Inquérito legitimado
“Podem espernear à vontade, criticar à vontade, quem interpreta o regimento do STF é o STF.” Quando o ministro Alexandre de Moraes rebateu, no tom que lhe é peculiar, as críticas feitas ao “inquérito do fim do mundo”, em março de 2019, ele sabia que não falava em nome da corte. A investigação entregue ao seu comando pelo presidente Dias Toffoli, supostamente para apurar ameaças, ofensas e notícias falsas contra os magistrados, estava longe de ser um consenso no Supremo. Alguns pares, como Luiz Fux, manifestaram-se publicamente contra o polêmico procedimento naquele momento, seja pela forma – uma investigação aberta e conduzida por um juiz –, seja pelo objeto, considerado amplo e genérico.
Fosse há alguns meses, a interpretação suscitada por Alexandre sobre o artigo do regimento usado por Toffoli para embasar o inquérito atípico revelaria claras divergências entre os ministros. E o julgamento sobre a legalidade da investigação, provavelmente, teria outro rumo. Só que a sanha da militância bolsonarista contra a Suprema Corte, com direito a um ataque pirotécnico sobre a sede do tribunal em Brasília, no último sábado, 13, acabou legitimando o famigerado inquérito. E uniu os ministros, que vinham demonstrando uma nítida divisão nas votações mais importantes da corte, como a que levou casos de corrupção relacionados à caixa 2 de campanha para a Justiça Eleitoral e a que revogou a prisão após condenação em segunda instância.
Por esmagadora maioria, 10 a 1, o STF decidiu nesta quinta-feira, 18, pela constitucionalidade e manutenção da investigação iniciada há mais de 450 dias, mantendo o temor no Palácio do Planalto quanto à possibilidade de surgir uma bala de prata contra o presidente Jair Bolsonaro, que poderá ser usada nas ações eleitorais que pedem a cassação da chapa presidencial. À exceção do ministro Marco Aurélio Mello, que fulminou o “inquérito natimorto” por considerá-lo “inquisitorial”, os demais membros do STF externaram suas indignações contra os ataques sofridos pelos ministros nas redes sociais e disseram, cada um a seu modo, que a liberdade de expressão não pode servir como escudo para práticas criminosas. Entenderam que, diante da “inércia” dos demais órgãos de investigação, como a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, sobre as ameaças e ofensas dirigidas aos magistrados, o Supremo tem o poder de investigar os fatos por conta própria e remetê-los para julgamento nas cortes competentes.
Falando como se fosse um promotor de Justiça, cargo que ocupou até o início dos anos 2000, Alexandre soube usar bem as armas que tinha para comover os demais ministros na defesa de seu incomum inquérito. Escolheu ler as ameaças mais duras para ler aos pares, como a de uma advogada do Rio Grande do Sul. “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do Supremo Tribunal Federal”, escreveu a mulher em seu perfil no Facebook, em novembro do ano passado. “Em nenhum lugar do mundo isso é liberdade de expressão. Isso é bandidagem, isso é criminalidade”, bradou. Segundo a PGR, a advogada já foi denunciada pelo Ministério Público na primeira instância da Justiça local.
Todos os ministros destacaram a importância de combater e punir os ataques orquestrados e financiados contra o Supremo e seus membros, preservando o direito à liberdade de expressão assegurado pela Constituição. Mas coube ao relator Edson Fachin, com apoio do ministro Luís Roberto Barroso, tentar delimitar o objeto do inquérito em que tudo cabe – coube até a censura a Crusoé e ao Antagonista, em abril do ano passado. Agora, a investigação deve se limitar a ameaças que coloquem em risco a independência do Judiciário, e deve ser acompanhada pelo Ministério Público, a quem cabe oferecer denúncia ou arquivar o caso. Nas palavras de Barroso, o objetivo é “afastar qualquer interpretação equivocada de que haja arbítrio cometido no seio do Supremo Tribunal Federal”.
Alexandre concordou com os limites propostos pelos colegas ao inquérito, mas continuará sob o seu crivo o que realmente deve ser investigado. Até agora, segundo ele, 70 dos 74 apensos da investigação já foram remetidos para investigação ou julgamento em outras instâncias. Dois permanecem sob sua batuta e em segredo, sem o conhecimento inclusive da PGR. A suspeita é que eles envolvam o grupo de assessores palacianos ligados ao vereador Carlos Bolsonaro e que integram o chamado “Gabinete do Ódio”. O grupo foi citado em depoimentos colhidos pela equipe do ministro no STF, mas ainda não foi alvo de medidas como busca e apreensão ou quebra de sigilos bancário e telefônico.
Dentro da corte, ficou o recado a Alexandre de que é preciso ser mais transparente e objetivo na condução do inquérito, mas o entendimento quase unânime de que uma ofensa ou ameaça dirigida a um magistrado específico será vista como um ataque à instituição. “A instauração do inquérito se impôs e se impõe não porque o queremos ou gostemos, mas porque não podemos banalizar os ataques e as ameaças ao Supremo Tribunal Federal”, afirmou Toffoli. O “inquérito do fim do mundo” foi aberto pelo presidente do STF no momento que um grupo de parlamentares de oposição e situação colhiam assinaturas para instalar a CPI da Lava Toga, para investigar também magistrados da Suprema Corte. Em mais um sinal de como no Brasil tudo muda ao sabor das circunstâncias, e não apenas no Judiciário, uma parte desse grupo, que chegou a pedir o impeachment de ministros, desistiu da briga e agora defende o inquérito por seu potencial de colher, de maneira impiedosa, as falanges bolsonaristas das redes sociais. O inquérito inconstitucional, assim, obteve uma espécie de indulgência plenária. Mas uma velha pergunta se impõe, independentemente dos resultados que ele poderá alcançar: os fins justificam os meios?
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