilícito, tem que ser apurado e resolvido. Mas tem que realizar isso com neutralidade, sem que haja interferência ou direcionamento político. Agora, isso está colocado diante dessa operação desta semana e não cabe mais a mim dizer se houve ou não direcionamento político nesse caso. Isso tem que ser avaliado pelas instituições.

O que ele queria em relação a Wilson Witzel?
É uma questão que tem que ser levada a ele.

A interrogação que fica, especialmente diante do interesse do presidente em ter um canal mais direto na PF no Rio, é se a intenção era se blindar das supostas investidas do governador.
Isso tem que ser indagado ao presidente da República: o que ele queria dizer com proteger família e amigos de sacanagens?

O presidente disse que o “sistema particular” de informações dele funciona. Ele dava indicações no dia a dia de que, informalmente, recebia informes sigilosos de dentro dos órgãos de inteligência e de investigação?
No próprio dia da divulgação do vídeo ele prestou declarações nesse sentido. Cabe a ele fazer esses esclarecimentos. Também há o depoimento do empresário Paulo Marinho a esse respeito, de que teria sido vazada aquela operação (a Furna da Onça). São situações um tanto quanto preocupantes. Eu não tinha nenhum serviço particular de informação. Quanto ao que seria esse serviço particular do presidente, só ele tem condições de dizer.

Mas ele dava sinais de que tinha informantes?
Se houvesse alguma situação clara para mim, a gente mandaria realizar alguma apuração. Mas essas questões precisam ser levadas ao presidente, pela Procuradoria-Geral da República, pela polícia ou pela própria imprensa.

Ao se queixar do desempenho dos serviços de inteligência, na reunião o presidente fez menção a reuniões de madrugada. A que ele se referia?
Quando há uma reclamação sobre encontro de madrugada a minha percepção é que ele se refere a uma suposta reunião no dia 19 de abril na casa do Rodrigo Maia, na qual teriam supostamente discutido o impeachment do presidente. Não sei se essa reunião aconteceu, mas a minha percepção é que ele está se referindo a isso quando fala no vídeo sobre serviços de inteligência que não funcionam e diz que o dele funciona. Ele fez uma reclamação.

Ele chegou a pedir ao sr. alguma informação sobre esse encontro?
Não.

O pacote anticrime e a proteção a Flávio

O presidente demonstrava preocupação, nos bastidores, com as investigações sobre o filho dele, o senador Flávio Bolsonaro?
Essa é uma investigação da polícia estadual e do Ministério Público estadual. Não cabia ao Ministério da Justiça realizar qualquer espécie de interferência.

Ele fazia cobranças em relação a esse assunto?
Para mim não poderia fazer porque não é da minha área. Ele não pediria a mim nada ilegal porque eu não faria nada ilegal. Seria inútil fazer solicitação a mim ou ao Valeixo (Maurício Valeixo, ex-diretor-geral da PF) porque não cumpriríamos solicitação de índole ilegal. Mas me chamou a atenção um fato quando o projeto anticrime foi aprovado pelo Congresso. Infelizmente houve algumas mudanças no texto que acho que não favorecem a atuação da Justiça criminal. Tirando a questão do juiz de garantias, houve restrições à decretação de prisão preventiva e também restrições a acordos de colaboração premiada. Propusemos vetos, e me chamou muita atenção o presidente não ter acolhido essas propostas de veto, especialmente se levarmos em conta o discurso dele tão incisivo contra a corrupção e a impunidade. Limitar acordos e prisão preventiva bate de frente com esse discurso. Isso aconteceu em dezembro de 2019, mesmo mês em que foram feitas buscas relacionadas ao filho do presidente.

O sr. entende que ele não vetou porque precisava proteger o filho?
Me chamou atenção porque é incoerente com o discurso. Assim como são incoerentes com o discurso as alianças recentes que o presidente tem feito com personagens do nosso mundo partidário que não se destacam exatamente pela imagem de probidade. Acho isso um tanto peculiar porque o discurso para os eleitores é um, e a prática é outra bastante diferente.

O Planalto, a PF e a ‘Abin paralela’: ‘Felizmente isso foi abortado’

Há tempos se fala sobre o plano de uma “Abin paralela”, que teria sido levado ao Planalto por um dos filhos do presidente, supostamente interessado em montar uma estrutura de inteligência para servir politicamente ao governo. Havia de fato esse interesse?
Isso nunca me foi colocado nesses detalhes. O que houve no começo do governo, no início de 2019, foram solicitações informais para que nós cedêssemos um número até significativo de policiais federais para atuar diretamente no Palácio do Planalto. Mas essa ideia, como foi revelado pelo falecido Gustavo Bebianno (ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência), foi abortada. Isso foi cortado. Isso não evoluiu.

