SergioMoro

Honra e fuzis

19.06.20

O ano era 2016, auge da Operação Lava Jato. Já naquela época começaram a ocorrer manifestações populares de apoio na praça em frente à Justiça Federal em Curitiba.

Nunca fui a essas manifestações porque, como juiz, não seria apropriado. Não é soberba, mas necessidade de adotar posturas de prudência e resguardo. Meu gabinete ficava em frente à praça e, por vezes, eu olhava a movimentação pelas frestas das persianas. Em uma dessas espiadas, vi um grupo minoritário carregando uma grande faixa com os dizeres “intervenção militar constitucional já”.

Confesso que aquilo me incomodou. Compreendo a insatisfação de muitos com algumas deficiências da democracia: falta de serviços públicos decentes, corrupção sistêmica, impostos elevados, estagnação econômica, entre outras. Ser, por vezes, forçado, em eleições, a escolher entre candidatos ruins também não é exatamente um sonho democrático. Mas a democracia é o que temos como melhor forma de governo e a única medida a fazer é melhorá-la, não acabar com ela.

Fiquei receoso de que a Operação Lava Jato fosse identificada com alguma pauta antidemocrática. Já não faltavam aqueles que afirmavam, mesmo em 2016, que a Lava Jato representava a criminalização da política, dando à operação um viés autoritário ou jacobino. Na verdade, não entendia e nunca vou entender esse argumento. Os condenados na Lava Jato eram políticos que haviam recebido suborno, ou seja, que haviam praticado crime de corrupção. Não se vislumbra como a punição de políticos corruptos possa ser compreendida como algo radical ou antidemocrático.

Mas “intervenção militar constitucional” era algo totalmente estranho à Lava Jato. Nenhum dos agentes de lei envolvidos tratou desse tema ou defendeu medida dessa espécie.

Na oportunidade, escrevi e enviei um pequeno bilhete solicitando, gentilmente, ao pequeno grupo de manifestantes que recolhesse a faixa em questão, a fim de evitar confusão entre o combate à corrupção dentro de uma democracia e uma proposta estranha a esse propósito. Fui atendido, para minha alegria.

Não deve ser ignorado ou depreciado o papel dos militares na consolidação da independência e da unidade do país. Ao contrário, cabe aqui o reconhecimento por todos. A Batalha de Guararapes, a Batalha Naval do Riachuelo, a tomada de Monte Castelo e a atuação da FAB no 22 de abril de 1945 contra o Eixo resumem alguns dos melhores momentos da história de nossas Forças Armadas e do próprio Brasil.

As Forças Armadas também participaram ativamente da vida política do país, ainda que sob controvérsia, em capítulos como a proclamação da República, o tenentismo, o governo militar após 1964, entre outros. Importante destacar que, em todas essas intervenções, as Forças Armadas não agiram exatamente sozinhas. Sempre havia o elemento civil que as apoiava. Isso é convenientemente esquecido por muitos, principalmente em relação aos reprováveis excessos cometidos durante o regime militar.

Desde a redemocratização, as Forças Armadas vêm se profissionalizando e merecendo o devido destaque em missões internas e externas, tendo inclusive sido prestigiadas internacionalmente, principalmente pela missão como Força de Paz no Haiti, por solicitação da Organização das Nações Unidas.

Pesquisas de opinião, não raramente, colocam as Forças Armadas em destaque pelos índices de aprovação usualmente superiores aos das instituições civis.

Em outras palavras, as Forças Armadas brasileiras construíram sua história e merecem reconhecimento. Não há lugar, porém, para uma inusitada “intervenção militar constitucional” para resolução de conflito entre Poderes.

Entre os Poderes, há que se respeitar a separação e a harmonia. O Legislativo faz as leis, o Executivo as executa e o Judiciário as aplica em julgamentos de casos concretos.

Cabe ao Judiciário controlar os limites constitucionais dos demais Poderes. Esse modelo, da revisão judicial, foi importado pelo Brasil, em 1891, da Constituição norte-americana. Importante relembrar que isso não foi uma trama de juízes e advogados da época e que os primeiros presidentes da República eram inclusive militares.

O controle dos limites foi atribuído ao Judiciário não porque os juízes são melhores ou piores do que os ocupantes dos demais Poderes. Também não foi porque os juízes civis são melhores ou piores do que militares. A virtude do Judiciário é a sua própria fraqueza. Como disse Alexander Hamilton, no Federalista 78, o Judiciário, pela própria natureza de suas funções, por não dispor nem da “espada” nem do “tesouro”, é o ramo menos perigoso (“the least dangerous branch”) do poder para os direitos previstos na Constituição e, por esse motivo, é a ele que deve ser atribuída a função de fixar limites aos demais.

Isso não significa que os juízes sempre acertam. Ao contrário, erram muito. Robert Jackson, juiz da Suprema Corte norte-americana, dizia: “nós não damos a última palavra porque somos infalíveis, ao contrário nós somos infalíveis somente porque damos a última palavra”.

Mas a palavra final, definida institucionalmente, deve ser respeitada. Criticada eventualmente, mas cumprida. Como o Supremo Tribunal Federal impõe limites aos demais Poderes, com base em interpretação da lei ou na Constituição, há sempre a alternativa de se alterar a lei ou a Constituição, sem qualquer afronta à Corte.

Invocar, porém, um suposto poder tutelar militar para que o chefe do Executivo possa se sobrepor aos outros Poderes não é consistente com a nossa Constituição ou com as exigências de uma democracia consolidada e moderna. Ao invés de reproduzirmos os exemplos das democracias mais avançadas (algumas, aliás, que nos serviram de modelo), estaríamos flertando com a instabilidade e com o autoritarismo.

Os militares precisam ser honrados. Deles depende a segurança externa e a unidade do país. A história mostra que fizeram jus à confiança neles depositada nas batalhas mais difíceis. Na presente crise política, sanitária e econômica, precisamos dos militares, mas não dos seus fuzis e sim dos exemplos costumeiros de honra e disciplina.

Se o Poder Executivo confunde os seus papéis, ultrapassa os seus limites ou infringe a lei, é a província e o dever próprio do Judiciário censurá-lo, sem que isso signifique qualquer violação de suas atribuições. Da mesma forma, não é uma anormalidade a censura constitucional de uma lei pelo Poder Judiciário. A revisão judicial dos atos dos demais Poderes é algo usual e já ocorreu inúmeras vezes no passado, sem que, a despeito de eventuais críticas, gerasse crises institucionais.

Não há, portanto, espaço para uma “intervenção militar constitucional” contra o Judiciário. Falando francamente, não vislumbro risco de movimento dessa espécie por parte das Forças Armadas, mas faria um bem a todos se não precisássemos tratar sobre esse tema tão recorrentemente. Para tanto, parece ser necessário deixar de invocar a todo o momento o apoio dos militares, algo que só gera instabilidade e desmerece tanto a história das Forças Armadas, como nossa imagem de democracia moderna e pujante. Com tudo o que aconteceu desde 2016, não deveria ser necessário, a esta altura, escrever um novo bilhetinho.

PS: Esta é minha primeira coluna para a Crusoé. Quinzenalmente estarei por aqui. Escolhi a revista pela independência jornalística e por ter com o corpo editorial algumas causas comuns, como o repúdio à corrupção e ao arbítrio. Espero que o leitor tenha gostado desta primeira coluna. Se não foi o caso, sempre é possível tentar de novo.

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