RuyGoiaba

A bananalidade do mal

19.06.20

Estão banalizando a “banalidade do mal”. A frase parece estar sendo usada como um substituto de “todo mundo de quem eu não gosto é Hitler!” por gente que nem passou perto de Hannah Arendt e seu relato sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém. E também por gente que certamente leu a filósofa alemã — como a lacroeconomista Laura Carvalho, que usou a expressão no dia da saída de Mansueto Almeida da Secretaria do Tesouro Nacional (Laura apagou o tuíte em que se referia diretamente a Mansueto, mas, como sabem aqueles que frequentam as redes sociais, o print é eterno).

Muito respeitado por seus pares, Mansueto já estava no governo quando Jair Bolsonaro foi eleito — e não é difícil perceber que, por mais execrável que o governo do Talquei seja (e é), é extraordinariamente injusto comparar seu secretário do Tesouro com um dos planejadores do massacre de judeus no Holocausto. É banalizar o mal de modo bastante literal. E não adianta alegar que a alusão serve a qualquer técnico que “cumpre ordens” de algum governo odioso; não há como usar a expressão de Arendt sem ela remeter a Eichmann.

Deve ser uma decisão difícil para os chamados “quadros técnicos”: ficar em um governo que pratica atrocidades diárias, evitando que o país afunde ainda mais, ou sair e parar de dar argumento aos defensores desse governo (“ó, pelo menos tem o Fulano lá, e ele é bom”)? Como toda decisão desse tipo, é muito mais fácil de tomar para quem está de fora e não tem skin in the game — e está cheio de gente por aí que se acha muito Resistência Francesa, mas toparia na hora um carguinho no regime colaboracionista de Vichy caso fosse convidada.

O que sei é que, embora raramente confesse, a esquerda (a petista e a não-sou-petista-mas) não perdoa Mansueto por ter sido uma espécie de whistleblower das pedaladas do governo Dilma Rousseff, quando o glorioso Arno Augustin, aquele quadro extremamente técnico, chefiava o Tesouro Nacional. É um pessoal que também parece não se importar muito, por exemplo, com Carlos Drummond de Andrade servindo ao Estado Novo — como chefe de gabinete de Gustavo Capanema no MEC — na mesma época em que Filinto Müller, o chefe de polícia de Getúlio Vargas, comprazia-se em enfiar arame na uretra de presos políticos.

De todo modo, alguém na academia já deve estar escrevendo tese sobre o mal da banalização da banalidade do mal. E estará errado: o nome certo do que vivemos no Bananão é bananalidade do mal. Se tem uma coisa em que o Brasil é bom — além de ser pódio na Olimpíada do coronavírus —, é esculhambar tudo.

*

Atibaia é o umbigo do mundo — do mundo político do Brasil, pelo menos. É lá que Lula tem o sítio que não é dele, reformado por OAS e Odebrecht por pura amizade, e Fabrício Queiroz passou um ano escondido na casa de Frederick Wassef, o lombrosiano advogado apelidado de “anjo” pela família Bolsonaro.

Uma amiga vê Atibaia como uma espécie de núcleo pobre de novela da Globo, onde tudo acontece. Eu acho que já ganhou o status de capital secreta do Brasil. Mas sugiro que a simpática cidade do interior paulista repense sua tradicional Festa do Morango, já que seu produto mais famoso agora são as laranjas.

(E ainda encontraram no cafofo do Queiroz um cartaz com os dizeres “AI-5” e uma série de action figures — ou seja, bonequinhos — de Tony Montana, o personagem de Al Pacino em “Scarface”. Refaço o que escrevi aqui tempos atrás: o roteirista do Brasil em 2020 só pode estar totalmente louco de pó.)

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A GOIABICE DA SEMANA

Foi uma semana especialmente difícil para escolher o ganhador, mas acho que o prêmio vai para Mayra Pinheiro, a secretária cloroquiner do Ministério da Saúde. A repórter Malu Gaspar obteve acesso a um áudio em que Mayra defende que o governo Bolsonaro intervenha nas eleições na Fiocruz: “Tudo deles envolve LGBTI. Eles têm um pênis na porta da Fiocruz, todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara, as salas são figurinhas do Lula livre, Marielle vive”.

Sou do tempo em que gente que via pinto e Che Guevara em tudo quanto é lugar ganhava como prêmio uma camisa de força, e não o comando de uma secretaria do Ministério da Saúde. O movimento antimanicomial venceu mais uma vez.

Júlio Nascimento/PRJúlio Nascimento/PRMayra Pinheiro, a secretária cloroquiner que viu COISAS na porta da Fiocruz

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