Lucas Tavares/Folhapress

Luz na caixa-preta

De empréstimo bilionário sem pedido a garantias financeiras em PowerPoint: Crusoé teve acesso a uma investigação que ilumina ainda mais a farra secreta do BNDES na era petista
12.06.20

Empréstimos bilionários sem que tenha havido sequer um pedido do cliente. Financiamentos liberados a partir de apresentações de slides e conversas informais. Cifras vultosas despejadas em negócios que operavam no vermelho, a despeito de alertas. Repactuação de dívidas por prazos longos anos, até o dinheiro evaporar. Uma investigação realizada ao longo de dez anos escancarou mais um naco da chamada “caixa-preta” do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, na era petista. A devassa expõe presentes bilionários entregues de mão beijada durante o governo Lula às chamadas “campeãs nacionais”, empresas escolhidas a dedo pelo Palácio do Planalto a pretexto de se tornarem gigantes e competirem no mercado global. Algumas delas, tempos depois, apareceram enroladas com investigações que envolveram polpudas propinas ao próprio PT.

A apuração, cujo resultado foi obtido com exclusividade por Crusoé, foi feita pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União e abrange três casos escandalosos que, juntos, em valores atualizados e seguindo um cálculo conservador, apontam para um prejuízo de 16 bilhões de reais. O rol inclui empréstimos que fomentaram históricas empreitadas da era Lula, como o fracassado impulsionamento do etanol como combustível no Brasil, e a trajetória de construção e derrocada da Oi. A política das “campeãs nacionais” envolveu aportes de mais de 1 trilhão de reais do BNDES. Atualmente, para recuperar o dinheiro perdido, o banco vem se desfazendo das ações que passou a ter nessas empresas.

Se já existia antes, a curiosidade em torno da “caixa-preta” do BNDES se multiplicou em 2008, quando o Supremo Tribunal Federal impôs restrições ao acesso, pelo TCU, a detalhes das operações financeiras do banco. Somente em 2015 esse entendimento foi derrubado pela corte, em um caso que envolvia transações com a JBS e a Friboi. Nesse período, o procurador Marinus Marsico, que já investigava os financiamentos concedidos pelo banco, também enfrentava resistências ao requisitar informações. As negativas eram, muitas vezes, endossadas por pareceres da Advocacia-Geral da União. Em um dos casos, o BNDES recusou ao procurador, por exemplo, dados sobre os aportes que permitiram à Odebrecht construir o famoso porto cubano de Mariel. Hoje, a empreiteira delata Lula pela participação na negociata.

O quadro começou a mudar em 2016, quando foi liberado a Marsico um HD com documentos sobre as operações. O amplo acesso veio após a saída de Luciano Coutinho, que permaneceu nove anos à frente do BNDES, e foi um dos pontas de lança da política dos “campeões nacionais”. A investigação que poderia ser preventiva – e que talvez pudesse até ter interrompido a farra enquanto ela ainda estava em andamento – virou uma “autópsia”, nas palavras do procurador.

Divulgação/OdebrechtDivulgação/OdebrechtA Odebrecht Ambiental tomou dinheiro para construir usinas: prejuízo bilionário
Um dos “cadáveres” sob análise é a política de produção do etanol. Em 2008, o então presidente Lula profetizou que o Brasil se transformaria em uma “Arábia Saudita Verde”, em comparação com o país que é um dos maiores produtores de petróleo do mundo. O Brasil acabou engolido pelos Estados Unidos, que avançaram rapidamente na política de biocombustíveis. O etanol também perdeu força quando foram descobertos os campos do pré-sal da Petrobras. Mas não foi só isso que fez o BNDES perder bilhões ao fomentar as usinas de etanol, quase todas em recuperação judicial hoje em dia. Se tivesse prestado atenção a seus próprios pareceres internos, o banco poderia ter evitado boa parte do prejuízo.

Um dos mais significativos aportes da instituição envolveu a Companhia Brasileira de Energia Renovável, a Brenco, que tinha participação da Odebrecht. Foram 7 bilhões de reais emprestados e, até hoje, nunca recuperados. Segundo Marsico, logo de cara, no primeiro aporte solicitado pela Brenco, o BNDES topou emprestar 1,23 bilhão de reais, quando técnicos do próprio banco já alertavam para o “alto risco” da operação. Até 2013, em diversas oportunidades o BNDES foi informado de que o cronograma de obras estava atrasado. Mesmo assim, as liberações de dinheiro prosseguiram. A investigação aponta possíveis desvios de 1 bilhão de reais, já que a estimativa do investimento – que serve de base para o contrato de financiamento – era muito superior aos valores que efetivamente seriam gastos para construir as usinas.

A Brenco acabou fundida com a ETH, da Odebrecht, e virou a Odebrecht Agroindustrial, o que até deu novo fôlego à operação. Mesmo assim, o dinheiro se perdeu. A empresa, que hoje se chama Atvos, pediu recuperação judicial em meados de 2019, com uma dívida de 12 bilhões de reais.“O BNDES ajudou, decisivamente, a criar não somente uma empresa inviável, mas ainda uma verdadeira monstruosidade no mundo dos negócios, cujo apetite pantagruélico vem consumindo bilhões de reais do dinheiro do contribuinte”, escreve Marsicus em seu relatório sobre a operação.

Em delação premiada, a Odebrecht admite ter feito pagamentos de 7 milhões de reais a emedebistas em troca da aprovação de uma medida provisória que beneficiaria a empreiteira no setor do etanol. Isso, claro, além dos milhões e milhões despejados nas campanhas petistas em troca de benefícios no governo. A colaboração premiada, porém, não cita especificamente ingerência da empreiteira junto ao BNDES. Marinus indaga sobre “quem realmente tem a palavra final” dentro do banco, diante de tamanha benesse à Odebrecht Agroindustrial.

Divulgação/OiDivulgação/OiAntigos orelhões da Oi: dívida de 7 bi com o BNDES
A telefônica Oi foi outra grande aposta dos governos petistas que ficou devendo 7 bilhões de reais ao BNDES após um pedido de recuperação judicial de 64 bilhões à Justiça, em 2016. A operadora era tida como a “campeã” do governo Lula para rivalizar com empresas espanholas que dominam o mercado. Uma parte dos bastidores da predileção do ex-presidente pela Oi foi desvendada pela Operação Lava Jato, que revelou pagamentos de 132 milhões de reais às empresas de Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, após o anúncio dos aportes iniciais do BNDES para a operadora adquirir a Brasil Telecom.

As investigações do Ministério Público junto ao TCU indicam que justamente o aporte investigado pela Lava Jato foi o “erro fatal” do BNDES. O banco, conclui o procurador, fez o negócio “afastado de princípios que guiam a responsabilidade financeira e, com o amparo e as bênçãos do poder executivo federal, patrocinou a aquisição da Brasil Telecom pela Oi”. Marsico já fazia esse alerta em 2017, quando a investigação foi aberta. Bem antes de a operação chegar a Lulinha, portanto. Ele sustenta que, além de apostar em um negócio arriscado, o BNDES teve, por diversas vezes, a oportunidade de se tornar sócio majoritário da Oi, e, com isso, corrigir seus rumos e prejuízos. No entanto, abriu mão deliberadamente dessa e de outras garantias e poderes de decisão dentro da operadora para aportar bilhões e bilhões nas empresas que a controlavam, entre elas a Andrade Gutierrez, uma das empreiteiras envolvidas nas tramoias descobertas pela Lava Jato.

“Ao mesmo tempo que aporta bilhões de reais em empréstimos diretos, o banco aplica valores iguais ou maiores no capital da empresa, passando à condição de credor de si mesmo. No caso presente, ele foi além. Entregou todo o controle do negócio a dois dos sócios privados, os quais, por critérios que, só Deus sabe, foram escolhidos entre os demais para receber recursos públicos”, anotou o procurador.

Rival da JBS, que ficou marcada por distribuir dinheiro a políticos e partidos em Brasília e em outros cantos do país, o frigorífico Marfrig também arrancou seu naco do BNDES. Com direito a detalhes que tornam a operação bastante incomum no universo bancário. “O caso da Marfrig não teve pedido de empréstimo. Não existe isso no processo”, relata Marsico, referindo-se à fragilidade da documentação que embasou um aporte de 2,5 bilhões de reais. O valor seria usado para a empresa brasileira adquirir a gigante americana Keystone Foods, que tinha entre seus clientes a rede de lanchonetes McDonalds.

A liberação se deu pela subscrição de debêntures, conversíveis em ações. Ou seja, em troca do empréstimo, o BNDES teria como garantia títulos da empresa que poderiam ser convertidos em ações a serem vendidas no mercado alguns anos depois. O problema é que o contrato previa também que o valor das ações conferidas ao banco seria fixado em 24 reais e elas só poderiam ser vendidas anos depois, implodindo a liquidez do negócio. O valor de mercado dos títulos da Marfrig, logo depois, chegou a parcos 5 reais.

MPT-RSMPT-RSLinha de produção da Marfrig: slides justificaram financiamento
De partida, o procurador aponta que a “pressa em fechar logo o negócio levou o BNDES a abrir mão de documentos essenciais, como a carta-consulta e o relatório de enquadramento”, documentos que costumam ser apresentados pelos interessados ao pedir o aporte. Ao justificar a ausência da tal carta, o BNDES enviou ao gabinete de Marsico cinco documentos. Entre eles, uma reles apresentação de PowerPoint com 23 slides, explicando, em resumo, a história da empresa e o cronograma dos pagamentos. “Isso não poderia servir de base. Emprestar 2,5 bilhões de reais através de conversa de botequim, não pode, né? São falhas graves que ocorrem”, diz o procurador.

Em 2018, a Marfrig vendeu a Keystone por 2,5 bilhões de dólares. No ano seguinte, o BNDES vendeu sua parte na Marfrig e recebeu 2 bilhões de reais – para Marinus, o mesmo valor do prejuízo que restou ao banco se for levado em consideração que, além de inferior ao aporte, em qualquer fundo de renda fixa a instituição teria conseguido bem mais.

Marsico afirma que as operações açodadas e a sucessão de alertas ignorados transformaram a excepcionalidade dos procedimentos internos em regra. O comportamento, segundo ele, demonstra, “quase sem dúvidas, que havia influência seríssima para que as operações fossem aprovadas”. “E entendo que quem se postasse contra não cresceria no banco.” E acrescenta: “Criou-se uma estrutura que serviu justamente para fazer o objetivo que era contrário ao que propõe o BNDES. Criou-se um processo de destruição de riquezas.”

O objetivo da investigação é buscar a punição dos dirigentes do banco público que participaram da aprovação dessas operações. A pedido do procurador, os três casos viraram processos no TCU que estão já em fase avançada. Marsico admite que é impossível recuperar os 16 bilhões de reais de prejuízo. Mas a ideia é que, após a fase de identificação dos responsáveis, ao menos uma parte do valor seja resgatada por meio de pesadas multas que podem ser impostas aos envolvidos, caso eles sejam condenados pelo tribunal. O material obtido pelo procurador ao longo da apuração também foi remetido para a Polícia Federal, para que, em paralelo, sejam investigados os possíveis crimes envolvidos nas operações.

A Crusoé, a Marfrig afirmou que não foi “atribuída qualquer irregularidade à companhia”. Disse a empresa, por meio de nota: “Tal operação gerou ao banco de fomento lucro, originado do pagamento de juros e da venda da participação na Marfrig”. Também procurada, a Oi respondeu que não comenta “investigações em curso ou operações societárias do passado”. E prossegue: “A companhia informa que, com a aprovação de seu plano de recuperação judicial, em dezembro de 2017, a empresa passou a ter uma nova governança, uma nova composição societária, sem acionistas controladores, e uma nova administração.” A nota da telefônica diz ainda que “a dívida junto ao BNDES foi mantida integralmente, sem descontos, e é garantida por recebíveis da companhia”. A Odebrecht Agroindustrial e o BNDES não se manifestaram.

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