Havia uma lista de policiais?
Não recordo dos nomes, na verdade. Não é incomum haver requisições de policiais federais para atuar em outros órgãos, mas era um grupo até significativo, de uma só vez, para atuar no Planalto, e felizmente isso foi abortado.

Quantos eram?
Uns cinco, talvez.

Estava claro o papel que esses policiais exerceriam no Planalto?
Para mim não foi externado.

De onde partiu exatamente esse pedido?
Foi feito um pedido informal.

‘Soberano’ e sem limites

Depois da operação de que foi alvo, o governador do Rio disse que está sendo perseguido politicamente por Jair Bolsonaro. Esse é um risco real, a partir do momento em que o presidente conseguiu mudar o controle da PF, como queria?
Essa é uma avaliação que terá que ser feita pelas instituições envolvidas. Existe a necessidade de que a Polícia Federal investigue crimes e desvios de quem quer que os tenha praticado, seja agente público federal ou estadual. É importante que a atuação seja republicana. Quando o presidente vai a público e se vangloria de operações, isso é muito ruim para a imagem da instituição. Essa questão tem que ser apurada, de um lado e de outro.

Há uma espécie de estado policial em marcha no Brasil?
Acho que temos uma democracia consolidada e que as instituições estão atuando e impondo certos limites às ações presidenciais. Preocupa um pouco essa agressividade do Palácio do Planalto em relação à atuação correta das instituições. Por exemplo, na própria questão envolvendo o Alexandre Ramagem (delegado federal atualmente no cargo de diretor da Abin que Bolsonaro quis nomear para o comando da PF, mas foi impedido por uma ordem do STF) . Sim, como decidiu o ministro Alexandre de Moraes houve, sim, desvio de finalidade na indicação e a atuação do Supremo Tribunal Federal foi escorreita. Não tem nenhum motivo para o Planalto se insurgir, e o Planalto sabe disso. Também é correta a condução do inquérito pelo decano do Supremo (Celso de Mello), que é um dos nossos ministros do Supremo mais respeitáveis. O problema é que o Planalto não consegue entender esses limites, que ele não é um poder soberano. É claro que, eventualmente, pode-se criticar algumas decisões judiciais, mas tem que respeitar a atuação das cortes de Justiça. Na própria decisão relativa ao isolamento e à quarentena, a decisão do Supremo foi no sentido de preservar a autonomia federativa para impor essas medidas. Houve grande reclamação dentro do Planalto. Claro que o ideal seria que tivéssemos uma uniformidade nessas medidas, aliadas a medidas econômicas para se evitar o desemprego. Mas o que o Planalto ofereceu em troca? Nada. Simplesmente é contra o isolamento, desde o início. E o governo quer que o Supremo aceite isso? Derrubar as medidas dos estados e prefeitos em troca de nada, de uma irracionalidade completa? Quem está faltando com a razão nesse caso é o governo federal. O Supremo deu a decisão certa. Se o governo federal tivesse um plano federal, uma proposta uniforme, racional, para tratar essa questão, certamente a decisão do Supremo teria sido diferente.

Há um certo temor nos outros poderes de que a PF, junto com a Abin, passe a funcionar como uma grande máquina de espionagem a serviço do Planalto. É uma possibilidade real?
A expectativa é a de que as instituições resistam à tentativa de utilização delas para propósitos equivocados. Na própria Polícia Federal, houve no passado recente a nomeação de um diretor que, pelo menos verbalmente, estava tentando proteger o presidente da ocasião. A instituição resistiu e apontou a tentativa de manipulação. A Polícia Federal tem condições de resistir a essas tentativas. Acho que a minha saída foi essencialmente importante porque eu não poderia me calar. Tinha que falar o que estava acontecendo para evitar que aquilo se consumasse. Hoje a atuação da Polícia Federal se encontra sob holofotes. Isso é bastante importante. A sociedade precisa permanecer vigilante em relação aos abusos do Planalto.

