RuyGoiaba

Bem-vindos à Idade Média 2.0

12.06.20

Vamos fingir que somos um país civilizado, sem coronavírus bombando graças a quarentenas meia-boca e sem metade da população desprovida de saneamento básico? Vamos. E um bom modo de fazer isso é importar GRANDES DEBATES do exterior — já que fazer o isolamento direito, colocar rede de esgoto para todo mundo etc. é trabalhoso, chato e não rende likes nas redes sociais.

Nem estou falando mal, não, longe disso: Deus abençoe o Debate Idiota. Ele pode render textos de humor e me ajudar a preencher este espaço semanal na Crusoé – nesse caso, quanto mais idiota melhor. Uma das grandes discussões virtuais da semana que passou foi se a gente deve derrubar monumentos a gente malvada. Vocês devem ter visto: manifestantes em Bristol, no Reino Unido, derrubaram a estátua de um traficante de escravos chamado Edward Colston. Dias depois, no estado americano da Virgínia, uma estátua de Cristóvão Colombo teve destino parecido; foi derrubada, incendiada e jogada em um lago.

Não demorou muito para aqueles brasileirinhos que amam estar por dentro das TRENDS gringas sugerirem fazer a mesma coisa com o Monumento do Empurra-Empurra do Brecheret lá no Ibirapuera ou com o Borba Gato, já que eles retratam bandeirantes (escravizadores de índios, assassinos etc.) como heróis. É claro que é fácil defender a derrubada do Borba Gato por razões puramente estéticas, já que o símbolo do bairro de Santo Amaro é aquele troço 100% medonho. Mas, ao mesmo tempo, ele é a cara do Brasil — quase tanto quanto o Cocozão de Ponta Grossa, que infelizmente não está mais entre nós.

E existem problemas práticos que têm de ser enfrentados por quem quiser praticar a “depredação com justiça”. Por exemplo, Tiradentes, como apontou Laurentino Gomes, tinha seis escravos quando foi enforcado. Segundo historiadores, havia escravidão em quilombos — inclusive o de Palmares, liderado por Zumbi. Como fazer? E há casos como o de Getúlio Vargas, fascista e signatário de leis eugenistas no Estado Novo, depois bonzinho e “progressista” nos anos 50. Depreda quanto das estátuas dele? 50%, só da cintura para baixo?

(Há um monumento no Rio, merecidamente conhecido como Cabeção do Getúlio, em que não dá para fazer isso, porque a parte de baixo já não existe. Mas aí é só ressignificar: ou a gente diz que é dom Paulo Evaristo Arns ou coloca uma cartola de bronze para virar estátua do Chacrinha. “Terezinhaaa!”)

Nem é preciso lembrar que Colston, o traficante de escravos de Bristol, também doava dinheiro a escolas e instituições de caridade para perceber que não é simples traçar um limite nesses casos — nem tudo é uma decisão tão fácil quanto suprimir monumentos a Hitler ou a Stálin. O Coliseu, por exemplo, foi erguido com mão de obra escrava. Vira pó? O mesmo vale para as pirâmides do Egito: vamos transformar numa pilha de tijolos? Ou não é preciso porque, nesses casos, a escravidão é “muito antiga”? E as obras de arte ligadas a essa instituição opressora que é a Igreja Católica, como a Pietà e a Capela Sistina? Martelo nelas? Passamos a achar bacana o que o Taleban fez com os Budas do Afeganistão?

Não estou dizendo aqui que a derrubada da estátua do traficante de escravos “leva” à destruição das pirâmides; seria apelar ao que os especialistas chamam de falácia da ladeira escorregadia (slippery slope). Só que o limite entre as primeiras coisas e as últimas é essencialmente arbitrário. E no fundo essa iconoclastia, assim como a queima de livros, é uma tentativa de reescrever o passado editando aquelas partes que hoje nos envergonham. Não adianta, porque é um recalque malfeito e o passado sempre retorna — inclusive nessas tradicionais modalidades de derrubada de estátuas e queima de livros.

(Iconoclastia, aliás, é termo que remonta ao Império Bizantino, quando Leão 3º proibiu a veneração de ícones e o pessoal saiu destruindo estátuas de santos, mosaicos e pinturas. Juntando isso à pandemia e aos novos “aldeões com tochas” dos linchamentos virtuais, já podemos dar as boas-vindas à Idade Média 2.0.)

Fábio Motta/Estadão ConteúdoFábio Motta/Estadão ConteúdoO Cabeção do Getúlio é facilmente transformável em dom Paulo ou em Chacrinha

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A GOIABICE DA SEMANA

Eduardo Pazuello, o ministro interino da Saúde que ameaça virar eterno, disse em reunião ministerial recente que, “para efeitos da pandemia, nós podemos separar o Brasil em Norte e Nordeste, que é a região que está mais ligada ao inverno do Hemisfério Norte — são as datas do Hemisfério Norte em termos de inverno”. O general provavelmente não quis dizer que o inverno era igual nos dois lugares, mas aí já era tarde — as redes foram inundadas de montagens com paisagens nevadas em Ananindeua, Mossoró e Jericoacoara. Eu mesmo fiquei a fim de patinar nos Lençóis Congelados Maranhenses. Quem sabe um dia.

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