MarioSabino

O Brasil não precisa de golpe

29.05.20

Quando eu tinha por volta de seis, sete anos, ao ser perguntando sobre o que iria ser quando crescesse, a minha resposta era “oficial de Marinha”. Nunca entendi o motivo. A única vez que subi em navio de verdade foi em 1968, para despedir do meu avô materno que embarcava para a Itália. Achei alto demais. Desde criança, barulho de mar soa para mim como o de chuveiro aberto. Mar deveria ter torneira. O meu estilo de nado, desde sempre: âncora. Afundo que é uma beleza. Cruzeiros marítimos são a ideia mais próxima que faço do inferno — gente demais cercada de água por todos os lados. Não enjoo no mar, mas tenho enjoo de mar. Também passei a nutrir ojeriza a piscinas, depois que soube que o azul não é do cloro, mas resultado da reação química do cloro com urina e outros fluidos corporais. Talvez você passe a ter nojo agora.

Água, para mim, só serve para beber, fazer higiene de pia e tomar banho. Reunida em massa oceânica, o ideal é admirá-la do alto de um monte. Como o das ruínas do palácio do imperador romano Tibério, em Capri. Tibério gostava de jogar os seus amantes no mar, lá de cima, depois que se cansava deles. Mar com história é melhor do que mar sem história. Outro mar com história é o de Portovenere, no Golfo de La Spezia. O poeta inglês Shelley (casado com Mary, a autora de Frankenstein) morava numa ilha próxima. Outro poeta inglês, Byron, atravessou o golfo a nado para visitá-los. Shelley morreu afogado durante uma tempestade que o colheu num barco. Não nadava tão bem quanto Byron, provavelmente. Este último dá nome ao promontório de Portovenere, com resquícios de um templo pagão e uma igreja do século XIV. Consta que o Michael Phelps do romantismo usava o promontório para meditar e inspirar-se. 

Eu dizia querer ser oficial de Marinha, mas confirmei que essa não era mesmo uma boa ideia quando tentei visitar a Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, alguns anos atrás. Meu amigo Diogo morava no Rio, eu invariavelmente estava lá, e resolvemos levar nossos filhos para visitar o lugar onde ocorreu o último baile do Império. Só se chegava à ilha de barco, num percurso de cinco minutos, no máximo. Mas não havia barco. O único barco da Marinha que fazia o trajeto estava quebrado, como nos informou um taifeiro que assistia ao Domingão do Faustão, num quartinho cercado de tralhas por todos os lados. Ele também disse que não sabia quando o barco seria consertado e que fazia tempo que estava quebrado. Não havia barco reserva. “Non è possibile!”, espantou-se a mulher do Diogo. Brasile, Anna.

Essas digressões — sou digressivo, não tem jeito — tiveram o seu porto de partida na carta aberta divulgada nesta terça-feira por um oficial de Marinha, o almirante reformado Eduardo Monteiro Lopes, presidente do Clube Naval. É um tanto abrupto pular de Byron para o Clube Naval, eu sei, mas era preciso dourar um pouco essa pílula indigesta. Em nome do Clube Naval, o nosso eterno marujo resolveu criticar o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, por ter autorizado a divulgação do vídeo daquela conversa de botequim no Palácio do Planalto, no dia 22 de abril. Criticar, não, “repudiar com veemência”. Ele também considerou “agressão” a decisão do ministro Alexandre de Moraes de impedir a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, e afirmou ser “inconcebível” a apreensão do celular de Jair Bolsonaro, por Celso de Mello — apreensão que nunca foi ordenada, fique claro, ela só existiu na cachola do cada vez mais irritadiço general Augusto Heleno.

Monteiro Lopes evitou citar os nomes dos ministros, o máximo de sutileza de um velho lobo do mar, pelo visto. Digamos que o presidente do Clube Naval não é, assim, um general Eduardo Villas Bôas, que, por duas vezes, prestou um enorme serviço ao Brasil: quando se recusou a reprimir os manifestantes que exigiam o impeachment de Dilma Rousseff, como queria o PT, e na vez que enviou um recado conciso ao STF, via Twitter, sobre a confusão que acarretaria a concessão de um habeas corpus que impediria a prisão de Lula. Villas Bôas fez da sutileza uma homenagem à democracia; Monteiro Lopes usou epítetos no limite da truculência para adernar um pouco a confiança nos militares.

A nota do presidente do Clube Naval diz:

Essa agressões, intromissões inaceitáveis, realizadas em curto espaço de tempo, trazem ainda o risco de servirem de incentivo à comportamentos semelhantes de outras instâncias do Poder Judiciário que, interferindo nos demais entes federativos, acabem por contribuir, de forma significativa, para tumultuar o País.

