Agência Brasil

O general do ‘deixa disso’

Até agora tem dado certo o papel moderador do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, na guerra entre o Planalto e o STF. Mas ele será capaz de frear os ímpetos de Bolsonaro caso a crise recrudesça?
05.06.20

“Não vai ter golpe” é uma palavra de ordem entoada, em geral, por manifestantes de todas as cores partidárias, em cortejos a favor ou contra governos de ocasião. Na boca do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, a mesma expressão soa adocicada, em tom de serenidade, como um ansiolítico para os ora temerosos, ora arrojados ministros do Supremo. Azevedo e Silva tornou-se uma espécie de algodão entre cristais na tensa relação entre governo e STF, cuja turbulência alcançou o ápice a partir da mais nova investida do famigerado inquérito do fim do mundo, que alcançou a fina flor da falange bolsonarista nas redes sociais. Nos últimos dias, o ministro esteve na linha frente da trégua costurada por interlocutores do presidente Jair Bolsonaro com o Supremo.

Foi com o propósito de desfraldar a bandeira branca que, na segunda-feira, 1º, Azevedo e Silva compareceu à residência do ministro Alexandre de Moraes, em São Paulo, relator no STF de investigações responsáveis pelas recentes noites insones do mandatário do país. O ambiente, até então, continha partículas altamente inflamáveis. Horas antes do encontro, Bolsonaro manteve uma conversa cordial com o ministro do Supremo limitada a pouco mais de cinco minutos. Sem se estender, falou em desanuviar o clima e amaciou o terreno para o tête-à-tête mais adiante: deixou claro que Azevedo tinha carta branca para falar em nome dele. E assim foi feito.

No encontro com Moraes, o ministro da Defesa expôs cortesmente as aflições do Planalto. Elencou, por exemplo, o que o governo considera “extrapolação” do Supremo: 1) o excesso de decisões monocráticas, sendo a mais criticada a da lavra do próprio Alexandre de Moraes, que barrou a ida de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal; 2) a decisão do ministro Celso de Mello de convocar para depor três ministros militares, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, general Braga Neto, da Casa Civil, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, sob a ameaça de conduzi-los sob vara caso não atendessem a ordem; e 3) o texto redigido pelo decano e encaminhado a colegas da corte em que comparava o Brasil de Bolsonaro à Alemanha de Adolf Hitler.

Mantendo o timbre amistoso que permeou toda a conversa, Moraes ponderou, por seu turno, que também não é de bom tom um ministro de estado defender a prisão de ministros do Supremo, depois de chamá-los de “vagabundos” (referia-se à rumorosa fala de Abraham Weintraub, da Educação, na reunião de 22 de abril). Queixou-se, ainda, da ameaça do Planalto de descumprir ordens do STF e dos ultimatos públicos em termos desairosos, como “Acabou, porra”, saídos da boca de Bolsonaro na esteira da busca e apreensão na casa e escritórios de militantes bolsonaristas.

Divulgação/Ministério da DefesaDivulgação/Ministério da DefesaAzevedo observado por Toffoli, a quem assessorou: os dois tocam de ouvido
Ao fim, no entanto, os convivas concordaram que era hora de colocar a bola no chão, superar as diferenças e direcionar o olhar mais para o artigo 2º da Constituição, segundo o qual o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser independentes e harmônicos entre si, do que para o 142, que trata do papel das Forças Armadas e vem recebendo uma leitura distorcida do presidente – ele entende que, se um poder invadir a competência de outro, os militares podem ser acionados. Foi a senha para os acordos tácitos que seriam celebrados adiante. A interlocutores, Azevedo disse que o papo serviu para “desarmar os espíritos”.

Nas horas que se seguiram ao encontro, gestos falaram mais do que palavras. Na terça-feira, 2, Bolsonaro participou por videoconferência da posse de Alexandre de Moraes como membro titular do TSE, campo de batalha onde serão julgadas na próxima semana ações pela cassação da chapa presidencial (leia mais aqui). Para quem, até outro dia, estava espumando de ódio do magistrado, foi uma sinalização em favor da conciliação. Somaram-se ao presidente na posse virtual de Moraes ao menos cinco ministros, entre eles os generais Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos – além, é claro, de Azevedo e Silva. Os afagos do ministro do STF, primeiro ao presidente e em seguida à plateia verde-oliva presente, indicou que, ao menos por ora, o cachimbo da paz está aceso. “Boa noite, presidente Bolsonaro. É uma honra a presença do senhor”, afirmou para emendar na sequência. “São todos meus amigos generais desde as Olimpíadas, que nós cuidamos na segurança no Rio de Janeiro”, disse em referência aos Jogos realizados em 2016, quando era ministro da Justiça. Foi justamente no evento mencionado por Moraes que ele e o ministro da Defesa estreitaram os laços. Na ocasião, o general chefiava a Autoridade Pública Olímpica.

O governo está disposto a outros acenos no esforço para distensionar a relação com o Supremo. Aliados do presidente cogitam até excluir Moraes dos próximos protestos, de modo a não acirrar ainda mais os ânimos. Pelo sim, pelo não, ao menos publicamente Bolsonaro recomendou a apoiadores que não promovessem atos neste domingo. Também foi deflagrada uma articulação capaz de resultar na saída do ministro da Educação, Abraham Weintraub, do governo. O ministro não pretende pedir demissão, mas reconhece a pessoas próximas que está mesmo na linha de tiro – entregar sua cabeça seria uma forma de o Planalto amainar a ira do outro lado da Praça dos Três Poderes. O filme de Weintraub já estava queimado antes mesmo dos impropérios lançados contra o STF na reunião do dia 22. Com a divulgação do vídeo, ele virou um problema real para o governo e a hipótese de sacrificá-lo, “tirando o bode de sala”, ganhou força nas últimas horas.

Discreto, voz pausada, Azevedo e Silva, segundo pessoas que convivem com ele, poderia ter sido diplomata se não tivesse enveredado pela carreira militar. Lhano no trato, o ministro é da distensão, procura sempre o consenso, não importa se está no meio de uma guerra, ainda que essa guerra seja uma turbulenta disputa de poderes. Aos 66 anos, 44 dos quais no Exército, ele costuma adotar como máxima, segundo pessoas próximas, “fazer sempre bem feito, o que precisa ser feito”.

TSETSEAlexandre de Moraes recebeu Azevedo em sua residência: sinal de armistício
A visita a Alexandre de Moraes não foi a primeira vez que Azevedo entrou em campo para apagar as labaredas erguidas entre Planalto e Supremo. No dia em que Bolsonaro emergiu defronte ao QG do Exército a destilar insinuações golpistas ante a apoiadores favoráveis ao AI-5, ao fechamento do STF e do Congresso, coube ao general pronunciar o mantra típico de marcha de manifestantes. “Calma, não vai ter golpe”, disse, segundo relato de ministros do Supremo. O ministro dedicava-se ali a jogar água na fervura da crise que se precipitava. Entre os destinatários da mensagem estavam o presidente do STF, Dias Toffoli, a quem Azevedo assessorou no Supremo antes de ser guindado a ministro de Bolsonaro (os dois tocam de ouvido), e Luís Roberto Barroso, com quem nutre uma relação de respeito.

Na sequência, o titular da Defesa emitiu uma nota em que traçava um risco no chão. “As Forças Armadas trabalham sempre obedientes à Constituição Federal para manter a paz e a estabilidade do país”. Nesse caso, Azevedo foi firme, sem perder a ternura. Para quem o conhece de perto, trata-se de um dos traços de sua personalidade. A agenda suprapartidária do “MD”, como é conhecido na Esplanada o Ministério da Defesa, espelha sua maneira de agir e atuar. Neste ano, ele recebeu por exemplo a deputada Perpétua Almeida, do PCdoB, por duas ocasiões. Não deixa de ser um sinal de prestígio – dele, não dela. Talvez o general seja o único do primeiro escalão do governo a gozar da prorrogativa de falar com uma “deputada comunista” sem o risco de ser esconjurado pelo presidente.

O jogo de cintura do ministro da Defesa não foi conquistado num estalar de dedos. Ele traz consigo bagagem nada desprezível no Executivo, Legislativo e Judiciário. Azevedo e Silva foi chefe do Estado-Maior do Exército — ou seja, o número 2 na hierarquia, atrás apenas do comandante, o general Eduardo Villas Bôas. Serviu, ainda, na Presidência da República e no Gabinete do Comandante do Exército como chefe da assessoria parlamentar. No posto, que o levou a aprender a circular bem pelos corredores do Congresso e a entender os códigos dali, lapidou sua verve política. Contemporâneo de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras, onde o presidente concluiu o curso de formação em 1977 um ano depois dele, Azevedo e Silva também participou do processo de pacificação do Haiti, encabeçando um dos contingentes que atuaram no país.

Uma de suas experiências no Executivo, porém, ele trabalha para que não se repita. O ministro viu de muito perto a ascensão e a queda de um presidente da República. Azevedo era um jovem major quando serviu como ajudante de ordens de Fernando Collor, estando ao seu lado na célebre fotografia em que o então presidente deixa o Palácio do Planalto de helicóptero ao lado da mulher Rosane em outubro de 1992. Na imagem, Azevedo ostentava um bigode, hoje aposentado.

Outro sobrevoo de helicóptero, 28 anos depois, acabou alimentando uma nova polêmica. No domingo, 31, ao lado do presidente Bolsonaro, o ministro planou sobre uma manifestação de aliados do chefe do Executivo marcada por faixas contra o Supremo e a favor de intervenção militar. Foi o suficiente para que surgissem rumores de que aquilo significava um endosso do ministro aos atos de cunho antidemocrático. Num primeiro momento, a sinalização, de fato, não foi muito bem digerida no STF. O próprio titular da Defesa, no entanto, tratou de esclarecer o que chamou de mal entendido, fruto de um ambiente carregado.