Agora que foi alçado à condição de inimigo do governo, o sr. teme virar alvo dessa máquina?
A rede de fake news já começou a trabalhar muito claramente com disparos em massa de notícias falsas, com as coisas mais absurdas, às vezes com total distorção, no sentido, por exemplo, de que eu estaria protegendo a corrupção enquanto a agenda do Planalto seria contrária à corrupção. Essa é uma verdade inconveniente para os seguidores do presidente, mas quem dentro do governo apoiou a execução da prisão em segunda instância foi o Ministério da Justiça. O Planalto não se movimentou uma vírgula. Inclusive me foi dito, por conselheiros políticos do presidente, que o Planalto não iria se meter nesse assunto. Na questão do projeto anticrime, o Planalto não se movimentou para ajudar na aprovação. Quando o projeto foi em parte descaracterizado, e o presidente teve oportunidade de vetar vários pontos, optou por não vetar mesmo quando havia chances e negociações importantes do Ministério da Justiça com o Congresso, especialmente com o Senado, para manter esses vetos. Além disso, as investigações sobre eventuais desvios no combate à pandemia começaram sob a minha gestão. Eu mandei constituir um grupo especial para fazer essa investigação. Esse suposto operador lá do Rio de Janeiro, o tal do Mário Peixoto (preso há duas semanas na Operação Favorito, que investiga desvio de verbas da saúde), estava com prisão decretada com base em investigação da Polícia Federal desde março de 2020. Durante a minha gestão, a Polícia Federal agiu de maneira republicana, atuou mesmo com dificuldades porque havia um cenário de resistência a essas ações anticorrupção, mas atuou com autonomia, como tem que ser.

O interesse de Bolsonaro na soltura de Lula

Pelo seu relato sobre a prisão em segunda instância, é possível depreender que o Jair Bolsonaro acabou, ironicamente, ajudando o ex-presidente Lula.
O que se dizia no Planalto era que a soltura do Lula era bom politicamente para o presidente. Isso foi dito. Eu sou um homem de Justiça, um homem de lei, e não acho que um cálculo político pode ser envolvido nisso.

De quem o sr. ouviu isso no Planalto?
Vou ficar devendo essa informação.

A preocupação com a investigação do Supremo

Enquanto falamos, policiais federais realizam buscas no inquérito que apura ameaças ao Supremo e há na lista de alvos pessoas muito próximas do presidente. O sr. vê ligação direta do Planalto com a máquina de fake news a serviço do governo?
Eu nunca tive acesso a essa investigação ou a qualquer outra da Polícia Federal. Nesse caso que mencionei do operador do Rio, o Peixoto, fiquei sabendo apenas porque houve um fato insólito. A prisão tinha sido decretada em março, era para ser cumprida em março, mas houve um movimento da associação dos policiais federais no Rio para que não fosse cumprida, não por motivos espúrios, mas porque havia um receio forte da pandemia do coronavírus. Os policiais temiam que realizar a diligência poderia levar a sua contaminação. O fato foi trazido ao meu conhecimento na ocasião. O Ministério Público até entrou com um mandado de segurança para que fosse suspensa a execução. Então, essa operação chegou ao meu conhecimento por conta dessa circunstância bem específica. Mas, normalmente, eu ficava sabendo das operações após serem deflagradas.

Há uma troca de mensagens entre o presidente e o sr. que indica que ele se preocupava com o curso desse inquérito do Supremo.
O teor da mensagem fala por si.

‘Me senti intimidado’

Acredita que a relação do procurador-geral da República com o presidente pode influenciar o rumo do inquérito sobre a interferência na PF, no qual, aliás, o sr. passou a ser também investigado por ação do próprio Augusto Aras?
Espera-se que cada um cumpra o seu dever institucional. Espera-se que a Procuradoria-Geral da República, considerando a sua tradição, inclusive, e a necessidade de cumprimento da lei, cumpra com os seus deveres.

O sr. se surpreendeu ao se ver como investigado?
Eu me surpreendi com a própria abertura do inquérito. Meu pronunciamento foi para esclarecer as razões da minha saída e para a proteção da Polícia Federal. Na abertura do inquérito, de certa forma eu me surpreendi. O procurador-geral vislumbrou ali que poderia haver crimes e acho que isso vai ter que ser respondido pelas instituições competentes. Mas, de fato, eu me senti intimidado. Não que o procurador-geral tenha um propósito intimidatório, mas me senti intimidado pelos termos, ao sugerir que aquilo serviria para me investigar. Eu estou com a consciência absolutamente tranquila de que falei sempre a verdade. Não existem contradições da minha parte, seja no presente momento ou na minha história. Não sou eu que me desdigo a toda hora. Eu cumpri o meu dever. E estou arcando com as consequências, mas sabia que esse era um ônus necessário.

