Reprodução"Não é um plano de abertura, não é um plano de flexibilização, não é um plano de saída, é um plano de convivência com a pandemia"

O exemplo gaúcho

Leany Lemos, a especialista em gestão pública que maquinou uma das mais bem-sucedidas experiências de combate ao coronavírus no país, explica como é possível proteger vidas sem aniquilar a economia
05.06.20

Até março, o maior desafio de Leany Lemos, cientista política nomeada para o posto de secretária de Planejamento do Rio Grande do Sul, era ajudar a colocar em ordem as contas de um estado à beira da falência. Sua guerra era com funcionários públicos que relutavam contra o corte de privilégios. Veio a pandemia e Leany recebeu do governador tucano Eduardo Leite uma missão ainda mais complexa, contra um inimigo ainda mais perigoso. Ela foi encarregada de coordenar as ações de combate ao coronavírus. A reação imediata foi fechar as portas de comércios, indústrias e escolas, mas logo em seguida surgiu o dilema que até hoje atormenta governos em todos os cantos: como e quando reabrir a economia para salvar as empresas sem colocar em risco a vida dos cidadãos?

Com o apoio de técnicos do próprio governo, universidades, federações, sindicatos e empresários, Leany desenvolveu um plano pioneiro para a retomada gradual da economia que agora é inspiração para outros estados. “É um plano de convivência com a pandemia, a chamamos de modelo de distanciamento controlado. A palavra-chave é controle”, diz ela. O plano gaúcho se baseia em dados e na ciência para traçar as diretrizes da retomada. Leva em conta as particularidades das diferentes regiões do estado, a infraestrutura hospitalar, o peso de cada atividade econômica no PIB e o risco de disseminação da doença para estabelecer o que pode e o que não pode reabrir. As diferenças são demarcadas por “bandeiras” cujas cores determinam se o risco é maior ou menor – e indicam se a retomada imediata das atividades é possível ou não.

Após um mês de vigência do plano, os casos no Rio Grande do Sul estão estáveis. O sistema de distanciamento controlado é apontado como um dos mais bem-sucedidos do país. Autoridades de pelo menos doze estados procuraram o governo gaúcho interessados em conhecer melhor a experiência. Brasiliense, Leany é servidora de carreira do Senado. Formou-se em Letras, mas depois deu uma guinada na carreira – partiu para a área de políticas públicas. Fez pós-doutorado nas universidades de Oxford, no Reino Unido, e Princeton, nos Estados Unidos. Na semana passada, ela deixou o cargo de secretária para virar assessora especial do governador, mas segue à frente do gabinete de crise. Ela atendeu Crusoé na última terça-feira para a entrevista que segue.

Como funciona esse sistema de bandeiras?
O sistema é baseado em três pilares: primeiro há a regionalização da saúde. A gente dividiu o estado em 20 regiões, que precisam ter hospital de referência com leito de UTI. O modelo tem onze indicadores, que medem a capacidade de atendimento. Avaliamos a quantidade de leitos regulares, leitos de hospital e leitos de UTI. E tem indicadores que medem a propagação, o contágio. Quantos casos confirmados hospitalizados eu tenho esta semana, em relação à semana passada? Quantos em leitos regulares? Quantos hospitalizados em leitos de UTI? Quantos novos casos por 100 mil habitantes? Quantos novos em relação à população total? Com esses indicadores, a gente monitora e, todo sábado, pega os dados da semana anterior e roda o modelo. A nota tem uma cor correspondente à bandeira. A região que tiver muito leito e poucos casos, por exemplo, recebe uma bandeira amarela, de baixo risco. A que tiver bastante disponibilidade de leitos, mas muitos casos, entra na bandeira laranja, de médio risco. Quem tiver leitos de UTI sobrecarregados e muitos casos recebe uma bandeira vermelha ou preta. É um sistema de alerta. Esse é o primeiro pilar, com a regionalização e o sistema de bandeiras.

Como o peso das atividades econômicas entrou nessa equação?
A atividade econômica é justamente o segundo pilar do plano. A gente organizou mais de 100 atividades econômicas em oito grupos, como agricultura, indústria e comércio. Cada um desses setores tem detalhamentos. Temos indústrias de móveis, de alimentação, têxtil e de bebidas, por exemplo. No comércio tem varejo, atacado, venda de veículos, lojas de rua e shoppings. Para cada uma dessas atividades, a gente verifica a segurança, com base no nível de exposição à doença ou contato com outras pessoas. Usamos um trabalho interessante feito pelo Departamento de Trabalho americano, que tem essa classificação de profissões. Qual o risco do bombeiro, do dentista, do professor? Traduzimos isso e adaptamos à classificação brasileira de ocupações do Ministério do Trabalho. Para cada atividade econômica a gente deu um peso com base no número de empregados daquele setor. E olhamos também para o participação do segmento no PIB gaúcho. A aviação, por exemplo, tem participação baixa no PIB. Classificamos as atividades com base na segurança, nível de exposição e de contágio, e, do outro lado, verificamos a importância da atividade econômica. A agricultura é a atividade mais segura e com alto impacto no PIB. Isso fez com que desenvolvêssemos protocolos diferenciados. Não posso olhar para a agricultura da mesma forma que olho para a indústria, porque ela é uma atividade mais segura e com mais peso no PIB. Uma planta da General Motors, por exemplo, que funciona em um galpão onde as pessoas têm distanciamento, é mais segura do que uma indústria de calçado, onde o produto é passado de mão em mão. Olhamos para essas diferenças.

Há regras que são gerais para todas as regiões?
Os protocolos são o terceiro pilar do plano. Foram criadas normas gerais, como uso de máscara, de equipamentos de proteção individual, o afastamento de pessoas com mais de 60 anos ou de grupos de risco, cuidados especiais em fila, distribuição de senhas. Isso vale para qualquer negócio, para a lojinha ou para o supermercado. E fizemos protocolos específicos para cada setor. A indústria de alimentos, por exemplo, funciona com pelo menos 75% da capacidade, ainda que esteja nas bandeiras vermelha e preta. Ela não fecha, porque é essencial. As atividades essenciais, ainda que de baixa segurança, como hospitais, têm que continuar funcionando. O comércio é uma atividade que tem muito peso no PIB, mas é muito insegura, tem muita circulação de pessoas. Ele abre com 50% da capacidade.

É um plano de reabertura, afinal?
O que temos é um plano de convivência. Não é um plano de abertura, não é um plano de flexibilização, não é um plano de saída, é um plano de convivência com a pandemia. Por isso chamamos de modelo de distanciamento controlado. A palavra-chave é controle. É um sistema complexo, mas ao mesmo tempo é fácil de entender, porque criamos bandeiras, basta olhar no mapa — se aparecer uma região vermelha, as pessoas ficam com medo, ficam alertas. A gente não teve uma preta, mas se aparecer, significa praticamente um lockdown.

A que atribui o sucesso do plano?
Não basta ter um bom plano. Para dar certo, tem que ter articulação com a sociedade. O governador criou a equipe de governança da crise, com um gabinete específico, vários comitês — de dados, de logística, científico, econômico —  e um conselho formado por presidentes dos poderes, reitores das universidades, presidentes de entidades como federações e sindicatos. Pedimos ajuda para que eles nos ajudassem com a formulação dos protocolos para a pandemia. Apresentamos o plano, o governador pediu sugestões e recebemos mais de 200 ideias. Catalogamos o material, fizemos nova apresentação, eles criticaram, fizemos novos ajustes, até o lançamento do sistema, em 9 de maio. Essa articulação e o diálogo foram muito importantes.

Itamar AguiarItamar Aguiar“É um sistema complexo, mas ao mesmo tempo fácil de entender. Se aparecer uma região vermelha, as pessoas ficam com medo”
Como estão os casos de Covid-19 no estado desde então?
A gente está estável. Não existe a palavra controlado, não existe a palavra tranquilo. Estamos em vigilância. É algo tão desconhecido que a gente não sabe as variáveis. Estamos observando tudo o que está acontecendo. Se daqui a uma semana ou duas surgirem muitos casos, vamos ter que fechar de novo, não tem jeito. O nosso sistema é de monitoramento intensivo. Quando a gente perceber que a velocidade de contágio acelerou, a gente interfere.

Quais sugestões externas foram acolhidas?
Nosso protocolo foi muito conservador, com foco na segurança. Na indústria, a gente tinha colocado 25% fechando na bandeira preta, lockdown mesmo. Eles falaram: se a gente fecha, desmobiliza muito, depois não volta mais. A gente aceitou. E os empresários aderem porque, se não fizerem isso, vão fechar. A pandemia está aí, mas ela está sob vigilância, em um nível que não gera a falência do sistema e não compromete o serviço de saúde prestado ao cidadão. A gente precisa que todo paciente seja atendido. E o que dá mais segurança para salvar vidas é ter acesso a um leito de UTI. Quem não tem, morre.

Um dos grandes desafios no Brasil e no mundo é a testagem da população. O Rio Grande do Sul está fazendo testes?
Realmente, esse é um dos maiores problemas do mundo inteiro, porque ninguém testou intensivamente. As pessoas falam muito na Nova Zelândia, mas o país tem menos de 5 milhões de habitantes. Dizem que a Islândia testou muito, 20% da população, mas isso representa umas 60 mil pessoas. É um bairro de Porto Alegre. Israel testou bastante, mas não é um país grande e complexo como o Brasil, que enfrenta uma grave crise fiscal. São variáveis muito diferentes. Aqui, compramos testes e recebemos material do Ministério da Saúde. A gente tem uma estratégia de testagem, que segue o protocolo do ministério: fazemos um intensivo em profissionais da saúde e da segurança pública, e com gente que trabalha em transporte de carga, porque são pessoas que circulam muito. A gente tem uma estratégia de testar de maneira aleatória. Fizemos 20 mil testes e vamos fazer mais 20 mil, para testar a prevalência. Na última pesquisa, deu 0,3% da população, uma prevalência baixa. Na Espanha, 5% da população teve Covid-19.

Houve alguma articulação com o Ministério da Saúde e com órgãos do governo federal para formular o plano?
Não. Nenhuma.

Vocês não buscaram ajuda? Ou buscaram e enfrentaram dificuldades?
A gente não viu necessidade, até porque o Supremo já havia decidido que os estados tinham autonomia. O governador chegou a apresentar a nossa matriz de risco para ministros palacianos, para generais. Ele foi muito elogiado pelo general Ramos (Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo) e por outros ministros.

Itamar AguiarItamar Aguiar“Não basta ter um bom plano. Para dar certo, tem que ter articulação com a sociedade”
O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e a falta de articulação nacional atrapalham?
Atrapalham do ponto de vista simbólico, na cabeça das pessoas. Isso manda uma mensagem truncada. A gente fala para usar máscara, só sair de casa para trabalhar, mas o presidente faz outra coisa. De qualquer forma, a gente não tem sentido grande dificuldade.

Como começou o debate para preservar a economia?
Desde o início, a gente sabia que seria uma tragédia na economia, que pessoas perderiam o emprego, que haveria o caos na saúde e o caos econômico. A grande dúvida era como conviver com isso. Em março, quando a pandemia chegou ao Brasil, fizemos uma projeção mostrando o que aconteceria se o Rio Grande do Sul se comportasse como a Espanha, a Itália, o Japão ou Singapura. Percebemos que havia um risco enorme e veio a decisão de fechar escolas, comércio, igrejas, shoppings, indústrias. E aí começamos automaticamente a planejar. Depois de mais de dois meses de pandemia, não posso dizer que a situação está boa, mas temos uma das taxas de letalidade mais baixas do Brasil, o nosso número de óbitos por 100 mil habitantes está entre os cinco menores do país, graças às medidas que foram tomadas.

Que dados exatamente basearam as decisões?
Assim que houve a decretação da pandemia, começamos a organizar os nossos sistemas de informação. Não tínhamos dados dos leitos de UTI porque os hospitais informavam o Ministério da Saúde, mas não passavam nada ao estado. Então teve primeiro um processo de organização da informação e do estado para focar no combate à doença. Eu passei a me dedicar integralmente e deleguei as outras tarefas da secretaria. A gente criou um comitê de dados, com participação de pessoas das universidades, que trabalham de graça, e temos feito modelos matemáticos e pesquisas amostrais. O bom resultado que conseguimos é fruto de um esforço coletivo, porque ele envolve liderança, o trabalho dos melhores técnicos do estado e especialistas de fora. A integração foi muito grande, as equipes do planejamento e da saúde viraram melhores amigos, têm uns 20 grupos de WhatsApp e fazem reunião todo dia.

Pessoalmente, que cuidados a sra. toma com relação à doença?
Eu só tenho reunião presencial com o governador. Faço videoconferência de manhã até a noite, vou ao supermercado, comércio e acabou. Bares e restaurantes abriram aqui em Porto Alegre, por decisão da prefeitura, mas eu não vou. Para que me expor? Estamos super alertas. Nada deu errado, mas só vamos saber se realmente deu certo daqui a alguns meses. Esse é um modelo vivo. É muito estarrecedor ver o que está acontecendo em outros estados. Amazonas tem mais de mil mortos por 100 mil habitantes. O Rio Grande do Sul tem 82.

O plano não contempla a abertura de escolas. Por quê?
A educação voltou no dia 1º de junho, em ensino remoto, pela plataforma do Google. Fizemos muito benchmarking em países como Dinamarca, Espanha e China, quem voltou e como voltou. No dia 15 de junho, voltam os cursos livres, como de inglês, piano, pré-vestibular, e as atividades práticas de universidades, com laboratórios. Primeiro, vão voltar apenas 5% dos estudantes, é meio como um experimento. Temos 2,5 milhões alunos no Rio Grande do Sul e vão voltar 145 mil pessoas no dia 15. Só depois disso o governador vai anunciar a segunda etapa. Aí é a grande questão, se voltam os pequenos, se volta o ensino médio, como volta, se volta 50%. Ainda não sabemos. Queremos colocar um número menor e observar. Dia 1º de julho, se o estado estiver todo laranja, vamos analisar eventualmente a volta dos pequenos, cujas mães precisam trabalhar, tem uma questão envolvida de assistência social e os menores têm aprendizado mais prejudicado com ensino remoto. Mas tem o outro lado: como os menores vão se cuidar, usar máscara? Os grandes podem se cuidar melhor, mas para eles o ensino remoto funciona mais. Estamos buscando todo tipo de informação para embasar a decisão do que volta primeiro no ensino. Em julho, alguma coisa volta se estivermos nas bandeiras amarela e laranja. E a outra parte, talvez em agosto. Deu bandeira vermelha ou preta, todo mundo para casa.

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