Dida Sampaio/Estadão ConteúdoDida Sampaio/Estadão ConteúdoSobrevoo de Azevedo e Bolsonaro gerou polêmica devido a ambiente pesado
Bolsonaro costumava usar o helicóptero branco da Presidência, mas na ocasião optou pela aeronave camuflada, que levava as cores do Exército — podia ser apenas uma contingência do momento, talvez o outro helicóptero estivesse passando por manutenção, mas nos tempos turbulentos que Brasília vive tudo é visto como sinal. A interlocutores, Azevedo explicou que presença dele a bordo guardava relação mais com a segurança presidencial do que com qualquer outra coisa: representaria um endosso ao bom funcionamento da aeronave. Antes do sobrevoo, também havia causado apreensão a chancela de Azevedo à nota do general da reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI, que falava em “consequências imprevisíveis” após um despacho rotineiro do STF sobre um pedido de recolhimento do celular do presidente, posteriormente arquivado pelo ministro Celso de Mello. Azevedo, porém, rechaça ter concordado com os termos milimetricamente escolhidos por Heleno ao redigir o documento-ameaça. O que ele avalizou, explicou, foi a discordância em relação à apreensão do aparelho telefônico do presidente da República, “uma questão de segurança institucional”, no seu entender.

A relação de amor e ódio entre o STF e o governo, da qual Azevedo virou uma espécie de árbitro, remonta ao período da campanha eleitoral de 2018, quando o filho 03 do presidente, Eduardo Bolsonaro, sapecou a infeliz declaração de que bastavam um soldado e um cabo para fechar o Supremo. De lá para cá, o relacionamento funcionou como um pêndulo, sempre ao sabor dos humores e decisões de parte a parte. Em 2019, Dias Toffoli, com o apoio de Gilmar Mendes, suspendeu em decisão monocrática – hoje tão criticada pelo governo – os inquéritos com base em dados do Coaf, entre eles o que investiga o primogênito do presidente, Flávio. Bolsonaro, claro, gostou. E retribuiu com um gesto simpático: atuou para que a Receita Federal deixasse de importunar Gilmar, Toffoli e familiares, que estavam sob a mira de uma investigação de auditores em suas declarações de renda. A paz reinou por um tempo. O próprio inquérito do fim do mundo nunca havia sido um problema para Bolsonaro até alcançar os seus.

Outro momento em que o presidente se refugiou no silêncio foi quando, em novembro, o STF derrubou um dos pilares da Lava Jato, a prisão após a segunda instância. Ele não só ficou calado como orientou seus ministros a não se manifestarem. Em entrevista publicada na última edição de Crusoé, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro escancarou o motivo: “O que se dizia no Planalto era que a soltura de Lula era boa politicamente para o presidente”. Tudo caminhava relativamente sem grandes sobressaltos até que veio, de uma vez, uma sequência de decisões nada agradáveis ao Planalto. Bolsonaro não gostou, por exemplo, quando a corte deu a governadores e prefeitos poderes para decidir sobre medidas de contenção da pandemia. Depois, veio a decisão do próprio Alexandre de Moraes de impedir a nomeação de Alexandre Ramagem, nome do coração de Bolsonaro para o comando da PF, e a divulgação autorizada por Celso de Mello da íntegra do vídeo da reunião ministerial. Mais trabalho para Azevedo, o general do “deixa disso”.

Apesar de hasteada a bandeira branca, no STF é sedimentada a percepção de que, se Azevedo e outros bombeiros do Planalto não atuassem como freio e contrapeso de Bolsonaro, o presidente ultrapassaria o limite da responsabilidade. O temor é que, se a crise recrudescer, o general não seja capaz de frear os ímpetos autoritários do chefe. O governo vende do outro lado da praça a tese de que Bolsonaro recua e não faz tudo o que fala. Só que, no entender de integrantes do STF, ele não recua, mas é recuado. E no dia em que o “deixa disso” não funcionar mais? Ele vai levar adiante a escalada autoritária? Tentará usar as Forças Armadas como poder moderador, para intervir a seu favor em caso de necessidade? Mesmo com o armistício costurado nos últimos dias, hoje coabitam três alas no STF. A primeira dorme absolutamente tranquila e descarta por completo a hipótese de implosão da ordem constitucional. Toffoli é a principal expressão desta corrente. A segunda segue com o sinal de alerta ligado e mede semanalmente o pulso do governo, caso de Barroso e Alexandre de Moraes. A última, encabeçada por Celso de Mello, é a que acredita seriamente na hipótese de ruptura democrática. A quem quiser ouvir, Azevedo insiste: “Não vai ter golpe”.

Com reportagem de Fabio Serapião

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