Tropecei em “à comportamentos semelhantes”. Crase errada. Se tivesse os arroubos de Monteiro Lopes, poderia dizer que o erro gramatical é sinal eloquente de que nos falta até português para construirmos um submarino nuclear. Mas a crase errada foi apenas um descuido bobo. Assim como dois erros de regência verbal que pesquei recentemente no romance O Vício do Amor, escrito por mim lá se vão quase dez anos. Até Machado de Assis, vez por outra, cometia seus pecados. A crase errada de Monteiro Lopes só me fez concluir que precisamos mesmo é de uma boa revisão. Falo do país.

Tudo está errado como jamais esteve desde a redemocratização. Até certo ponto, concordo com Monteiro Lopes. O Supremo anda legislando, reescrevendo a Constituição e extrapolando das suas atribuições constitucionais já faz tempo. Veja-se o inquérito sigiloso e inconstitucional aberto há mais de um ano pelo presidente do STF, Dias Toffoli, e comandado por Alexandre de Moraes, relator escolhido a dedo. Trata-se de aberração jurídica de qualquer ponto de vista. Foi no âmbito deste inquérito que Moraes censurou O Antagonista e Crusoé, e agora partiu para cima dos blogueiros bolsonaristas et caterva. Moraes é tão partidário da liberdade de imprensa quanto esses blogueiros são jornalistas. Trata-se de uma súcia de divulgadores de notícias falsas, que torpedeia a democracia da mesma forma que o inquérito sigiloso e inconstitucional do STF. Essa súcia poderia ser objeto de uma investigação promovida pelo Ministério Público ou da Comissão Parlamentar de Inquérito criada para apurar a epidemia de notícias falsas. Jamais de um inquérito sigiloso e inconstitucional, relatado por um ministro que se arroga o direito de definir o que é ou não liberdade. Crase errada.

Jair Bolsonaro, por sua vez, nunca poderia ter interferido politicamente na Polícia Federal, a fim de manter-se a par sobre operações contra os seus filhos e perseguir adversários políticos. Ele também não pode criar um serviço de informação paralelo e lançar mão da Abin em proveito pessoal. Usar dinheiro público para financiar a súcia é igualmente inaceitável. O presidente da República exibe ainda um comportamento execrável, de sociopata, em relação à pandemia de Covid-19, corroborado pela irresponsabilidade, incompetência e pelo oportunismo da maioria esmagadora dos governadores. Essa gente toda vai entrar na história como cúmplice do vírus que já matou e matará dezenas de milhares de brasileiros. Crase errada.

Quanto ao Legislativo, a honestidade continua a ser tão rala quanto os cabelos na minha cabeça e a originalidade das metáforas nela contidas. Disputam a carcaça estatal que lhes foi jogada pelo presidente, em troca de sustentação política. Crase errada.

Diante do que veem no Judiciário e Legislativo, alguns brasileiros sentem-se tentados a concordar com a súcia que prega intervenção militar, o encarceramento de ministros do STF e o fechamento do Congresso. Não vou surrar Winston Churchill, com a sua frase sobre a democracia ser o pior dos regimes, excetuados todos os outros já experimentados. Serei mais pragmático. Golpe militar no Brasil só foi bem-sucedido quando contou com o apoio da maior parte da classe média, de grandes banqueiros e empresários e de circunstâncias internacionais favoráveis, como a Guerra Fria, em 1964. Nada disso existe neste momento, apesar dos esforços da súcia nas redes sociais. A classe média está mais cosmopolita e não quer viver numa república das bananas; os brasileiros de qualquer extração comungam majoritariamente da crença na democracia, como mostram as pesquisas; os banqueiros e empresários perderiam dinheiro e oportunidades. Em caso de golpe, o Brasil se tornaria pária internacional, rejeitado por parceiros comerciais e organismos essenciais para obter investimentos, crédito mais barato e alargar a nossa economia, como a OCDE. Porque o mundo, senhores, mudou. A ameaça comunista tem agora poucas vitrines de uma ruindade indisfarçável — Cuba, Venezuela e Coreia do Norte –, admiradas ou relativizadas unicamente pelos professores dos nossos filhos que tentam convencê-los do contrário, sem sucesso correspondente ao esforço. O pretexto vermelho não cola. Crase errada.

Se tivesse a oportunidade de conversar com o almirante Monteiro Lopes, eu reforçaria a ideia de que o país precisa apenas de uma boa revisão, com cada acento no seu devido lugar. Quem tiver de ser expelido, que o seja dentro das regras da gramática da democracia, sem militar querendo dar aula com vara de marmelo em punho. Que devemos ter cuidado para não queimar um bom livro por causa de crases erradas. E perguntaria se o barco que leva turistas até a Ilha Fiscal foi finalmente consertado. Poderíamos navegar num mar de histórias. Imagino essa conversa com o almirante Monteiro Lopes no Piraquê, no Rio de Janeiro. Quando eu era adolescente, várias moças bonitas pulavam Carnaval no clube dos eternos marujos. Mas o desejo de ser oficial de Marinha quando crescesse não foi ressuscitado. Nem sempre o menino é pai do homem.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO