FelipeMoura Brasil

O Bolsa Pano bolsonarista

05.06.20

Joaquim Nabuco, depois de começar seus estudos em 1866 na Faculdade de Direito de São Paulo, fundou um pequeno jornal para criticar o então presidente do Conselho de Ministros do Brasil, Zacarias de Góis e Vasconcelos, de modo que seu pai, apoiador do ministério, escrevia-lhe “que estudasse” e “deixasse de jornais”.

“Eu, porém, prezava muito a minha independência de jornalista, a minha emancipação de espírito”, lembrou Nabuco, o mais influente dos abolicionistas brasileiros, em seu livro “Minha formação”, publicado em 1900.

Cento e vinte anos depois, veículos e profissionais de comunicação que dizem praticar jornalismo desprezam o espírito de Nabuco na TV, no rádio e na internet, passando pano para o governo federal do qual recebem verbas de publicidade.

Entre os empresários beneficiados, Silvio Santos, que afagou todos os presidentes desde 1970, de Emílio Médici a Jair Bolsonaro, é o menos dissimulado, embora geralmente se limite a atribuir sua subserviência ao poder à concessão pública do canal aberto: “Eu sou concessionário, um ‘office boy’ de luxo do governo”, disse ele em 1985, no governo Sarney. “A minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’ que é o dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono, ou ele aceita a opinião do chefe, ou então arranja outro emprego”, repetiu em abril de 2020.

Um mês depois, portais noticiaram que Silvio Santos cancelou a exibição do principal telejornal do SBT no sábado, 23 de maio, após reclamações do governo Bolsonaro sobre a cobertura de sexta, quando foi divulgado o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril em que o presidente diz a Sergio Moro: “vou interferir”, referindo-se à Polícia Federal.

No mesmo vídeo, o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, diz: “Acho que a gente tá com um problema de narrativa. Hoje de manhã, por exemplo, o pessoal da Band queria dinheiro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Ah, não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei”.

Como várias emissoras, após Celso de Mello retirar o sigilo do vídeo, foram jogando no ar trechos da reunião, essa fala acabou sendo exibida no programa de José Luiz Datena, na própria Band. O apresentador protestou ao vivo, para evitar qualquer interpretação relativa a dinheiro sujo, mas não deixou de fazer uma ressalva sobre verbas de publicidade: “Se você deu dinheiro para alguém aqui da Band, Pedro, você indique para quem você deu, que com certeza essa pessoa vai ser demitida, se não foi uma coisa legal, se não foi mídia técnica. E do jeito que você colocou tem dúbia interpretação.”

A Band, na campanha pela reforma da Previdência, recebeu do governo Bolsonaro 150 mil reais de “mídia técnica” na primeira fase e 1,1 milhão de reais na segunda. (A julgar pelo fato de que Record e SBT foram contemplados, respectivamente, com 6,5 milhões de reais e 5,4 milhões de reais, até se compreenderia a suposta insatisfação.) O próprio Datena, escolhido com frequência por Jair Bolsonaro para entrevistas, recebeu 12 mil reais para cada fala a favor da reforma. Foram quatro ações de merchandising do governo no programa dele, ao custo total de 331 mil reais. “De preferência, eu não quero mais entrevistar o senhor presidente da República”, disse o apresentador após a exibição da fala constrangedora. Dias depois, entrevistou o filho 03, Eduardo Bolsonaro.

Já a atual militante bolsonarista Sara Winter, em gravação publicada no Instagram na madrugada de domingo, 31 de maio, diz a um integrante do grupo “300” que “a RedeTV! é nossa”: “Vamos perguntar o que eles precisam. Pergunta o que eles precisam”, aproveita a ex-feminista, após saber que a equipe da emissora estava no local onde ela organizava uma marcha contra Alexandre de Moraes. A RedeTV! recebeu 240 mil reais na primeira fase da campanha da reforma e 1 milhão de reais na segunda.

Para completar, em 3 de junho, logo após um novo recorde de 1.349 mortes por Covid-19 registradas em 24 horas e anunciadas com atraso depois do Jornal Nacional, a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta apresentada por Jair Bolsonaro, liberando sorteios de prêmios por emissoras de TV e rádio, o que beneficia aliadas do governo que já recebem o que batizei de Bolsa Pano.

Agora, a Secretaria de Comunicação, chefiada por Fábio Wajngarten – que jamais publicou uma lista com os nomes das emissoras de TV e rádio destinatárias de verbas federais e os respectivos valores que já receberam e recebem –, tenta convencer jornalistas e demais pagadores de impostos de que verbas estatais e da própria Secom irrigam sites bolsonaristas de blogueiros de crachá por mera coincidência. A alegação é que elas “são direcionadas pelo Google Adsense, que utiliza inteligência artificial e critérios próprios para distribuição de anúncios”, ou seja, os veículos “foram selecionados pelo desempenho aferido pelo algoritmo do Google, e não pela Secom”.