O sr. tinha até há pouco uma relação estreita com a cúpula das Forças Armadas. As circunstâncias da sua saída do governo geraram um estremecimento?
Eu tenho grande respeito pelas Forças Armadas. Mesmo antes deste governo, tive vários contatos e vejo com admiração os militares e essa visão de virtude e honra, essa visão muito nacionalista que eles têm do Brasil. De minha parte, a admiração e o respeito permanecem. Não creio que haja mudança significativa na visão deles em relação à minha pessoa. Acima de tudo, eu posso justificar com algo que é muito corrente nas Forças Armadas, que eu cumpri meu dever. Independentemente de quem goste ou não goste do que eu disse, eu disse a verdade.

‘Aqueles rompantes autoritários precisavam ser expostos’

Por que o sr. não se manifestou na reunião quando o ministro da Educação, por exemplo, defendeu a prisão de ministros do Supremo?
É muito claro que o ambiente, a agressividade e os disparates daquela reunião não favoreciam o contraditório. Eu estava numa posição bastante defensiva durante toda a reunião, me ausentei antes de ela acabar e, dois dias depois, me demiti. Fomos eu e minha defesa que revelamos a existência dessa reunião. Acho um absurdo alguns sugerirem que eu seria conivente com algumas daquelas afirmações. Pelo contrário, nós expusemos aqueles fatos, e eu achava necessário que aquilo fosse exposto, sim. Aqueles rompantes autoritários precisavam ser expostos.

Por que não havia espaço para o contraditório?
A reunião deveria ser para discutir problemas da pandemia. E o que foi discutido da pandemia ali foi basicamente armar a população para se opor a medidas de isolamento e quarentena, que é algo extravagante, para dizer o mínimo, e a reclamação do presidente de que em uma nota de pesar pelo falecimento de um policial rodoviário federal por Covid deveria ter sido colocado, também, que ele teria alguma comorbidade, embora se desconheça qualquer comorbidade que esse policial pudesse ter. Nesse ambiente de irracionalidade não havia possibilidade para o contraditório.

Apesar das tentativas de interferência, o sr. já disse que permaneceria no governo se Valeixo ficasse ou se algum indicado dele fosse escolhido para sucedê-lo. Afinal, era uma questão de princípio ou de interesse em relação a quem seria o novo diretor?
Foi feita uma sugestão ao presidente de dois outros nomes. Isso desde o início do ano, e mesmo naquela quinta-feira. A questão não era a pessoa. Era preservar a instituição da interferência política por motivos impróprios. Eu particularmente entendia que, ficando, haveria um abalo na minha credibilidade, mas a Polícia Federal estaria protegida e, da mesma forma, isso protegeria também a sociedade. A minha própria permanência no governo nos últimos meses com essa reação irracional à pandemia já gerava um desgaste pessoalmente a mim e a minha imagem pública, mas ainda assim eu achava que valia a pena permanecer para preservar a Polícia Federal. Se eu fosse da área da saúde, não poderia ficar, porque eu seria o principal responsável por essa política, como não ficaram nem o ministro (Luiz Henrique) Mandetta nem o ministro (Nelson) Teich. Eles entenderam que era incompatível com a racionalidade, com a ciência e com o compromisso deles como médicos aceitar as ingerências do Planalto. Mas o meu objetivo ali era preservar a instituição Polícia Federal e, dessa forma, indiretamente, a sociedade.

A aliança com o Centrão e o medo de impeachment

Ainda no ano passado, quando surgiram as primeiras informações sobre o estremecimento da sua relação com o presidente, o sr. chegou a desmentir em uma entrevista que isso estivesse ocorrendo. Por que fez isso?
Eu achava que não cabia ficar levando essas divergências internas a público enquanto estava dentro do governo. E como essas tentativas de interferência foram contornadas, até pelo menos a minha saída, era algo que eu entendia que poderia ser contemporizado.

Bolsonaro abandonou as bandeiras que usou para se eleger?
No que se refere à agenda anticorrupção, de fortalecimento das instituições e aprimoramento da lei para tanto, sim, e já faz algum tempo. No que se refere às alianças políticas, o discurso do presidente era muito claro no sentido de que ele não faria alianças políticas com o Centrão e agora ele está fazendo. E a culpa por isso não pode ser posta em mim, dizendo: “Olha, foi preciso fazer aliança com o Centrão por causa da saída do Moro”. Não, isso precedeu a minha saída. Começou antes, pelo receio do presidente de sofrer um impeachment. A motivação principal da aliança é essa.

A Lava Jato perdeu com o governo Bolsonaro, ao contrário do que o sr. poderia esperar?
Não é nem uma questão da Lava Jato. É questão do combate à corrupção. Faltou empenho do Planalto.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO