FelipeMoura Brasil

A ‘nova esquerda’ de Bolsonaro

19.06.20

Diplomata e escritor, José Osvaldo Meira Penna (1917-2017) descreveu no livro Em berço esplêndido, lançado em 1974, a “emoção erótica” do brasileiro.

Trata-se da emoção limitada ao contato, à proximidade, ao vínculo familiar ou social; característica de gente muito unida a quem está dentro de seu círculo íntimo e muito indiferente a quem está fora; que ama e se preocupa apenas com os seus.

“O brasileiro traduz literalmente o mandamento cristão de amar o próximo”, escreveu Meira Penna. “Acredita que a caridade começa em casa… e talvez nela termine. É a solidariedade do contíguo e do consanguíneo. O próximo é antes de tudo o parente, mas também o amigo, o sócio, o cliente; todos os conhecidos, aqueles com quem se convive e se trabalha; que podem ser vistos, ouvidos e sentidos diariamente. Só estes merecem a expansão específica da cordialidade e da philia. Os desconhecidos, que se danem!”

Em novas edições do livro, este trecho deveria vir com a foto de Jair Bolsonaro. Meira Penna descreveu com 46 anos de antecedência o traço mais marcante da personalidade do atual presidente, escancarado durante a pandemia de coronavírus. “E daí?”, disse Bolsonaro quando o Brasil ultrapassou a China em número de mortes. “Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu”, bradou o presidente, depois de avisar Sergio Moro que trocaria o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. “Mais um motivo para a troca”, escreveu também, citando a investigação de aliados que poderia atingir seu filho Carlos. “Não posso assistir calado”, “eles estão abusando”, “está chegando a hora de colocar tudo em seu devido lugar”, afirmou ainda, após bolsonaristas serem alvos de batidas policiais e quebras de sigilo autorizadas pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Para Bolsonaro, o próximo é o parente, o amigo; os desconhecidos, que se danem, afinal a morte “é o destino de todo mundo”.

O argentino José Ingenieros (1877-1925), em seu livro “O homem medíocre”, lançado em 1913, descreveu esta limitação afetiva como sintoma de mediocridade: “O medíocre limita seu horizonte afetivo a si mesmo, à sua família, aos seus camaradas, à sua facção; mas não sabe estendê-lo até a Verdade ou a Humanidade, que apenas pode apaixonar ao gênio”.

Ninguém precisa ser um gênio, porém, para notar que essa mediocridade e a indiferença com os desconhecidos, ainda que compatriotas, transbordam no mesmo presidente capaz de interferir na PF para blindar seu círculo íntimo e político.

“Temos informações do Brasil todo de muita gente que falece de várias comorbidades e, entre elas, a Covid, e entra na estatística como Covid apenas”, disse Bolsonaro. “Isso não ajuda para que tenhamos uma numeração perfeita do que acontece, para que possamos tomar outras iniciativas”, completou. Se a narrativa negacionista não fosse o que importasse ao presidente, em seu temor paranoico de transigir com a realidade, vista como conspiração de inimigos, ele estudaria fatores determinantes de mortes, assistindo ao vídeo “Covid-19: Registro de óbito nos sistemas de informação em saúde”, do ex-secretário de Vigilância em Saúde de seu próprio governo, Wanderson de Oliveira.

No livro de 2012 “A civilização do espetáculo”, sobre o ambiente cultural circense do mundo contemporâneo que contribuiria para a eleição de Bolsonaro em 2018, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, vencedor do prêmio Nobel, descreveu o negacionismo de Michel Foucault (1926-1984): “em sua paranoica denúncia dos estratagemas de que, segundo ele, o poder se valia para submeter a opinião pública a seus ditames, ele negou até o final a realidade da Aids – doença que o matou – como mais um logro do establishment e de seus agentes científicos para aterrorizar os cidadãos, impondo-lhes a repressão sexual”.

Tirando a morte, basta reler a frase acima trocando “Aids” por Covid-19 e “sexual” por “ao direito de ir e vir” e temos a descrição do comportamento do presidente, que, em reunião ministerial, conclamou o povo até a pegar em armas contra a repressão de governadores e prefeitos. Neste ponto, Bolsonaro é o Foucault de Glicério (cidade paulista onde nasceu): sem o lado do “mais inteligente pensador de sua geração” e das “investigações em diversos campos do saber”, mas com a vocação “provocadora” que vira “mera insolência intelectual” e “propensão ao sofisma”. Um caso menos “paradigmático” que o do filósofo francês.

Curiosamente, Foucault é um dos pensadores descritos pelo filósofo conservador britânico Roger Scruton (1944-2020) no livro de 1985 “Pensadores da nova esquerda” (definição conceitual hoje deturpada e disparada como xingamento pela militância bolsonarista contra qualquer crítico do governo). “Lendo suas últimas obras, fui constantemente tomado pela ideia de que seu beligerante esquerdismo era não uma crítica da realidade, mas uma defesa contra ela”, escreveu Scruton. Bolsonaro ainda posa de cristão conservador, mas, em sua defesa beligerante contra a realidade, faz jus à tradição da nova esquerda negacionista – temperada com a emoção erótica tupiniquim.

É um homem medíocre, em berço esplêndido, na civilização do espetáculo.

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