Poder alegar isso caso a irrigação de sites bolsonaristas com milhares de anúncios seja descoberta, como foi, é uma das razões da manutenção do esquema de mídia programática com verbas federais, até porque os anunciantes podem bloquear “categorias de assuntos e sites específicos”, como esclareceu o Google (que também gera “relatórios em tempo real”), e os próprios sites podem vedar anunciantes específicos, como faz O Antagonista com empresas estatais e governos, recusando-se a receber dinheiro público. A Secom e os sites bolsonaristas (“a mídia que eu tenho a meu favor”, nas palavras do presidente), ao contrário, deixam providencialmente abertas as portas de saída e de entrada dessas verbas e, com a ajuda da claque, apostam na ignorância alheia, fingindo que nem sabiam do benefício mútuo.

Com aval da CGU de Wagner Rosário e da comissão presidida pelo general Braga Netto, da Casa Civil, o Banco do Brasil e a Caixa ainda mantêm em sigilo gastos com publicidade, tendo torrado 155 milhões de reais com anúncios em sites, blogs e canais do Youtube em 2019 e negado pedidos de detalhamento via Lei de Acesso à Informação. Foi o BB que liberou publicidade em um site bolsonarista após Carlos Bolsonaro ter criticado o veto, por pressão nas redes sociais, a anúncios do banco público na página.

Como se nada disso bastasse, uma portaria publicada no começo de junho no Diário Oficial da União transferiu 83,9 milhões de reais do Bolsa Família para a Secom, “tendo em vista”, alegou o Ministério da Economia, “que a grande maioria dos beneficiários está sendo contemplada pelo Auxílio Emergencial” de 600 reais e “a legislação não permite que sejam pagos concomitantemente os dois benefícios para os mesmos beneficiários”. É mais dinheiro a ser gasto, portanto, com a suposta publicidade do governo Bolsonaro.

No livro “Um estadista do Império”, publicado em 1898, Joaquim Nabuco escreveu que “a primeira qualidade do estadista” é “a impersonalidade”. Quem não a possuía, segundo ele, era o mesmo alvo de seu jornal fundado mais de trinta anos antes: “Zacarias de Góis e Vasconcelos era um espírito de combate, indiferente a ideias”; “minucioso como um burocrata em cada traço de pena”; foi “o mais autorizado censor que a nossa tribuna parlamentar conheceu”; “o partido era a sua família espiritual; a ele sacrificava o coração, a simpatia, as inclinações próprias”; era “frio, marmóreo, inflexível”. “A atitude de Zacarias votando no Senado contra a lei de 28 de setembro” – a Lei do Ventre Livre, assinada pela princesa Isabel em 1871, considerando livres todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir de então – “basta para mostrar que ele deixava o estadista, que deve ser o intérprete do interesse nacional, ceder a palavra e o voto ao partidário, mesmo nos maiores episódios da história nacional.”

A autodescrição de Nabuco em “Minha formação” é, em boa parte, o oposto da que fez de Zacarias no livro anterior: “Eu não era, nunca fui, o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história”. “Mas, para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa.”

“A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros fatos ou séries de fatos de que fui contemporâneo”, porque, em casos assim, “a política suspende-se; o que há é o drama universal de que falei, transportado para nossa terra. Não se poderia dizer isto da luta dos partidos, nem do que, exclusivamente, é considerado política pelos profissionais. Esta é uma absorção como a de qualquer hábito, circunscreve a um campo visual restrito: é uma espécie de oclusão das pálpebras. Esse gozo especial do político na luta dos partidos não o conheci; procurei na política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas; tive nela emoções de tribuna, por vezes de popularidade, mas não passei daí: do limiar; nunca o oficialismo me tentou (…); nunca renunciei a imaginação, a curiosidade, o diletantismo, para prestar sequer os primeiros votos de obediência (…).”

“Isto quer dizer que a minha ambição foi toda, em política, de ordem puramente intelectual, como a do orador, do poeta, do escritor, do reformador. Não há, sem dúvida, ambição mais alta que a do estadista, e eu não pensaria em reduzir os homens eminentes que merecem aquele nome em nossa política ao papel de políticos de profissão; mas para ser um homem de governo é indispensável fixar, limitar, encerrar a imaginação nas coisas do país e ser capaz de partilhar, se não das paixões, decerto dos preconceitos dos partidos, ter com eles a mais perfeita comunhão de vida (…). Assim, quando eu tivesse, que não tive, as qualidades precisas, estava impedido para a política pela incompressibilidade do meu interesse humano. Politicamente, receio ter nascido cosmopolita. Não me seria possível reduzir as faculdades ao serviço de uma religião local, renunciar a qualidade que elas têm de voltar-se espontaneamente para fora.”

Eu, Felipe, prefiro o pensamento conservador presente na vida e na obra de Joaquim Nabuco ao partidarismo de Zacarias e ao personalismo de Bolsonaro, ainda mais durante o drama contemporâneo universal da pandemia, quando um estadista de verdade deveria ser o intérprete do interesse da nação em preservar vidas.

Em fevereiro, recebi uma proposta financeiramente extraordinária de um veículo de comunicação que já vinha sofrendo com a ingerência feita pelo dono na área de jornalismo para agradar o governo Bolsonaro e ser beneficiário do Bolsa Pano federal.

Eu, porém, prezo muito a minha independência de jornalista, a minha emancipação de espírito.

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